quinta-feira, 29 de junho de 2023

O campo, a ferramenta e a semente

O campo, a ferramenta  e a semente

João Marcus 

(pseudônimo de Hermínio C. Miranda)

Revista Reformador Jul. 1977

MUITO SE TEM ESCRITO E debatido a cerca do problema da responsabilidade inalienável do ser humano na manipulação do seu arbítrio. De certa forma, a controvérsia multissecular entre os partidários da livre escolha e os do determinismo, embora tornada inapelavelmente obsoleta pela Doutrina dos Espíritos, sobrevive na discussão acadêmica entre filósofos e teólogos dos mais variados matizes. A terminologia pode ser mais sofisticada e a semântica bem mais elaborada, mas são muitos os que prosseguem discutindo basicamente os mesmos conceitos que atormentaram os pensadores do passado e incendiaram debates apaixonados.

A doutrina reformista da predestinação, decorrente de uma interpretação inadequada da teologia de Paulo, não passa de uma aplicação dogmática do conceito do determinismo. Segundo essa escola de pensamento, a criatura humana nasce – supostamente para viver uma existência na carne – já predestinada por Deus a salvar-se ou a ser condenada às penas eternas, sem nenhum apelo, qualquer que seja o seu procedimento. As contradições que esta esdrúxula doutrina criou no contexto do pensamento teológico são insuperáveis, por mais que se apliquem os eruditos teólogos para explicá-las. O extraordinário, contudo, é que tantos desses brilhantes pensadores não tenham ainda percebido que o problema da responsabilidade pessoal não se resolve, de maneira simplista, com a elaboração de uns poucos dogmas ou frases engenhosas. Não se apercebem, esses autores, de que é precisamente o dogma que está obstruindo a visão mais ampla, que os levaria à essência do problema.

Não queremos, com isso, dizer que o Espiritismo é o dono da verdade, como ninguém é dono do ar que respira, ou da luz solar, que ilumina e aquece a todos por igual. É certo, porém, que a aceitação das verdades contidas no Espiritismo um dia há de fecundar todo o pensamento humano, nos aspectos mais vastos que pudermos conceber: ciência, filosofia, teologia, ética. Como também é certo que os formuladores da Doutrina Espírita não inventaram conceitos novos nem fantasiaram o que ainda não era oportuno revelar. Ao contrário, sempre nos advertiram a cerca do caráter gradualístico da revelação, que se desdobra por etapas no curso dos séculos, apoiada sempre em alguns conceitos básicos intemporais que vão sendo dosados segundo a capacidade de apreensão dos homens, o que vale dizer, conforme sua posição evolutiva. Antes que ele esteja pronto, o ensino de verdade superior seria prematuro e até prejudicial, o que se evidencia agora mais do que nunca, quando presenciamos o descalabro em que mergulharam as comunidades humanas em virtude da posse de conhecimento avançados totalmente inoportunos ante a generalizada imaturidade moral.

No entanto, jamais faltou a advertência amiga e o severo chamado à responsabilidade pessoal. A despeito de tudo, o homem sempre achou que podia burlar ou ignorar a lei inescrita de Deus ou negociar com o Pai um acordo, mediante propiciações mais ou menos infantis, com as quais tenta-se “comprar” a boa-vontade do Senhor e o seu perdão. É claro que o perdão está implícito na natureza divina, pois é da própria essência do amor, mas é preciso também entender que o perdão não nos exime da reparação do erro cometido. Daí o lamentável equívoco que se incorporou ao “sacramento da penitência” dos nossos irmão católicos, que se julgam limpos de seus pecados depois de confessá-los ao sacerdote e proceder a um pequeno ritual apropriado. Não é assim, pois a responsabilidade pelo erro continuará ali, viva e atuante. Resultado de uma falha na utilização do livre-arbítrio relativo, que as leis divinas nos conferem, o erro cria para todos nós, indistintamente, quaisquer que sejam as nossas crenças ou descrenças, o determinismo intransferível do resgate, e quanto mais erramos mais se aperta o círculo de ferro em torno de nós, até que a própria lei interfere em favor do pobre transviado para que não se prejudique ainda e indefinidamente. Mecanismo este, aliás, extremamente sutil, que trás em si uma aparente contradição, mas que nada tem de contraditório: a lei suspende temporariamente o exercício do livre-arbítrio precisamente para preservar na criatura o seu direito a ele. De fato, se a persistência no erro não reduzisse progressivamente nossa faixa de livre escolha, é fácil imaginar, por projeção, que chegaríamos a um ponto em que toda a nossa liberdade estaria extinta, cassada por nós mesmos. É disso que nos protege a lei.

Tudo isso, porém, são exercícios teóricos da faculdade de cogitar que é própria do homem. “Cogito, ergo sum”, dizia Descartes e esta foi a sua primeira certeza. Muitos são, porém, aqueles que não possuem nem o gosto, nem o preparo para esse tipo de especulação, mesmo porque o Cristo nos ensinou que a Verdade se revela com mais facilidade ao simples do que ao erudito, certamente porque este se perde no labirinto das suas especulações e como que se deixa fascinar pela música das suas próprias palavras.

