O que pode fazer a fortuna
Amália Domingo Soler
Folheando vários jornais, lemos em "O Novo Ateneu" o seguinte artigo: — "Ainda que as comparações sejam odiosas, vamos fazer uma que manifesta a diferença de capital dos três homens mais ricos da Terra.
Mackey, capital: 55.000.000 de libras; por ano, 2.750.000; por mês, 200.000; por dia, 7.000; por hora, 300; por minuto, 5. Duque de Westminster, capital: 16.000.000 de libras; por ano, 800.000; por mês, 60.000; por dia, 2.000.
Senador Jones de Nevada, capital: 20.000.000 de libras; por ano, 1.000.000; por mês, 80.000; por dia, 3.000; por hora, 120; por minuto, 2.
De maneira que o homem mais rico do mundo é Mr. Mackey, cuja fortuna aumenta cinco libras esterlinas por minuto.
Há vinte anos, viajava pelos Estados Unidos como vendedor ambulante e, fazem dezesseis anos era um pobre diabo sem vintém. Hoje, com idade de quarenta e cinco anos, possui as três oitavas partes da grande "Bonanza", mina argentífera situada em Nevada, a mais rica que se conhece, e que produz uma renda anual de 2.750.000 libras a cinco por cento.
Mr. Mackey tem um magnífico hotel em Paris, onde vive sua família, enquanto ele passa a maior parte do tempo perto do ponto onde estão seus interesses.
Só nos ocorre a seguinte pergunta: — Que fará ele de sua fortuna ou melhor: — Que a fortuna fará dele?
Eis aqui uma pergunta profundamente filosófica: — Que fará a fortuna, de um milionário? Quantas coisas poderá lhe fazer?
Pode fazê-lo, um agente da Providência e um verdugo da Humanidade! O amparo dos aflitos e o tirano dos pobres! A esperança dos tristes, e o desespero dos necessitados! A puríssima luz da aurora, e a noite sombria. Tudo isto e muitíssimo mais poderá fazer a fortuna de um homem rico.
Um homem rico pode fazer tanto bem ou muito mal! Desgraçadamente, os ricos deste mundo (em sua maior parte) são fracos para resistir à prova da riqueza, pois prova grande é ser dono de imensos tesouros, pois estes proporcionam múltiplos gozos que formam uma atmosfera de adulação contínua, porque um rico por muitos defeitos que tenha, ninguém se atreve a dizer-lhe frente a frente, que é um miserável.
Acontece, às vezes, matá-lo à traição, mas diante dele todos sorriem, pois o ouro tem um poder especial sobre as multidões; por isso, é difícil que o rico progrida, porque por si só terá que fazer todo o trabalho de sua regeneração.
Tem que desprender-se do afã de entesourar, terá que pensar nos pobres, ainda que ele não conceba o que é a pobreza; terá de apiedar-se do infortúnio, sem conhecer os azares da desventura; e não há nada mais difícil que encarregar-se de dores que nunca sentimos.
Contou-nos, um amigo nosso, (homem muito sofredor) que, quando era pequeno, ocupava uma boa posição.
Todas as noites saía com sua mãe, e passavam diante de uma igreja, em cuja porta se encolhiam de frio uns mendigos de ambos os sexos, que dormiam sob a intempérie. A mãe de nosso amigo olhava aquele tristíssimo quadro e dizia apertando o braço de seu filho:
— Ai, Antônio, damos muitas graças a Deus que nos concedeu uma boa cama! O menino encolhia os ombros, e segundo nos contou, dizia para si: — Minha mãe é tonta, dá graças a Deus porque temos uma cama, quando é uma coisa que todo mundo tem.
Passaram-se os anos e o menino se fez homem, perdeu seus pais, sofreu rudes mudanças de fortuna, e chegou uma época que teve que dormir todo um verão sentado num banco do Prado de Madrid; quando depois de tantas privações pôde ganhar para viver, o primeiro que fez foi comprar um catre e um colchão, e alugar um quartinho num quinto andar; ao chegar a noite, quando pela primeira vez viu-se só em seu quarto, caiu de joelhos, pensando em sua boa mãe, exclamando com íntima efusão: — Ah, minha mãe, eu te chamava tonta, em minha inocência, porque davas graças à Deus de ter um leito onde dormir. E eu também agora me sinto feliz porque tenho uma pobre cama onde posso descansar. Graças, meu Deus, que me concedeste o que eu olhava com tanta indiferença em minha infância.
E o pobre jovem nos dizia que nem uma só noite deixou de dar graças a Deus antes de deitar-se, apiedando-se profundamente dos mendigos que dormem no duro chão, mas se compadeceu deles depois que soube o que é viver sem casa nem lar. Do mesmo modo os ricos olham com indiferença o sofrimento dos pobres, porque não sabem o que é pobreza. Eis aqui porque dizíamos que a riqueza é a prova mais difícil a que se pode submeter o espírito, e a que tem piores consequências; porque a maior parte desses pedintes de corpo torcido, de organismos disformes que os têm que arrastar em um carrinho, foram maus ricos, e negaram as migalhas de pão que deixavam seus cachorros, a mendigos esfomeados que pediam com lágrimas amargas, um olhar de compaixão.
