sexta-feira, 28 de julho de 2023

As fronteiras do perdão

As fronteiras do perdão

João Marcus 

(Pseudônimo de Hermínio C. Miranda)

"Então, chegando-se Pedro a ele, perguntou:

— Senhor, quantas vezes poderá pecar meu irmão contra mim, que eu lhe perdoe? Será até sete vezes?

Respondeu-lhe Jesus:

— Não te digo que até sete vezes, mas que até setenta vezes sete vezes." (Mateus, 18:21 e seguintes.)

 

Pedro era um Espírito objetivo e prático. Queria definições precisas e muito claras. Ainda não fora promovido de pescador de peixes a pescador de homens, como lhe prometera o Mestre. Preocupado com o problema do perdão, interpelou frontalmente o Amigo Maior. De sua pergunta podemos inferir que era tolerante e bom porque admitia perdoar sete vezes, ou melhor, até sete vezes. Talvez traçasse por aí os limites do perdão, mas as fronteiras que o Cristo lhe fixava estavam muito além.

O ponto merecia ampliações mais elaboradas e Jesus não deixou passar em branco a oportunidade. Narrou a parábola dos dois devedores, destacando que aquele mesmo a quem o rei perdoara uma dívida de 10 mil talentos (*) não fora capaz de perdoar, a seu turno, uma conta insignificante de 100 dinheiros. E por isso, mandou o rei que o entregassem aos algozes até pagar toda a dívida.

(*) O talento era moeda de grande valor, correspondente a 6.000 dracmas que, por sua vez, valia 6 óbolos. Por conseguinte, o talento era equivalente a 36.000 óbolos. Quanto ao dinheiro, era moeda de pouca expressão.

Lição profunda essa, que serviu a Pedro e servirá a todos nós pelo tempos a fora. Quem mais, senão Jesus, para colocar na linguagem simples dos simples o mecanismo sutil das leis de Deus? Fazendo incidir hoje sobre aquele texto a luz da Doutrina Espírita, podemos descobrir, nas mesmas palavras, outros ensinamentos e novos ângulos.

Em primeiro lugar, a lição da tolerância. Perdoar sempre, perdoar sem reservas, sem limitações, nem imposições ou condições — perdão puro e simples, sincero e acabado.

O perdão repetido desencoraja o ofensor, fá-lo pensar, lança no seu espírito a semente generosa do amor. O que precisa do nosso perdão está em erro porque ofende, maltrata e faz sofrer. O que perdoa exercita a sua paciência e entesoura a moeda luzente do resgate.

Em segundo lugar, o que perdoa se liberta. Dispondo do livre-arbítrio poderia devolver a ofensa, retrucar uma bofetada com outra, gritar mais alto ao grito que ouviu. Optando pelo perdão, escapou ao compromisso, rompeu o círculo vicioso que o manteria acorrentado ao seu algoz, alimentando ódios, dando novo alento a novas formas de vingança. E a espiral das paixões desatreladas continuaria a evoluir na direção das trevas e das dores.

É verdade: o perdão liberta. Aquele que perdoa e oferece a outra face, não é covarde, é sábio. Compra, com a aparente fraqueza de um minuto efêmero, a paz duradoura do futuro que permanece. De que serve matar o que mata, bater no que bate, ferir o que fere, se a lei prende na mesma algema os contendores? O ódio encadeia e sufoca as suas vítimas e só as deixa quando o perdão desata as amarras. O que mais depressa perdoa, mais cedo levanta voo para as regiões da paz interior. Enquanto odiarmos, estaremos em dívida perante a lei, e os nossos algozes poderão livremente exigir de nós o resgate das nossas faltas, ingenuamente arvorados em cobradores de Deus, nomeados por si mesmos ministros executores da Sua lei. Já muito fizemos disso no passado e ainda hoje, aqui e ali, reincidimos no erro trágico, esquecidos de que, naquele momento fatal, assinamos novas promissórias na moeda corrente da dor. Que cada qual ajuste perante sua própria consciência ultrajada suas dívidas e remorsos. Não cabe a nenhum de nós assumir o papel antipático e doloroso de meirinhos impiedosos da vontade de Deus, punindo em nome do Senhor aqueles que ofenderam não a nós, que nada somos, mas às leis que nos protegem a todos. Não é essa a vontade d’Ele. Que cada um se recomponha livremente diante da ordem universal perturbada. Não sejamos nós o veículo do escândalo de que nos falava Jesus; o ajuste é sempre necessário porque assim o exige a nossa consciência desassossegada, mas recusemos sempre e com firmeza o papel de instrumento da dor alheia.

