terça-feira, 19 de outubro de 2021

Quem é o Espírito de Verdade, Guia de Allan Kardec?

Quem é o Espírito de Verdade, Guia de Allan Kardec?

Hermínio C. Miranda




Em maio de 1855, uma terça-feira - o dia do mês ficou em branco nas anotações - o Professor Rivail assistiu à sua primeira sessão mediúnica, mais especificamente, a uma demonstração das mesas girantes, sobre as quais ouvia falar desde 1854. Presenciou também alguns ensaios inconclusivos de "escrita mediúnica numa ardósia, com o auxilio de uma cesta".

Embora ele não o suspeitasse, ali estava a tarefa da sua vida, à qual ele se devotaria com todo vigor durante os quatorze anos que lhe restavam.

O sisudo professor deve ter meditado muito naquela noite e nos dias que se seguiram. Dentro em pouco, estaria frequentando regularmente as sessões realizadas pela família Baudin, que ficara conhecendo na residência da sra. Plainemaison, onde assistira à reunião de maio de 1855.

Em 11 de dezembro do mesmo ano (1855), através da sra. Baudin, Rivail perguntou a seu amigo espiritual Zéfiro se havia, no mundo dos espíritos, alguém que fosse para ele o que chamou "bom gênio", ou seja, um guia espiritual.

A resposta foi positiva. O professor, contudo, era um hábil e persistente perguntador, e quis saber de quem se tratava. Zéfiro não foi menos hábil nas respostas, cujo conteúdo se resume no seguinte: Sim, Rivail tinha o seu guia espiritual; este, porém, não era seu parente nem amigo pessoal; fora "um homem justo de muita sabedoria" e que viria recebê-lo quando ele regressasse à vida espiritual e felicitá-lo se houveres desempenhado bem a tua tarefa.

Kardec, comentaria, mais tarde, ao reproduzir o breve diálogo com Zéfiro, a sua inexperiência com as "coisas do mundo espiritual" àquela altura, em vista do teor das perguntas formuladas. A questão da identidade de seu guia, contudo, deveria ocupar com certa insistência a sua mente, pois, na mesma reunião do dia 11, ele prossegue, informando a Zéfiro que há algum tempo evocara um espírito, que identifica apenas com a inicial S. e lhe perguntara se ele poderia ser o "gênio protetor" de algum dos presentes, ele, Kardec, inclusive, naturalmente. O espírito deu uma resposta sumária:

- Mostre-se um de vós digno disso, e estarei com esse; Z.(Zéfiro) vô-lo dirá,

A questão é suscitada novamente, ainda em casa da família Baudin, desta vez através de uma das moças. Na noite anterior, Kardec trabalhava na redação de suas anotações, quando começou a ouvir leves pancadas na parede do seu gabinete de estudo. Por várias vezes interrompeu o que vinha fazendo para investigar o estranho fenômeno, que cessava prontamente. Bastava sentar-se para retomar o trabalho e novamente as batidas se faziam ouvir.

Lá pelas dez horas da noite, a sra. Rivail, que chegava da rua, ouviu também as pancadas e perguntou ao marido que era aquilo.

- Não sei, respondi-lhe, há uma hora que isto dura.

Juntos, examinaram tudo e nada descobriram, quanto às causas do misterioso ruído, que continuou até à meia noite, quando o professor interrompeu seus trabalhos para deitar-se.

Foi na sessão do dia seguinte, 25 de março, que ele resolveu pedir aos seus amigos espirituais uma explicação para o insólito fenômeno. Disseram-lhe que os ruídos foram provocados pelo seu "Espírito familiar" - ou seja, seu guia - que desejava comunicar-se com ele.

Rivail pergunta prontamente:

- Poderíeis dizer-me quem é ele?

A resposta foi inesperada: Rivail poderia perguntar-lhe diretamente, pois o espírito estava ali, presente. 

Em nota explicativa a essa resposta, Kardec informaria mais tarde, como está em Obras Póstumas, que, por essa época, "ainda não se fazia distinção nenhuma entre as diversas categorias de Espíritos simpáticos. Dava-se-lhes a todos a denominação de Espíritos familiares".

Dirigindo-se, pois, ao seu "Espírito familiar", Rivail agradeceu-lhe a presença e lhe perguntou em tom respeitoso:

- Consentirás em dizer-me quem és?

- Para ti, chamar-me-ei A Verdade - disse ele - e todos os meses, aqui, durante um quarto de hora, estarei à tua disposição.

