Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça...
Rodolfo Calligaris
Contemplando o panorama do mundo, onde os bens e os males se acham tão desigualmente repartidos, muitos há que não compreendem a razão de ser dessas anomalias e chegam a descrer da Justiça de Deus.
Se Ele é soberanamente justo e bom, indagam, por que dá a uns uma vida repleta de alegrias e satisfações, enquanto a outros reserva uma sucessão intérmina de agruras e sofrimentos? Por que uns dormem sob dourados tetos, enquanto outros jazem sobre palhas, ou tiritam de frio, sem que tenham onde abrigar-se nem possuam sequer alguns farrapos com que cobrir sua nudez? Por que uns se banqueteiam regaladamente, todos os dias, enquanto outros necessitam estender a mão à caridade pública para conseguir um pedaço de pão com que atendam às exigências do estômago vazio? Por que algumas damas, ostentando luxuosíssimos vestidos, adornadas de joias de alto preço, levam vida despreocupada e risonha, entre acordes de orquestras e espocar de champanhes, enquanto jovens pálidas e andrajosas definham ao peso de trabalho rude e estafante? Por que se concedem, a uns, certos privilégios, que se tornam odiosos ante o abandono a que outros são relegados?
O que se vê por toda parte não é a mais flagrante iniquidade, tornando falaciosa a promessa do Cristo de que os famintos e sedentos de justiça seriam fartos?
De fato, se tivéssemos uma só existência, a doutrinação do Mestre seria um engodo. À luz da reencarnação, entretanto, as diferenças sociais, como de resto todas as desigualdades que tanto ofendem as almas sensíveis e perquiridoras, não se constituem expressões do arbítrio divino; são agentes de progresso e preenchem, transitoriamente, uma necessidade na economia da evolução individual e coletiva.
Claro que tais diferenças haverão de desaparecer um dia, com o progresso moral da Humanidade, mas, enquanto isso não venha, elas subsistirão, malgrado as revoluções, as leis e os discursos que os homens façam com a finalidade de as abolir. É que a evolução da espécie humana não é unilateral: deve e tem de realizar-se sob múltiplos aspectos — queiramos ou não — passando cada ser por uma infinidade de provas e experimentações, cujo ensejo lhes é proporcionado pelas diversas castas e classes em que se dividem as sociedades.
No estado em que os terrícolas nos encontramos, aliás de grande atraso, sempre que mudamos de posição, mudamos também de ideias e sentimentos, em conformidade com os novos interesses e o novo alvo de nossos desejos. Isso prova bem quão necessário é ainda que mudemos muitas vezes de posição, através de sucessivas encarnações, para que, trabalhando, sofrendo, estudando e adquirindo experiência, pelo melhor conhecimento das coisas, desenvolva-se em nós o espírito de equidade e de justiça, indispensável ao nosso progresso individual e à boa orientação que devemos dar à marcha dos acontecimentos, em prol do bem coletivo.
Disse Kardec, alhures, que a Terra é um misto de escola, presídio e hospital, cuja população se constitui, portanto, de homens incipientes, pouco evolvidos, aspirantes ao aprendizado das leis naturais; ou inveterados no mal, banidos, para esta colônia correcional, de outros planetas, onde vigem condições sociais mais elevadas; ou enfermos da alma, necessitados de expungirem suas mazelas pelas provações mais ou menos dolorosas e aflitivas.
É natural, pois, que, num meio assim tão heterogêneo, haja profundas diferenciações na sorte das criaturas, capazes de provocar clamores e de desnortear, pela sua complexidade, qualquer sociólogo menos conhecedor do plano divino da evolução.
Assim, aquelas palavras do Mestre: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão saciados” (Mateus, 5:6), não se referem, como poderia parecer, aos que, inconformados com sua condição, protestam, amaldiçoam ou promovem agitações subversivas, mas sim aos que, qualquer que seja a classe social em que se encontrem, procuram, de consciência tranquila, seguir-lhe as pegadas, alimentando a nobre aspiração de pautar seus próprios atos de conformidade com os mais altos ideais de justiça e retidão, respeitando escrupulosamente os direitos de seus semelhantes, procurando tirar de sua atuação o maior resultado possível para a evolução própria e o bem alheio.
É com discípulos desse feitio que o Cristo conta como cooperadores, para a implantação na Terra de um estilo de vida mais consentâneo com o Direito e a Moral.
Que os verdadeiros cristãos, inspirados no exemplo do Mestre, que desceu dos cimos da pureza e da perfeição e imergiu neste mundo corrompido e tenebroso a fim de dar o de que a Humanidade necessitava para alcançar a redenção, saiam, pois, a campo, empenhando-se de corpo e alma na construção da sociedade do porvir.
Há oportunidades para isso em inúmeros setores. Enquanto outros derrubam e destroem o que é arcaico e já não convém ao estágio evolutivo atual, chamem a si a tarefa de desarmar os espíritos, preparando-os para uma vivência de paz e de concórdia; lutem para que se reconheça no trabalho o fator supremo do bem-estar coletivo e se assegure aos que o exercem retribuição justa, suficiente ao atendimento de suas necessidades essenciais; esforcem-se por infiltrar as luzes do Evangelho em todas as camadas sociais...
Quando os homens estiverem suficientemente cristianizados e, submetendo-se espontaneamente à lei do “amai-vos uns aos outros”, tenham aprendido a obrar sempre em harmonia com esse preceito, nenhum conflito de interesse, nenhuma desavença os dividirá; tratar-se-ão fraternalmente; haverá perfeito entendimento e concordância entre todos, resolvendo-se todas as questões sem guerras, sem ditaduras e sem dissídios de espécie alguma.
Rodolfo Calligaris do livro:
O Sermão da Montanha
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