A erudição balofa e complexa inexiste no pensamento de Jesus. Sua mensagem é pura, simples, clara, concisa e se coloca ao alcance de todas as inteligências e culturas, em todos os tempos, sob todas as condições. Quantas vezes, aqui e no passado distante, temos ouvido essas verdades elementares? Quantas vezes nós mesmos as ensinamos, nem sempre convictos da sua autenticidade? Pois, agora, informados pela Doutrina Espírita, é mais que tempo de as entendermos em toda a sua profundidade e significado, dado que vamos encontrar, no mesmo Evangelho que estudamos e pregamos durante quase dois milênios, em tantas e tantas vidas, o foco irradiante da luz que ilumina as estruturas do Espiritismo. Em outras palavras: levantando os fios luminosos com os quais foi tecida a Doutrina dos Espíritos veremos que eles vão dar todos, lá naquele núcleo abençoado de pensamento criador no Mestre Nazareno.

Tomemos um só exemplo: a parábola do rico e de Lázaro.

Não faltavam ao rico: boas roupas, mesa farta, amigos, vida livre e, segundo os padrões humanos, extrema felicidade. Enquanto isso, Lázaro, um mendigo coberto de chagas e andrajos, ansiava pelas migalhas que sobravam da mesa rica. Com a morte, Lázaro libertou-se de suas aflições e partiu para o seio de Abraão, enquanto o rico ficou a penar no umbral. Foi daí que ele teve a visão de Lázaro junto de Abraão e gritou:

- Pai Abraão, tem pena de mim e manda Lázaro, para que molhe em água a ponta de seu dedo, a fim de me refrescar a língua, pois estou atormentado nestas chamas.

- Filho – respondeu Abraão, com firmeza – lembra-te de que recebeste teus bens em vida, enquanto Lázaro, somente males; por isso, ele agora é consolado e tu atormentado. Além de tudo, há entre nós um grande abismo, de modo que nem os daqui podem ir a ti, nem tu podes vir a nós.

Rogo-te, contudo pai Abraão – insistiu o rico – que o envies à casa de meu pai, pois tenho cinco irmãos, para que os avise, a fim de que não venham eles também para este lugar de tormento.

- Eles tem lá Moisés e os profetas. Que os ouçam! - retrucou Abraão, inflexível.

Não, pai Abraão – ainda falou o rico -, se for a eles algum dos mortos, eles se arrependerão.

- Se não ouviram a Moisés e aos profetas – disse afinal Abraão, para encerrar -, tampouco se convencerão, ainda que um morto ressuscite.

*

Analisemos com um pouco mais de profundidade essa pequenina peça filosófica-moral, à luz da Doutrina dos Espíritos: ali estão a transitoriedade dos bens mundanos que nos são apenas emprestados, pela sabedoria divina, para os testes destinados a avaliar o progresso realizado; a anestesiante influência desse poder efêmero sobre o sentido da solidariedade humana; o esquecimento dos compromissos; o resgate pela dor; a responsabilidade pessoal de cada um pelos seus atos, tanto quanto o mérito pelas realizações positivas; o conceito da sobrevivência do Espírito, que enfrenta no mundo póstumo as consequências do que realizou ou deixou de realizar; a possibilidade de entenderem-se Espíritos desencarnados e encarnados; a firmeza da lei que nos confirma o duro determinismo do resgate, para corrigir os erros praticados em decorrência dos desvios do livre-arbítrio; a presença constante de advertências amorosas, que insistimos em ignorar (eles tem Moisés e os profetas!); a descrença com a qual sempre foi acolhida a manifestação dos seres desencarnados; e, finalmente, a necessidade incontornável de um longo e penoso trabalho pessoal de recuperação, de reconstrução, de pacificação interior.

Entre Lázaro redimido na dor e o rico que ainda estava no caminho de ida, nos seus desenganos, há um abismo de tempo a vencer. Encontram-se em níveis espirituais que os separam, não por força de um privilégio, mas em decorrência de um dispositivo automático que classifica as criaturas segundo seu peso específico que, por sua vez, está na dependência de suas conquistas espirituais, de seu trabalho de purificação, de renúncia, de sabedoria, de fraternidade. O abismo de que fala Abraão nada tem de físico; ele é moral, é uma questão de gradação numa vastíssima escala de valores. Um dia o rico também estará redimido, junto de Lázaro, sob as vistas de Abraão, mas é preciso que ele realize em si mesmo a tarefa indelegável do reajuste perante as leis desrespeitadas pelo seu livre-arbítrio.

Há mais, porém, a observar com relação à parábola. É na sua aplicação a nós mesmos, à nossa condição atual. Ela nos convoca a um reexame contínuo de posições. Não estaremos mergulhados na inconsciência do rico a malbaratar bens materiais, espirituais e culturais? Não estaremos esquecidos do dever de servir, onde estivermos, àqueles que a misericórdia divina colocou junto à nossa mesa farta? Não estaremos a insistir que nos enviem mais testemunhos quando já temos diante de nós o exemplo dos que trilharam antes os caminhos que ora percorremos? Não estaremos a pedir a constante presença dos “mortos”, com as suas exortações, quando contamos, de há muito, com os claros postulados da Doutrina?

A misericórdia do Senhor cedeu-nos o campo, a ferramenta e a semente. Faz o sol aquecer a terra e envia a chuva a regá-la. A nós apenas competem as tarefas de arar e semear. O que estamos esperando? A agonia e o remorso, a impotência e o desespero da dor ante o abismo que nos separa daqueles que já se encontram no “seio de Abraão”?

João Marcus
Revista Reformador Jul. 1977

Hermínio C. Miranda
(Sob pseudônimo de João Marcus)

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Nota explicativa: - Hermínio C. Miranda também assinava seus artigos como João Marcus e H.C.M. Este expediente foi sugerido pelo editor da Revista Reformador para que pudessem ser publicados mais artigos dele em uma mesma revista. 
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