Quanto à manifestação em sua casa, na véspera, a explicação foi a seguinte:

- O que eu tinha a dizer-te era sobre o trabalho a que te aplicavas; desagradava-me o que escrevias e quis fazer que o abandonasses.

Cabia, porém, ao próprio Rivail reexaminar o texto, a fim de identificar as falhas e corrigi-las. Aliás, o capitulo já fora reescrito, mas ainda não satisfazia ao seu autor e nem ao espírito, que se limitou a dizer:

- Está melhor, mas ainda não satisfaz. Relê da terceira à trigésima linha e com um grave erro depararás.

Esclarecido esse aspecto, Rivail retoma a questão da identidade do espírito e lhe pergunta se o nome que ele adotou (Verdade) é uma alusão à verdade, que ele procurava.

- Talvez; pelo menos, é um guia que te protegerá e ajudará. (Destaque desta transcrição).

Após receber algumas instruções, o professor insiste em saber se o espírito com o qual dialoga teria animado na Terra alguma personagem conhecida"

A resposta é firme, um tanto severa:

- Já te disse que, para ti, sou a Verdade; isto, para ti, quer dizer discrição; nada mais saberás a respeito. (Os destaques são do próprio Kardec).

Nas entrelinhas desse breve diálogo encontramos vultosas implicações. Em primeiro lugar, a autoridade e a segurança que o espírito revela. É firme e discreto, deixando bem claro que não fará por Rivail, o trabalho que cabe a este fazer, mas, ao mesmo tempo, supervisiona-lhe a tarefa, acompanhando-a passo a passo, palavra por palavra, não hesitando em chamar-lhe a atenção para eventuais erros cometidos e a manifestar-lhe seu desagrado quando o texto não estiver satisfatório. É evidente que se trata de espírito de elevadíssima condição evolutiva, mas não deseja que sua autoridade se apoie em um nome, por mais famoso, importante e respeitado que seja - ela tem que decorrer do nível, da qualidade, do conteúdo de seus ensinamentos e da sua orientação.

Na reunião de 9 de abril de 1856, Rivail volta a debater o problema do texto que fora objeto de seu primeiro contato direto com o Espirito Verdade. Descobrira os erros e reescrevera o estudo, mas seu Amigo Espiritual ainda não se dá por satisfeito, limitando-se a dizer-lhe que o acha melhor, e que aguarde um mês antes de divulgá-lo.

Nova surpresa: Rivail não está pensando em publicar nada daquilo, pelo menos por enquanto. "Não tenho, bem sabes, a intenção de publicá-lo já, se é que o haja de publicar."

O espírito não insiste. Diz apenas que não deve mostrá-lo a terceiros, pois ainda terá que melhorar o texto. O diálogo termina com a confirmação de que ele é um guia espiritual e que não apenas proporcionará orientação aos trabalhos intelectuais de Rivail, mas também, nos aspectos materiais da vida.

- Nesse mundo - comenta - a vida material é muito de ter-se em conta; não te ajudar a viver seria não te amar.

Uma bela e concisa resposta. Em nota escrita posteriormente, Kardec prestaria os seguintes e importantes esclarecimentos adicionais:

- A proteção desse Espírito, cuja superioridade eu então estava longe de imaginar, jamais, de fato, me faltou. A sua solicitude e a dos bons espíritos que agiam sob suas ordens se manifestou em todas as circunstâncias da minha vida...

Depreende-se, portanto, destes comentários, que, no devido tempo, o Espírito Verdade resolveu identificar-se nominalmente a Kardec, mas este manteve-se fiel ao compromisso de não lhe revelar a identidade. Quanto à sua condição na hierarquia dos valores espirituais, não resta sombra de dúvida que se trata de entidade do mais elevado porte evolutivo, pois a ela se subordina e sob suas ordens serve, na formulação da jovem doutrina, verdadeira constelação de espíritos luminosos: filósofos, teólogos, poetas, escritores, cientistas, evangelistas, apóstolos, reis e antigos santos da Igreja, todos empenhados na nobre e urgente tarefa de reformulação do pensamento religioso.

Em 30 de abril, no mesmo ano de 1856, período de importantes revelações pessoais para o prof. Rivail, um espírito manifestado em casa do sr. Roustan, por intermédio da srta. Japhet, proporciona a Rivail a primeira indicação concreta do vulto de sua missão, chamando-o "obreiro que reconstrói o que foi demolido".