Vimos, ultimamente, uma menina que, segundo dizem, tem seis anos, conduzida em um carro de três pés de comprimento e dois de largura. A menina não sabemos como está configurada, mas seus braços dessecados, e suas pernas que parecem duas tiras de pergaminho, estão cruzadas de um modo estranho diante de seu rosto cuja expressão é de idiotismo. Em sua cara redonda e de boa cor, se desenha um sorriso vago e aquele monte informe de carne e farrapos, inspira compaixão e repugnância ao mesmo tempo.
Uma pobre jovem miseravelmente vestida puxa uma corda atada ao carro, e um enxame de crianças de rua rodeiam aquele veículo de miséria.
Nós, dolorosamente impressionados, contemplamos alguns momentos aquele deserdado da Terra e lhe perguntamos repetidas vezes com nosso pensamento: Que fizeste ontem? A Terra estremeceu sob o enorme peso de teus crimes? Gemeram as multidões escravizadas batidas por teu terrível látego? Que horrível deve ser teu passado, quando é tão espantoso teu presente!
Embebidos em nossas reflexões seguimos nosso caminho, mas a menina vive desde aquele dia a pergunta intencionada que faz "O Novo Ateneu", referindo-se ao primeiro milionário da Terra. Que fará ele de sua fortuna ou que fará sua fortuna dele? Imediatamente recordamos a infeliz entrevada, aquele pobre ser que se olha e, se não fosse pela cabeça, duvidaria se dentro daquele carro vai uma pessoa, ou um irracional, e dissemos com profunda tristeza: — Que fez a fortuna de ti? E uma boa, uma clara intuição, um repetido sacudimento que agitou nosso ser, nos indicou que um de nossos amigos de além-túmulo queria pôr-se em comunicação conosco e obedecendo à influência, escrevemos o seguinte relato:
"Eu te agradeço, pobre ser da Terra, que tenhas piedade dos que ainda são mais pobres que tu. Olha sempre pelos pobres! Especialmente pelos que dizem, vulgarmente, assinalados pela mão de Deus; esses são os assinalados pela inequidade de suas próprias obras. Deus, todo amor, beleza e harmonia, não pode criar nada desarmonioso; o Espírito depois de criado é o escultor que modela seu envoltório, e a obra corresponde à sabedoria do Espírito.
O vulgo, no meio da ignorância, algo vê nessas grandes vítimas; não sabe explicá-lo, e diz inconscientemente: homem aleijado não pode fazer boa coisa, se leva em cima a cólera de Deus! E o que realmente leva é sua má condição, é a perversidade de seu Espírito, é a rebeldia de seu caráter indomável, que nem ainda estando esmagado pelo peso de suas cadeias se humilha e se confessa vencido, mas que, muito ao contrário, é irascível, violento, iracundo, que odeia a Humanidade, ainda a olha com sorriso hipócrita para inspirar-lhe mais compaixão. Mas, no fundo de sua alma guarda o germe de seus passados desacertos, quisera ter a força suficiente para continuar praticando o mal.
Fazes bem em olhar com interesse esses grandes infortúnios, porque nesses seres vês o epílogo das horríveis histórias que a Humanidade guarda. Não entendas por epílogo o ponto final da vida, porque esta não tem fim. As etapas do progresso dos Espíritos dividem-se por épocas, e estas comportam várias encarnações e, ao fim dessas existências de dor, é o que eu chamo epílogo.
Se visses quanto me fez sofrer essa menina que tanto te impressionou! Se a tivesses visto, faz alguns séculos: era formosa como as Graças de vosso Olimpo; era discreta como vossa deusa Minerva; era honesta como vossa casta Susana! Mas, ai, os vícios tentadores se apoderaram daquele Espírito débil ainda para resistir à prova de felicidade. E caiu, caiu no fundo do abismo! E passarão centenas de séculos antes que deixe o pântano de suas inquietudes.
Pobres iludidos da Terra, quanta lástima me inspirais ao escutar vossas palavras fazendo planos de felicidade. Nem um só de vós diz: quero ser bom; todos em coro exclamam: quero ser rico. Isto é, quero lutar com o inimigo mais formidável, quero expor-me a perder a ternura da alma, endurecendo meu Espírito; quero embriagar-me com o ópio da adulação, quero ser grande entre os vermes da Terra, para amanhã viver esquecido e passar desapercebido entre os Espíritos regeneradores.
