sábado, 29 de julho de 2023

Tempos narcisistas

Tempos narcisistas

Joanna de Ângelis



Desde há trezentos anos, mais ou menos, com o surgimento das doutrinas liberais, do iluminismo, do cientificismo, do modernismo, a sociedade humana lentamente vem abandonando a fraternidade decantada na Revolução Francesa de 1789, para assumir uma identidade egoísta, narcisista.

Ante as indiscutíveis conquistas da cultura, da ciência, da tecnologia, desenha-se lentamente, o individualismo, a desserviço da comunidade, trabalhando uma vivência antropocêntrica, toda baseada nos interesses pessoais, ficando à margem aqueles que podem beneficiar todo o organismo social.

Nos dias atuais, o distanciamento que se apresenta entre os indivíduos leva-os a situações inquietantes, avançando no rumo de problemas graves de comportamento.

Preocupados com as imposições do mercado de consumo, os valores éticos lentamente cedem lugar àqueles de natureza imediata, que resultam em poder e em prazer, como se a existência não tivesse outro objetivo, com total olvido da intemporalidade do corpo físico, da sua fácil desintegração, das transformações que nele se operam a todo instante, rumando para a morte...

A busca dos recursos próprios para o exibicionismo confundido com felicidade vem induzindo à ansiedade mórbida, ao abuso dos usos, à aparência em detrimento da realidade interior, tornando-se metas principais da existência a conquista da beleza exterior e da sua preservação através dos recursos em disponibilidade.

Implantes e cirurgias plásticas, cosméticos e ginásticas modeladores do corpo ideal tornam os indivíduos seres coisificados para o comércio da ilusão e do gozo insano.

Há doentia demanda pela autopromoção com esquecimento significativo da reflexão, da beleza interior, da harmonia, que são fatores básicos para a real conquista do bem-estar.

A propaganda bem direcionada e exploradora extorque os sentimentos elevados que são substituídos pela ânsia de consumo, descartando-se o de ontem para a aquisição daquilo de agora, mesmo sabendo-se que logo mais estará igualmente ultrapassado.

Não importam as emoções superiores, que se tornam frias, indiferentes ao que acontece com o outro, o seu próximo, desde que não lhe cause imediato problema ou mesmo preocupação, como se o incêndio na casa vizinha não lhe ameaçasse o próprio lar de ser comburido, pelas mesmas chamas. Essa cultura doentia vem dando lugar ao desespero dos desafortunados, que se armam de violência e tomam pela força aquilo que lhes é negado pelo dever de humanidade, ampliando-se os quadros da agressividade e do ressentimento em proporções preocupantes.

Aumenta o exorbitante abuso do gozar e do poder, diminuindo o respeito pela vida e todas as suas expressões, dando lugar ao convulsionado comportamento da competitividade insana.

Tudo é rápido, no tempo sem tempo, sem oportunidade de apreciação, de análise. De vivência aprazível do que se consegue.

A cooperação, o sentido de união e de fraternidade vão desaparecendo, manifestando-se apenas quando resultam benefícios imediatos para aqueles que se aproximam.

Tem-se a sensação de que o amor empobreceu e se transformou em expressão de consumo, permutando-se os sentimentos mascarados enquanto vigem os proveitos.

A falta, porém, do amor no ser humano, torna-se grave problema existencial que o conduz ao desespero mesmo que silencioso, ao sofrimento desnecessário, que poderiam ser resolvidos no aproximar-se um do outro com objetivo destituído de lucro.

O narcisismo é prática antissocial, que degenera em corrupção moral e insensibilidade emocional.

Preocupado somente com a sua imagem, o narcisista opera segundo as manipulações que lhe ofereçam resultados lucrativos, elogios e aplausos ilusórios.

Dominadas pelo capitalismo perverso, as criaturas são educadas para usufruir ao máximo, trabalhando-se em favor do individualismo que se sobrepõe às mais avançadas técnicas proporcionadoras da vida feliz.

As empresas, insensíveis aos seus servidores, visam apenas ao lucro, atendendo aos impositivos legais, longe, no entanto, da retribuição verdadeira àqueles que fazem parte do seu organismo social. Seus executivos pensam apenas no crescimento e nas rendas da entidade, sendo vítimas, periodicamente, dos conflitos econômicos e das oscilações das ações nas bolsas de valores em ascensão e quedas frequentes.

O objetivo real da vida é proporcionar ao Espírito o desenvolvimento dos recursos divinos nele ínsitos e adormecidos, que são capazes de guindá-lo à real alegria e à saúde integral.

Olvidando-se esse sentido existencial, o tempo juvenil é gasto no acumular do poder e no fruir do prazer, alcançando patamares de insatisfação e perda de significado psicológico, que levam às fugas espetaculares para o abismo de si mesmo, desidentificando-se da própria realidade.

Essa perda de identidade pessoal, de similitude ao então conceituado, é mais profunda do que parece na superfície, em face do desgaste emocional no jogo do que se é interiormente e
daquilo que se deve apresentar por fora.

Em face desse consumismo narcisista, houve perda inevitável da realidade, em virtude das imposições do tempo, que devem estar adstritas aos jogos interesseiros.

Onde predomina, porém, o egoísmo, desfalece o sentimento de humanidade.

Necessário reverter-se esse quadro infeliz, conforme já vem ocorrendo em alguns setores científicos e culturais, inclusive na medicina que recomenda o amor como a mais saudável terapia preventiva e curadora em relação aos diversos males da sociedade antropocêntrica.

Lentamente se torna necessária a volta à consideração das coisas simples e puras da existência, aos acontecimentos ingênuos e belos dos relacionamentos humanos, à contemplação da beleza das paisagens, às considerações em relação à Natureza e à sua preservação.

Vivendo-se artificialmente, o tédio e o desespero dão-se as mãos e saem em busca da harmonia e da confiança perdida, do amor, ou derrubam as suas vítimas nos poços profundos da alucinação.

Descrentes do significado do amor, porque foi confundido com desejo e sexo, os indivíduos redescobrem a fraternidade, a compaixão, a solidariedade, e ressurgem os sentimentos afetivos vitalizando as débeis forças que se consumiram no tráfico das paixões servis.

A compreensão, portanto, da fragilidade orgânica, das mudanças que se operam em todos os sentidos enquanto se encontra o Espírito no corpo físico, faculta uma visão diferenciada do narcisismo e nasce o desejo de repartir, compartir, solidarizar-se.

Quem elege a solidão, candidata-se ao abandono.

Quando se escolhe a solidariedade, encontra-se a retribuição.

Dizem que o sentido do amor desapareceu por falta de correspondência, por traição e infâmia, por falta de vitalidade.

A alegação é falsa, porque destituída de significado.

Mesmo que alguém não retribua o afeto ou o degrade, isso não significa a fraqueza do seu conteúdo, senão a debilidade moral do indivíduo.

O amor é dinâmico e produtivo. Caso alguém o desrespeite ou lhe traia a confiança, ele permanece intocável, à semelhança da luz solar que beija o pântano e a pétala da rosa, mantendo-se integral, inatingível.

É inevitável que o narcisismo ceda lugar, na cultura do futuro, nesse vir a ser que se desenha para o porvir, sendo substituído pela fraternidade que vigerá nas mentes e nos corações como passo inicial para a plenitude do amor que tanta falta faz à civilização hodierna.

Joanna de Ângelis por Divaldo Franco do livro: 
Atitudes Renovadas

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