Uma semana depois, ainda pela srta. Japhet, o espírito Hahnemann confirma-lhe a indicação, acrescentando que lhe caberia "cumprir aquilo com que sonhas desde longo tempo". Quando Rivail lembra suas próprias limitações, o espírito lhe diz:

- Deixa que a providência faça a sua obra e serás satisfeito.

Em 12 de junho, Rivail tem oportunidade de conferir as informações anteriores acerca da sua tarefa, com o Espírito Verdade, seu guia. A sessão é realizada na residência do sr. C. e a médium é Aline C. O momento parece algo solene. Até então, Rivail vinha dialogando com seus amigos espirituais, elaborando perguntas, anotando respostas e escrevendo comentários com a finalidade de instruir-se. Não tinha em mente nenhum outro propósito. Não pensava sequer em publicar suas anotações, como vimos. Agora, porém, os espíritos começavam a falar-lhe de uma tarefa de vulto, verdadeira missão, na qual ele parecia figurar como o principal responsável e líder entre os seres encarnados. Seria isso verdadeiro, ou estariam apenas testando seu amor próprio, ou seja, incensando sua vaidade? Segundo entendia ele, acertadamente, claro, colaborar na divulgação da verdade era uma coisa, mas incumbir-se de liderar o movimento, era algo bem diferente e ele se mostra perplexo ante a preferência que isso significaria, se confirmada a sua escolha. Em suma: queria uma palavra final do Espírito Verdade, no qual aprendera a confiar e respeitar.

A resposta não poderia ter sido mais clara. Vale a pena relê-la:

- Confirmo o que te foi dito, mas recomendo-te muita discrição, se quiseres sair-te bem. Tomarás mais tarde conhecimento de coisas que se te explicarão o que ora te surpreende.

Não esqueças que podes triunfar, como podes falir. Neste último caso, outro te substituiria, porquanto os desígnios de Deus não assentam na cabeça de um homem. Nunca, pois, fales de tua missão; seria a maneira de a fazeres malograr-se; ela somente pode justificar-se pela obra realizada e tu ainda nada fizeste. Se a cumprires, os homens saberão reconhecê-lo, cedo ou tarde, visto que pelos frutos é que se verifica a qualidade da árvore.

Resposta modelar, na qual estão definidos com impecável nitidez, os riscos, as responsabilidades e as consequências do êxito ou do fracasso da missão que lhe é atribuída. Nada de elogios vãos - que muitos, até hoje, chamam estímulo - nem o menor interesse em minimizar as dificuldades da tarefa; pelo contrário.

A uma nova observação de Rivail, o Espírito Verdade prossegue, dizendo:

- A nossa assistência não te faltará, mas será inútil se, de teu lado, não fizeres o que for necessário. Tens o teu livre-arbítrio, do qual podes usar como o entenderes. Nenhum homem é constrangido a fazer coisa alguma. (Destaque desta transcrição).

Quando Rivail deseja saber o que poderia acarretar-lhe o malogro da sua tarefa, o espírito lembra que a missão dos reformadores é espinhosa. E lhe fala mais longamente do assunto, nestes termos:

- Previno-te de que é rude a tua (missão), porquanto se trata de abalar e transformar o mundo inteiro. Não suponhas que te baste publicar um livro, dois livros, dez livros, para em seguida ficares tranquilamente em casa. Tens que expor a tua pessoa.

O trecho seguinte adquire as tonalidades de verdadeira profecia, que, aliás, cumpriu-se rigorosamente:

- Suscitarás contra ti ódios terríveis; inimigos encarniçados a se conjugar para tua perda; ver-te-ás a braços com a malevolência, com a calúnia, com a traição mesma dos que te parecerão os mais dedicados; as tuas melhores instruções serão desprezadas e falseadas; por mais de uma vez sucumbirás sob o peso da fadiga; numa palavra: terás que sustentar uma luta quase contínua, com o sacrifício de teu repouso, da tua tranquilidade, da tua saúde e até da tua vida, pois sem isso, viverias muito mais tempo.