Inspira-te compaixão, essa pobre menina, e hoje é feliz em proporção a ontem, porque ontem inspirava ódio e desprezo e hoje desperta a compaixão. Esses Espíritos rebeldes são ainda mais desgraçados na erraticidade, porque ali se encontram sós com suas leviandades, e a mesma sombra que os envolve não lhes permite ver as almas amigas que os querem consolar em seu duelo. Só veem suas existências de crimes, e só escutam vozes perdidas que lhes acusam, como acusaram durante alguns séculos essa pobre entrevada da Terra.
Sim, esse infeliz Espírito chegou a subir o pináculo de todas as grandezas humanas, porque não se contentou em ser mulher bela, sábia e pura. Quis o poder, quis a riqueza, mas a riqueza fabulosa. Quis a soberania da sedução, quis lutar com todos os inimigos da alma, e deu-se aos pérfidos agrados da concupiscência, manchou o tálamo nupcial e profanou os laços de família, com incestuosos concubinatos. Regou com sangue o caminho de sua vida, para apagar a marca de seu crime, que o abismo atrai, e aquele que dá o primeiro passo se precipita no fundo. Compadecei, sim, compadecei desses deserdados da Terra, quiçá ontem fossem esses seres o delírio de vossa alma e, por obter um de seus olhares, perdestes uma existência entre as leviandades de impudicos prazeres.
Correi, correi como fazeis em prol dos sofredores; lede nesses livros mais eloquentes que todos os vossos tratados de filosofia. Nem vosso Sócrates, nem vosso Platão, nem vosso Sêneca, nem vosso Aristóteles, nem vosso Tomás de Aquino, nenhum de vossos grandes sábios, vos darão as úteis lições que vos dão esses seres disformes rodeados de todas as humilhações e de todas as dores.
Estudai, sim, estudai nesses horríveis infortúnios todas as degradações a que se submete o Espírito, que só quer satisfazer os grosseiros apetites da carne.
Quando um pobre bate em vossa porta não somente lhe deveis dar esmola, falai com ele, não o façais por caridade, façai-o por egoísmo. Olhai bem sua repugnante figura, reparai em seus sujos farrapos, façai retroceder vossos pensamentos alguns séculos atrás, e vereis, se quereis ver, aquela mesma que tendes diante, revestida de púrpura e arminho, ostentando em sua destra o cetro do poder.
Os mendigos são as recordações palpitantes da vida de ontem, apiedai-vos, amai-os, protegei-os, que se com indiferença os olhais, amanhã lhes fareis companhia, pois mais perto estais dos terrenos da mendicância que dos mundos de luz.
Tendes razão, bom Espírito, mais perto estamos, os homens, da dor que do prazer, confundem-se perfeitamente na mera circunstância de estar na Terra, onde há tantos seres que vivem sem lar, que passam o dia na rua e à noite vão aos lugares insalubres, chamados casas de dormir, onde por vinte e cinco cêntimos lhes permitem jogar-se em um pouco de palha e aí dormem os grandes opressores de ontem.
Os mendigos são os restos de passadas grandezas, são o complemento da história universal, são o índice dos desacertos humanos. Eles nos testemunham os crimes do passado, por isso devemos conviver com eles, primeiro para consolá-los e segundo para tocar bem de perto a consequência dos erros, e precaver-nos de voltar a cair; como diz mui oportunamente o Espírito, a maioria dos terrenos estamos mais perto da^ sombra que da luz. As penitenciárias não foram feitas para os justos e sim para os pecadores.
Que fomos ontem? Que seremos amanhã? Eis aqui as perguntas que os homens se fazem, mas nos falta fazermos a melhor: Que somos hoje? O hoje nos diz o que seremos amanhã. Perguntemo-nos, constantemente, que somos hoje, estudemos nossa vida, as aspirações de nosso espírito, e não façamos perguntas inúteis, porque em nós levamos a solução do problema de nossa existência.
Na Criação não há mais que um caminho: o Bem; sigamo-lo, por ele, deixaremos este triste planeta onde os tiranos de ontem se condenaram à si mesmo a trabalhos forçados por toda uma existência.
Pobre menina, vives em nossa memória, com teu pequeno carro, com teus membros descolados e enfraquecidos, com teus farrapos, com tua miséria e expiação.
Iluminai-nos Senhor, queremos progredir, queremos viver, porque ainda não vivemos; queira o céu que nunca nossos desacertos nos façam voltar à Terra no tristíssimo estado que voltou aquele pobre espírito que tão penosamente nos impressionou.
Não, não; queremos os esplendores do infinito, a abnegação dos redentores, o sacrifício dos mártires, se necessário for queremos algo grande, que sentimos e não podemos definir, mas queremos a luz e a vida, as torrentes da ciência e os divinos eflúvios da caridade.
- Para seguirmos corretamente o espiritismo, devemos submeter todas as mensagens mediúnicas ao crivo duplo de Kardec, sendo eles, a razão e a universalidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe aqui seu comentário, sugestão, etc...