quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Interpretação e experiência

Interpretação e experiência

Deolindo Amorim



Em qualquer campo de estudo ou de crítica, como já se sabe, a interpretação está muito sujeita a influências pessoais. Cada qual quer torcer o sentido das palavras ou dos textos para o seu lado, segundo as conveniências de ordem religiosa, política, jurídica, etc. Por isso mesmo, sempre se disse, e é verdade, que a interpretação é um terreno muito inseguro e muito aberto a distorções. Mas existe a interpretação criteriosa e, portanto, equilibrada.

Temos a interpretação literal, que se atém à frase ou ao texto, tal como está escrito, e temos a interpretação ideal, que procura descobrir o pensamento oculto nas entrelinhas. Nem sempre o que está escrito dá para entender. Muitas vezes se torna necessário até desprezar um pouco a forma e tentar identificar a ideia no fundo de um período ou de um contexto inteiro.

É difícil, muito difícil interpretar, principalmente quando se deseja encontrar a verdadeira intenção no emaranhado das palavras. Seja como for, há um elemento importante na interpretação. É O bom-senso! Quando a forma e a disposição das ideias não nos parecem suficientes para o entendimento claro, é justo recorrer ao bom-senso.

A experiência ensina que a interpretação ao pé da letra é bem arriscada, podendo levar a deduções falsas em muitos casos.

Temos uma ilustração a este respeito. Lê-se no Evangelho, por exemplo: Graças te rendo meu Pai, Senhor do Céu e da Terra, por haveres ocultado estas coisas aos doutos e aos prudentes e por as teres revelado aos simples e aos pequenos (Mateus, XI, 25).

Doutos, como se sabe, são os possuidores de grandes conhecimentos, notadamente os que ostentam título de alto saber. Acontece, no entanto, que há doutos que não são doutores, assim como também há doutores que não são doutos. Mas o sentido está claro na lição evangélica. Prudência, na realidade, é cautela, moderação, equilíbrio de espírito, o que é, aliás, próprio da sabedoria. Todavia, os prudentes, dentro do texto, estão associados aos doutos.

Então, há um sentido de equivalência, dando a entender que prudente, ali, é também o douto, segundo o conceito do mundo. Justamente por isso, a Doutrina Espírita interpreta a lição e reafirma que Deus, em sua infinita sabedoria, deixa aos orgulhosos e pretensiosos, o trabalho de pesquisa dos segredos da Terra e revela os segredos do Céu aos simples e humildes... (O Evangelho segundo o Espiritismo, Cap. VII, item 8).

De acordo com a advertência evangélica, aliás muito explícita, os doutos que se envaidecem ou se julgam donos da verdade não podem penetrar nos conhecimentos de ordem espiritual, apesar de todos os títulos acadêmicos, uma vez que estão dominados pela perigosa ilusão de que sabem tudo e, por isso, chegam a fazer pouco caso dos assuntos que dizem respeito à vida futura, às leis divinas, e assim por diante. O orgulho cega o espírito de sorte que as pessoas verdadeiramente humildes, não são as que o são apenas há aparência, as verdadeiramente humildes (convém insistir) têm mais possibilidades de receber a luz da sabedoria, pois desejam conhecer outros caminhos de adiantamento. São os humildes de coração e querem de fato progredir.

Pois bem, apesar de a recomendação evangélica ser bem clara, não deixando nenhuma dúvida, a sua interpretação ao pé da letra seria em tudo por tudo inconveniente. Se tomarmos o que aí está inteiramente letra por letra, chegaremos à inadequada conclusão de que os homens de grandes conhecimentos, sem exceção, pelo simples fato de serem intelectualizados, estariam impedidos de alcançar algum plano da sabedoria espiritual. Ora, seria uma contradição.

A que tipo de sábio ou douto se refere então o Evangelho?

Refere-se ao sábio orgulhoso. Nem toda criatura humana de grande cabedal de conhecimentos é orgulhosa. Não é pelo fato de acumular muito conhecimento que o homem intelectualizado deixa de ter aptidão para as coisas superiores. É pelo fato, aí sim, de se envaidecer com o conhecimento e julgar-se acima de tudo e de todos. Não façamos incursões no Evangelho com a ideia preconcebida de que toda pessoa de grande cultura é vaidosa, assim como não se deve pensar que todo ignorante é humilde. A vida cotidiana mostra muitos exemplos frisantes, de um lado e do outro. Não se pode ser unilateral na interpretação evangélica à luz do Espiritismo.

Há muitos homens notáveis, homens que poderiam ser chamados de sábios, mas tão simples, tão humildes, que se apagam ou se anulam, ao passo que muitos semianalfabetos são cheios de si, têm arrogância intelectual de tal ordem, que chega a causar espanto! Assim, a interpretação radical, sem a luz da observação serena do bom senso corre o risco de abrir muitas brechas para distorções perigosas.

Afinal, o que a vida nos ensina, a cada passo, é exatamente isto: a humildade não é privilégio da ignorância, tanto assim que há muito sábio humilde e muito iletrado visivelmente vaidoso. Os segredos do Céu estão abertos a todos; mas a condição é séria e difícil: é preciso humilhar-se, despojar-se das valorizações convencionais e amadurecer espiritualmente.

Não é com a cultura puramente livresca nem com os sofisticados instrumentos de pesquisas que o ser humano cresce em conhecimento espiritual. Mas também não é com a falsa humildade que encobre muita ignorância vaidosa, que se conquistam os degraus da sabedoria espiritual. A humildade não está na ignorância; está no íntimo do ser humano. Por isso, o homem muito culto também pode ser humilde e compreender as coisas do espírito.

(Resumo de uma crônica na Rádio Rio de Janeiro — Programa do Instituto de Cultura Espírita do Brasil).

(Mundo Espírita - Curitiba - PR - Setembro de 1983)

Deolindo Amorim do livro:
Ponderações Doutrinárias
(Coletânea de artigos publicados por Deolindo Amorim, em diversos jornais e revistas espíritas do Brasil e do Exterior / Livro organizado por Celso Martins)
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