Após essa antecipação profética dos percalços que o aguardavam, o espírito parece deixar entreaberta a opção de retirada, ainda a tempo, enfatizando as responsabilidades, que eram pesadíssimas:

- Ora bem! Não poucos recuam quando, em vez de uma estrada florida, só veem sob os passos urzes, pedras agudas e serpentes. Para tais missões, não basta a inteligência. Faz-se mister, primeiramente, para agradar a Deus, humildade, modéstia e desinteresse, visto que Ele abate os orgulhosos, os presunçosos e os ambiciosos. Para lutar contra os homens, são indispensáveis coragem, perseverança, e inabalável firmeza. Também são de necessidade prudência e tato, a fim de conduzir as coisas de modo conveniente e não lhes comprometer o êxito com palavras ou medidas intempestivas. Exigem-se, por fim, devotamentos, abnegações e disposição a todos os sacrifícios. Vês, assim, que a tua missão está subordinada a condições que dependem de ti. (Novamente os destaques são meus).

Ninguém melhor do que Rivail sente a solene importância do momento. Agradece as palavras do Espirito Verdade, aceita "tudo, sem restrição e sem ideia preconcebida", e faz uma comovida prece a Deus, para que se faça a vontade d'Ele. "Está nas tuas mãos a minha vida - diz na prece -, dispõe do teu servo".

Em longa nota que se segue a esse emocionante diálogo, Kardec declararia, cerca de dez anos mais tarde, que a previsão realizou-se "em todos os pontos", nas dificuldades e amarguras das aflições, mas também colheu inefáveis alegrias e bênçãos, sempre sob a atenta cobertura espiritual de seus amigos espirituais, com o Espírito Verdade à frente.

Ao iniciar-se o ano de 1860, Kardec especula sobre a duração de seus trabalhos. Imagina que lhe restem ainda cerca de dez anos para conclusão de sua tarefa, mas, como de seu hábito, não comenta com ninguém tal suposição. E, pois, com surpresa que recebe de Limoges uma comunicação na qual um espírito ali manifestado dissera precisamente isso, ou seja, que em dez anos estariam concluídos seus trabalhos.

Mais uma vez recorre ao seu guia, o Espírito Verdade, que confirma, em sessão de 24 de janeiro de 1860, em casa do sr. Forbes, 0 "recado" dado em Limoges. A médium foi a sra. Forbes. 

Em 10 de junho de 1860, em sua própria casa, por intermédio da sra. Schimidt, o Espirito Verdade informa que ele, Kardec, teria "grandes satisfações" antes de voltar para junto dos amigos espirituais "por um pouco".

Atento a qualquer palavra de seu guia espiritual, Kardec pergunta prontamente a razão daquele enigmático " por um pouco".

- Não permanecerás longo tempo entre nós - diz-lhe o Espírito Verdade. - Terás que volver à Terra para concluir a tua missão, que não podes terminar nesta existência. Se fosse possível, absolutamente não sairias daí; mas, é preciso que se cumpra a lei da Natureza. Ausentar-te-ás por alguns anos, e, quando voltares, será em condições que te permitam trabalhar desde cedo. Entretanto, há trabalhos que convém os acabes antes de partires; por isso, dar-te-emos o tempo que for necessário a concluí-los. (Destaques meus).

Como sempre, a sobriedade, a firmeza, a autoridade, a precisão de linguagem, a objetividade na avaliação do contexto. Kardec é informado para concluir a sua tarefa. No exercício de poderes e de uma autoridade inquestionáveis, o espírito acrescenta, com singeleza, que concederá ao seu pupilo o tempo necessário à conclusão daquela etapa do seu trabalho entre os homens. O restante ficaria para a próxima existência, quando começaria a trabalhar bem jovem.

Creio legitimo supor que, dos frequentes diálogos de Kardec com seu guia espiritual, resultaram inúmeras instruções e até revelações de maior importância, que ele não tenha achado prudente ou oportuno divulgar, ou sobre as quais tenha sido instruído a manter-se em silêncio. O que nos chegou, porém, ao conhecimento é suficiente para se ter uma ideia da elevadíssima condição dessa entidade. É importante observar-se, ainda, que o espírito apresenta-se invariavelmente, com as mesmas características, a mesma autoridade e segurança, concisão e objetividade, pelos diferentes médiuns através dos quais manifesta seu pensamento: sra. e srta. Baudin, srta. Japhet, Aline, sra. Forbes, sra. Schimidt. Não estava, pois, ligado a nenhum deles em especial, o que, evidentemente, tranquilizava Kardec quanto à sua condição e sua individualidade, ainda que não identificada, àquela altura, com qualquer personalidade histórica conhecida, como desejava Kardec.

