A restauração
Victor Hugo
Victor Hugo |
Toda uma era de agressividade e descalabros se aproxima do seu fim inexorável.
As sementes da discórdia, atiradas a esmo na terra dos corações, germinam com abundantes crises que fazem o estertor das modernas estruturas, cujas aparentes bases de segurança se permitem pulverizar sob os camartelos da insatisfação geral.
A falência inevitável dos valores éticos se apresenta imediata, em face das buscas do prazer alucinado, que entenebrece os sentimentos, enquanto a indiferença pela criatura humana, em si mesma, e pelos povos em geral, atesta a fúria bestial de indivíduos e governos desarvorados sob o estridor das forças desconcertadas decorrentes das emoções e instintos asselvajados.
Estabelece-se a paz sob a mira de ogivas de mísseis intercontinentais e de médio alcance, com ilimitado poder destrutivo, enquanto a diplomacia dos sorrisos mal oculta a sanha armamentista dos que desejam submeter o mundo aos pés, sem dar-se conta das sombras do sepulcro que já lhes cobrem a simulada vitalidade orgânica de que se fazem possuidores.
A fome que grassa no mundo ceifando milhões de vidas por ano, e as enfermidades que zombam das conquistas médicas, porque não debeladas, são estudadas e discutidas em busca de soluções não desejadas, em hotéis de superluxo, e banquetes, nos quais o supérfluo excede entre sorrisos de representantes das nações que jamais examinaram de perto os problemas, informados somente por estatísticas elaboradas em setores especializados para onde convergem os dados a serem computados.
A loucura de todo porte domina as ruas da Terra, por transbordarem dos lares onde os conflitos explodem em intensidade, e dos lugares de trabalho, nos quais o equilíbrio se torna impossível, como decorrência das circunstâncias e fatores desumanizantes. Surgem e se generalizam conflitos psicológicos individuais, que afetam os grupos sociais e os dissociam, fermentando as massas que externam recalques, necessidades e frustrações em forma de saques e violências de toda espécie, porque padecem a infamante pressão do poder que os oprime e os ignora.
Em contrapartida, os poderosos, porque colimaram as metas que almejaram, desmotivam-se e a insânia neles se estabelece, promovendo espetáculos que açulam as paixões primitivas e os tornam humilhados em si mesmos, sem qualquer respeito pela própria, e pela vida alheia.
Multiplicam-se os paradoxos num contexto histórico de transição.
Os líderes dos povos estertoram, jugulados a outros senhores que os comandam, conduzindo e sendo conduzidos.
Materialistas trabalham pela paz, e religiosos fomentam as revoluções; pesquisadores exaurem-se na busca de equações para os problemas humanos, enquanto as multidões ensurdecem-se diante das propostas positivas para o seu bem-estar; missionários da ciência promovem a esperança e o povo agita-se na rebeldia; astrofísicos buscam vida fora da Terra, na medida em que os seus governos aplicam fortunas que venceriam a maioria dos males que a destroem no planeta; atuam governos e povos trabalhando pelos “direitos humanos”, que espoliam com agressões a minorias raciais e a pequenos países onde atuam os seus serviços de inteligência...
Ironicamente dão-se as mãos a miséria e a abundância, misturando-se lágrimas de dor, esgares de ódio, risos de prazer...
A inteligência que busca as estrelas, desdenha do astro onde se radica.
Negando a fé, a ciência foi conduzida pela razão filosófica a encontrar o nada e afirmá-lo, defrontando, por fim, a energia como fonte única de tudo, na qual o espírito se individualiza sob o comando da divina presença que lhe é independente, causal, pensante e atuante.
No báratro das desconexas situações são reformulados, apressadamente, os conceitos sob a origem dos seres, da vida e suas finalidades, sem modelos adredemente estabelecidos nem fórmulas simplistas de aplicação imediata.
Havendo falhado a tecnologia e a presunção científica em geral para tornar o homem feliz, ei-lo que se volta para Deus, a Fonte Inexaurível, e para o amor, Seu investimento maior, numa excelente proposta de autorrealização e de paz.
Começa a restauração da criatura, que se ergue do caos de uma civilização aturdida, sob esforços de superação imediata dos atavismos ante os acenos da felicidade.
Uma cultura trabalhada sobre o respeito à vida substituirá o estereótipo tradicional que fez do homem a cobaia para todos os experimentos.
Uma fé no futuro espiritual, numa religião comum a todos os homens, fundamentada nas experiências do intercâmbio dos Espíritos e da reencarnação como demonstra o Espiritismo, centralizada nos pontos essenciais de todas: Deus, imortalidade da alma, justiça divina, a oração e a caridade como expressão do amor aplicado na ação do bem.
Uma filosofia otimista, porque conhecedora do equilíbrio das leis que regem a vida e favorecem um comportamento ideal.
Evidentemente, há muito por fazer entre os escombros sociais e políticos, éticos, econômicos e humanos.
Os pioneiros da restauração, que testemunham a inabordável hecatombe moral da Era que passa, não poderão mensurar os recursos a serem aplicados na grande luta que já se trava em toda parte, conscientes de que iniciam a obra, mas os resultados pertencem ao futuro. Abrem espaços, preparam as mentes, despertam os indivíduos e atuam sem cansaço, ignorando sacrifícios e renúncias, bandeirantes do novo ciclo.
Não importem os investimentos que parecem não render valores creditáveis, que somente serão considerados mais tarde.
A semente jaz esquecida até o momento em que germina e responde com vida ao chamado da Vida.
Uma fímbria de tênue claridade na noite é vitória da luz sobre a treva.
Logo mais, na restauração, uma bandeira tremulará em toda parte, ao lado de todas: a da paz; um idioma se falará junto aos demais: o da fraternidade; um ideal se fará presente no meio dos outros: o do progresso; e uma religião única estabelecerá a ponte de união entre o homem e Deus: a do amor universal.
Paris, França, 01.11.1983.
- Para seguirmos corretamente o espiritismo, devemos submeter todas as mensagens mediúnicas ao crivo duplo de Kardec, sendo eles, a razão e a universalidade.
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