A justiça e a misericórdia
Richard Simonetti
Sara preocupava-se com o marido.
Desde que rotineiro exame revelara persistente elevação de sua pressão arterial, empenhava-se em deixá-la informada de seus negócios e compromissos.
- Isso é mau agouro, Joel. Não gosto quando você fala assim...
- Sejamos realistas, meu bem. Viver é um risco. Todos estamos sujeitos a desencarnar repentinamente.
- Minha realidade é você. Sem sua companhia a existência será um pesadelo!
- Adorável poetisa! Amo-a muito! Não obstante, devemos estar sempre preparados para eventual convocação do Além, evitando deixar “nós” para os que ficam.
- Você nunca foi de dar “nós”. Pelo contrário, o que mais faz é ajudar as pessoas a desatá-los.
- De qualquer forma é importante tomar conhecimento do que diz respeito aos nossos compromissos. Saiba, também, que se eu desencarnar, há um bom seguro e um fundo de pensão que lhe garantirão o necessário para cuidar de nossos três filhos...
- Que precisam muito de você, particularmente o Celsinho com suas limitações mentais.
- Fique tranquila. Não pretendo partir no verdor de meus trinta e nove anos, mesmo porque há muito trabalho na seara espírita. Nossa cidade precisa de gente com as mangas arregaçadas e disposição é o que não me falta.
- Isso até me tranquiliza. Penso que nossos amigos espirituais terão o máximo empenho em preservar sua saúde. Afinal, será difícil encontrar outro Joel.
Sara tinha razão. Se a duração da jornada humana pudesse ser condicionada à utilidade, Joel chegaria facilmente aos cem anos. Era um dínamo abençoado, sempre empenhado em ajudar o semelhante, na atividade profissional, no lar, na organização assistencial, no Centro Espírita...
Mas o Céu tinha outros planos para ele. Confirmando seus indefiníveis sentimentos premonitórios, Joel retornou à Espiritualidade pouco depois, vitimado por um acidente de trânsito.
Foi um rude golpe para o movimento espírita local, que perdia sua liderança mais expressiva, e particularmente para Sara, que não conseguia aceitar a separação.
Como, sem seu apoio e carinho, enfrentar os desafios da existência, o cuidado dos filhos? E o Celsinho, como ajudá-lo de forma efetiva sem a proteção paterna?
Não se conformava. Afinal, havia tantos criminosos, tantos inconsequentes egoístas, cuja morte seria um benefício para a Humanidade, e logo seu marido, um homem digno e nobre, tão útil a tanta gente, deveria ter sua vida ceifada prematuramente?
Companheiros espíritas lembravam que o simples fato de Joel experimentar a premonição do próprio desencarne demonstrava que se tratava de um evento programado, que fazia parte de suas provações, mas Sara não se conformava.
Mergulhada na depressão, recusava-se a retornar à normalidade, alimentando a perigosa ideia de que seria preferível morrer.
Até que, certa noite, na reunião mediúnica da qual participava, generoso benfeitor espiritual disse-lhe:
- Sara, sua inconformação é incompatível com seus conhecimentos. Você sabe que nada ocorre por acaso.
Voz entrecortada de soluços, em incontida angústia, a jovem argumentou:
- Sei que existem problemas cármicos envolvendo situações dessa natureza, mas tenho aprendido que o bem que exercitamos hoje neutraliza o mal que praticamos ontem. Considerando que Joel era precioso instrumento da Espiritualidade na Terra, porque não lhe foi preservada a Vida? Não seria mais justo deixá-lo resgatar seus débitos com o esforço da Caridade, em que pontificava como devotado servidor do Cristo?
O mentor aguardou por alguns instantes, até que fossem menos abundantes as lágrimas, e redarguiu, sereno:
- Seu argumento é ponderável, mas equivocado, porque desconhece a extensão dos compromissos de Joel. Seu desencarne, muito mais que o cumprimento da Justiça, foi um ato de Misericórdia que beneficiou não apenas ele, mas, sobretudo, você.
- Não estou entendendo...
- É fácil explicar. Segundo compromissos que ambos assumiram, Joel deveria sofrer derrame cerebral que o sujeitaria a uma vida vegetativa, prisioneiro de um corpo inerte, incomunicável. Você cuidaria dele por aproximadamente 10 anos...
O Espírito amigo fez uma pausa, deixando que a jovem viúva assimilasse o significado daquela revelação, e concluiu:
- Tendo em vista os méritos de seu marido, foi-lhe poupada a dolorosa experiência e ele retornou à Espiritualidade, de onde continua a ajudá-la nos encargos que lhe competem, conforme sua programação de vida. E pede-lhe que desate o “nó” da amargura, superando o pesadelo da transitória separação com o sonho de glorioso reencontro na imortalidade.
A partir desse dia Sara readquiriu a disposição de viver, enfrentando com serenidade e coragem seus compromissos, lembrando sempre que ela e o marido haviam recebido uma grande dádiva do Céu.
Muitas pessoas questionam os acontecimentos difíceis e dolorosos, enveredando por caminhos de rebeldia e desalento que lhes multiplicam os sofrimentos.
Ignoram que não há males alheios à Justiça Divina, nem dores não suavizadas pela Divina Misericórdia.
Richard Simonetti do livro:
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