É de supor-se, ainda, que Kardec tenha levado alguns anos para obter a identificação precisa do espírito, mas é certo que esta lhe foi revelada em alguma oportunidade muito especial, pois, como vimos, ele diria mais tarde que, àquela época (1856), estava longe de imaginar a superioridade desse espírito. Mesmo depois de conhecida sua identidade, porém, Kardec manteve-se fiel ao seu compromisso de discrição, em obediência, aliás, a instruções específicas do espirito.

Não é, contudo, difícil descobrir-se de quem se trata, ou seja, quem é o Espírito Verdade, guia espiritual de Allan Kardec e dirigente máximo da equipe que formulou e transmitiu a Doutrina Espirita.

Em O Livro dos Médiuns, cuja primeira edição é de 1861, Kardec reproduz, no Capítulo XXXI - Dissertações Espiritas, várias comunicações, separando as que considera boas e autênticas, de outras, que ele não hesita em reunir sob o título "Comunicações apócrifas", ou seja, falsas. Uma delas, em especial, merece longa e interessantíssima referência, por trazer as seguintes características: 1) Fora recebida, em 1860, por um dos melhores médiuns do seu grupo; 2) o texto revela "superioridade incontestável da linguagem e das ideias"; 3) vinha assinada por Jesus.

Mesmo assim, contudo, a divulgação era feita "sob todas as reservas", em vista do respeito devido ao nome daquele que a subscrevia, o que representaria "insigne favor". Não que ele, Kardec, excluísse a possibilidade de uma comunicação direta do Cristo: "De modo algum - escreve - duvidamos de que ele possa manifestar-se". Preferiu, contudo, deixar as coisas ainda sob reserva, convidando os leitores a que "cada um julgue por si mesmo se aquele de quem ela traz o nome não a renegaria"

É evidente, porém, que ele a considera aceitável e autêntica, a despeito das ressalvas. Do contrário, tê-la-ia classificado como duvidosa, ou sumariamente apócrifa, como, aliás, fez com outras, também assinadas com o nome de Jesus. Ao comentar estas últimas, ele declara que nada há nelas de intrinsicamente mau, mas adverte que o Cristo não usou jamais aquela linguagem pretensiosa, enfática e empolada".

Três anos depois, contudo, ou seja, em 1864, ao publicar a primeira edição de O Evangelho Segundo o Espiritismo - com o título originário de Imitation de l'Evangile selon le Spiritisme (Ver 1ª edição brasileira do original francês, FEB, 1979, Rio), Kardec não teve dúvida em incluir, com algumas alterações redacionais de pequena monta, a mesma comunicação que, em O Livro dos Médiuns, fora atribuída a Jesus. A assinatura, porém, não é a de Jesus e sim do Espírito Verdade, bem como em outras que ali estão transcritas, no capítulo VI de O Evangelho, páginas 123 a 126, 57ª edição da FEB.

Essa é, aliás, a mensagem na qual figura a dramática e muito citada exortação:

- Espíritas! Amai-vos, este o primeiro ensinamento; instruí- vos, este o segundo. No Cristianismo se encontram todas as verdades; são de origem humana os erros que nele se enraizaram. Eis que do além-túmulo, que julgáveis o nada, vozes vos clamam: Irmãos! nada perece. Jesus Cristo é o vencedor do mal, sede os vencedores da impiedade.

Não há como duvidar, portanto, de que, em algum momento, presumivelmente entre 1861 e 1863, Kardec foi informado de que o Espírito Verdade era o próprio Cristo.

Essa identificação está clara, aliás, nos textos das mensagens reproduzidas em O Evangelho Segundo o Espiritismo, no já mencionado capítulo VI - O Cristo Consolador.

- Venho, como outrora, aos transviados filhos de Israel... O Espiritismo, como o fez antigamente a minha palavra... Revelei a doutrina divinal. Como um ceifeiro, reuni em feixes o bem esparso no seio da humanidade e disse: Vinde a mim, todos vós que sofreis.

Em mensagem recebida em Paris, em 1861, também reproduzida em O Evangelho Segundo o Espiritismo, encontramos esta outra observação:

- Estou convosco e meu apóstolo vos instrui.

- Sou o grande médico das almas - diz a comunicação recebida em Bordéus, em 1861 - e venho trazer o remédio que vos há de curar. (...) Vinde, pois a mim, vós que sofreis e vos achais oprimidos, e sereis aliviados e consolados.