Ademais, lá está, no texto de Mateus, a advertência imortal. Pedimos perdão de dívidas vultosas, de negros pecados, de erros clamorosos e, no mesmo instante, voltados para o irmão que nos ofendeu apenas com uma observação desatenta, lhe exigimos o reparo imediato, inapelável. Pedimos muito e não queremos dar coisa alguma. Devedores relapsos, revestidos de falsa humildade, somos cobradores impiedosos e altivos.

Enquanto isso, seguimos errando pela vida a fora — erros que atingem irmãos nossos e lhes causam dores e aflições cuja profundidade e intensidade nem sequer imaginamos. Erros que, cometidos invariavelmente contra o semelhante, são também contra nós mesmos porque ao cometê-los marcamos encontro com a dor da reparação. É bom que o irmão a quem ferimos tenha aprendido a perdoar setenta vezes sete. É bom para ele; para nós que o ferimos, no entanto, o débito permanece. Podemos, no momento da ofensa, avaliar de cabeça fria a extensão da dívida subscrita? Seríamos capazes de prever quando, onde e como vamos poder repor as coisas no seu lugar? Quantas vidas decorrerão até que novamente nos encontremos com o irmão maltratado, em condições de curar-lhe a ferida com a carícia do nosso amor? Compõe-te com o teu irmão, enquanto estás a caminho com ele, dizia o Mestre. Mais tarde, certamente o faremos, porque essa é a lei, mas as lágrimas estarão em nossos olhos, quando nada, pelo tempo esbanjado. Estaremos aí já prontos para novas escaladas espirituais, mas ainda presos penosamente à retaguarda das sombras porque, como na visão de Nabucodonosor, temos a cabeça de ouro finíssimo, cheia de boas intenções, mas os pés são de ferro e barro, guardando na rigidez das suas formas a lembrança das vezes que os calcamos cheios de ódio sobre a garganta do irmão que implorava o perdão e a vida. É grande a dor desse momento em que compromissos tão antigos e esquecidos na memória do ser encarnado ainda nos prendem os pés emaranhados na aflição, enquanto nossos olhos angustiados contemplam as paisagens tranquilas que nos esperam quase ao alcance das nossas mãos.

Senhor: Ensina-nos outra vez a lição do perdão, instrumento do amor, essa força universal que sustenta o átomo e as galáxias, a ameba e os anjos. Novos Pedros sequiosos de aprendizado e de paz, te buscamos na imensidão da tua paciente caridade para que nos repitas mansamente, setenta vezes sete, que precisamos perdoar outras tantas vezes. Só assim, Senhor, estaremos seguros de não ser entregues aos nossos algozes até que se resgatem todas as nossas dívidas. Ao contrário, Senhor, estaremos com as nossas mãos imperfeitas estendidas aos irmãos outros mergulhados na dor, a fim de que juntos nos levantemos para Deus, como tu o queres.

João Marcus

Hermínio C. Miranda
(Sob pseudônimo de João Marcus), do livro:
Candeias na noite escura

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Nota explicativa: - Hermínio C. Miranda também assinava seus artigos como João Marcus e H.C.M. Este expediente foi sugerido pelo editor da Revista Reformador para que pudessem ser publicados mais artigos dele em uma mesma revista. 
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