A identificação do Espírito Verdade com Jesus é confirmada em outro livro de boa fonte mediúnica, publicado após a partida de Allan Kardec para o plano espiritual. Chama-se este Rayonnements de la vie spirituelle, tendo funcionado como médium, a sra. W. Krell, de Bordéus, autora também, do prefácio. (Suponho ter sido ela a médium que recebeu, em 1861, a mensagem subscrita pelo Espírito Verdade e incluída por Kardec em O Evangelho Segundo o Espiritismo). Rayonnements... é uma coletânea de comunicações de escritores e poetas da língua francesa, como André Chénier, Lamartine, Musset e mensagens outras de autoria de espíritos respeitáveis, inclusive Kardec e o próprio Espírito Verdade, que comparece com cinco textos de elevado teor.

No Natal de 1873, por exemplo, o Grupo de Bordéus recebeu a famosa Prece de Cáritas, e, no Natal seguinte, em 1874, o Espírito Verdade traz uma luminosa palavra de consolo e encorajamento, que assim começa:

- Qual o país que, nesta noite, meu nome não seja pronunciado?

Por toda parte, onde se encontrem corações sinceros, envio um raio de luz, mas, como outrora, não manifestarei minha presença entre o incenso, o ouro e as flores; como outrora, não escolho um palácio, mas humilde manjedoura, berço de devotamento e de amor, asilo de felicidade!

Em abril de 1873, uma "sexta-feira santa", escreve o Espirito Verdade, por intermédio da Sra. Krell:

- Filhos, por toda parte, nesta noite, glorifica-se a morte do Cristo, por toda parte, o engano, pois não é a sua morte que vos resgatou, é a sua vida!

Não é, também, pelo seu sofrimento de algumas horas prossegue - que o ser humano se resgata, porque muitos outros foram martirizados por suas ideias, e sim pela sua doação "na plenitude da minha vontade e do meu amor".

- O que resgata a terra é a realidade espiritual, cuja existência demonstrei; é o meio de vencer a matéria e chegar à perfeição, que ensinei em cada momento de minha vida aqui embaixo.

- Um só caminho - diz, mais adiante - leva à perfeição: a Caridade! Ensinai a minha doutrina em toda a sua simplicidade.

Mostrai aos cegos que vos cercam, a puerilidade dos seus costumes, a vaidade de seus cultos. Mostrai que é somente a Deus que se deve adorar. Dizei-lhes que o mais belo templo é um coração puro; que a melhor prece, é o trabalho, é o pensamento de amor pelas criaturas e de reconhecimento ao Criador!

- Pregai não somente por palavras - é o ensinamento final desta bela mensagem - mas sobretudo, pelo exemplo! Eu vos dou meu pensamento, eu vos atraio a mim, caminhai em paz à sombra do meu estandarte.

Na Introdução, também recebida mediunicamente por Madame Krell, Melanchthon (espírito) diz que é à entidade que hoje se chama Espírito Verdade, que devem ser dirigidas as nossas homenagens, "a esse espírito sempre grande, espirito perfeito que jamais se desviou do caminho da virtude".

Em instruções transmitidas pelo médium sr. Albert, da Socidade de Paris, conforme se lê na Revista Espírita, de janeiro de 1864, Hahnemann discorre sobre o grave problema da obsessão, que poderá ser minorado quando, "pelo melhoramento de sua conduta, cada um procurará adquirir o direito que o Espírito de Verdade, que dirige este globo, conferirá quando for merecido".

Em Missionários da Luz, reproduz André Luiz emocionada prédica do mentor Alexandre, que adverte:

-... Porque audácia incompreensível imaginais a realização sublime sem vos afeiçoardes ao Espírito de Verdade, que é o próprio Senhor?

Não há, pois, como ignorar a óbvia e indiscutível conclusão de que, sob o nome Espírito Verdade, o Cristo dirigiu pessoalmente os trabalhos de formulação e implementação da Doutrina dos Espíritos, caracterizando-a como o Consolador que prometera há dezoito séculos. A Doutrina Espírita é a sua doutrina. Os espíritos que nela colaboram, a ele estão subordinados, Kardec é o seu apóstolo e o trabalho terá prosseguimento em nova etapa, quando o próprio Kardec, ainda jovem e reencarnado em novo corpo, retomar a sua tarefa para levá-la a novos patamares de realização.


Hermínio C. Miranda
Do livro: As mil faces da realidade espiritual

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