quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Existencialismo Espírita

Existencialismo Espírita

J. Herculano Pires


A natureza existencial da Filosofia Espírita se revela na sua ecstase, ou seja, na sua posição dentro do mundo, enfrentando os problemas do homem na existência. Por isso mesmo o Espiritismo não pode ser confundido com o Existencialismo, mas não há dúvida que encontramos na sua investigação ontológica uma fase existencialista. E é essa fase que chamamos Existencialismo Espírita, a arena filosófica em que o Espiritismo se defronta com o Existencialismo protestante de Kierkegaard, com o Existencialismo Católico de Gabriel Marcel, com o Existencialismo ateu de Jean Paul Sartre e assim por diante, armado dos mesmos instrumentos conceptuais e colocado na mesma posição de pesquisa das diversas correntes existenciais da Filosofia Contemporânea.

Nicola Abbagnano, existencialista italiano, entende que as Filosofias da Existência podem ser divididas em três grupos, tomando-se como critério o sentido e o emprego que dão à categoria filosófica do possível. Esta categoria implica todas as possibilidades do homem como um Ser na Existência. Abbagnano estabelece a seguinte divisão: a) — Grupo da impossibilidade do possível, formado por Kierkegaard, Martin Heidegger, Karl Jaspers e Jean Paul Sartre, como figuras exponenciais; b) — Grupo da necessidade do possível, com Louis Lavelle, Rene Le Senne e Gabriel Marcel; c) — Grupo da possibilidade do possível, iniciado pelo próprio Abbagnano. Embora o grupo (a) constitua a área espiritualista, o Existencialismo Espírita se aproxima mais da posição de Abbagnano, dadas as relações evidentes dessa posição com a natureza científica da conceituação existencial espírita.

Tentemos uma explicação deste problema. Para o primeiro grupo as possibilidades humanas são irrealizáveis; para o segundo grupo são realizáveis, e mais do que isso, necessariamente se realizam graças ao Absoluto, ao Transcendente que supera a Existência (aceitação dos conceitos metafísicos do Ser e do Valor numa perspectiva religiosa); para o terceiro grupo, as possibilidades são o que são, ou seja, possíveis em si-mesmas, de maneira que não podem tornar-se impossíveis, nem apresentar-se como necessidades. A frustração de um possível não o anula, pois ele continua como possível, da mesma maneira por que uma hipótese pode ser submetida a uma experiência negativa, mas continuar válida e posteriormente se comprovar. A posição de Abbagnano representa uma síntese, uma solução dialética dos impasses em que caíram os dois grupos anteriores. E por isso mesmo se aproxima da posição espírita.

Ao mencionar a ecstase da Filosofia Espírita estamos reconhecendo nela uma estrutura ontológica. A Filosofia Espírita é um Ser conceptual, como todos os sistemas filosóficos, mas livre dos prejuízos do espírito de sistema, porque sua estrutura é dinâmica e aberta, sem nenhuma ossatura dogmática. Expliquemos: os dogmas da Filosofia Espírita são princípios de razão e não postulados de fé, são os filamentos de uma estrutura lógica e por isso mesmo flexíveis. Assim, podemos discernir nessa estrutura as suas hipóstases ou regiões ontológicas: 1.°) a ecstase, no sentido berkeleano de relação inicial, em que o ser permanece fechado em si-mesmo; é o momento em que a Filosofia Espírita nasce do sensível, do concreto, pelo processo científico da indução, a partir do exame dos fenômenos; o momento em que ela se fecha na existência como um ser no mundo; 2.°) — a ecstase em que ela se abre na própria indução em direção à transcendência, na formulação de seus princípios metafísicos; 3.°) — a ecstase, em que ela se define como uma nova concepção do Ser, uma nova cosmovisão, que partiu de um ponto existencial terreno para abranger todo o Universo.

Assim, o que chamamos de Existencialismo Espírita é a Filosofia Espírita da Existência, a parte dessa Filosofia que encara o homem no. mundo, da mesma maneira que o ser ai a que se referia Heidegger. Até o aparecimento do Espiritismo o pensamento espiritualista era platônico: admitia o pressuposto de uma realidade metafisica da qual decorria toda a realidade física. O Espiritismo assumiu a posição aristotélica: buscar na realidade concreta a sua essência possível e dela partir para as induções metafísicas. "O Livro dos Espíritos" começa com a afirmação da existência de Deus, mas já vimos que essa existência se prova na própria existência do mundo, que Deus pode ser encontrado num simples lançar de olhos sobre a natureza. Temos de figurar Kardec-educador, a estudar o ser humano para poder educá-lo; Kardec-magnetizador, a estudar a influência magnética do homem e entre os homens para poder conhecê-los melhor; Kardec-cientista, a observar os fenômenos físicos em sessões mediúnicas e posteriormente a investigar os problemas do desprendimento espiritual durante o sono, numa série de experimentações rigorosamente controladas, para podermos compreender a posição existencial do Espiritismo na abordagem do problema do Ser.

Os problemas comuns das Filosofias da Existência são precisamente os problemas espíritas: o Homem como um ser no mundo; a Existência como uma forma peculiar da vivência humana, uma atualização absoluta (segundo Bochenski) e um constante refazer-se no tempo; o ser humano como um projeto que atravessa a Existência, que nela aparece feito (a facticidade humana se constituindo de subjetividade, afetividade e liberdade), de maneira que o homem é um ser atirado ao mundo com o nascimento, para avançar em direção à morte, através do desespero, da angústia, da dor. As Filosofias da Existência procuram resolver esses problemas pela investigação fenomenológica, a partir dos dados do existir, que é, na verdade, a própria vivência do mundo. Essa vivência se caracteriza pela percepção da fragilidade humana que gera o desespero e a angústia do homem. Nas correntes espiritualistas, como em Marcel, a angústia é substituída pela esperança conferida pela fé, mas essa solução metafisica não consegue repercutir nos demais pensadores. Heidegger considera o homem como ser para a morte, mas essa definição pessimista é atenuada pela sua afirmação de que o ser se completa na morte.

Toda essa temática existencial está presente na Filosofia Espírita. Bastaria lembrarmos, por exemplo, o livro famoso de Léon Denis, um clássico do pensamento espírita e continuador da obra de Kardec, intitulado "O Problema do Ser, do Destino e da Dor", para vermos como a posição existencial da Filosofia Espírita se entrosa na corrente existencial da atualidade. Mas "O Livro dos Espíritos", contemporâneo das obras de Kierkegaard, o iniciador dessa moderna corrente filosófica, já coloca os problemas existenciais de maneira precisa, como veremos a seguir.

Comecemos pelo problema da facticidade. Com o nascimento, o homem aparece feito no mundo. Sua Facticidade se compõe do seu corpo e do seu psiquismo (corpo e espírito), de sua afetividade e sua liberdade (sua capacidade de percepção e seu livre-arbítrio) e esta facticidade está carregada de possíveis, das possibilidades que irão se desenvolver na existência. O homem parte, como uma flecha, do ventre materno para o berço, deste para a vivência do mundo (atravessando a existência como um projétil) para atingir o seu alvo na morte. Numa perspectiva puramente existencial o homem, na sua facticidade, não tem mais do que possibilidades, mas estas possibilidades vão se atualizar na existência, nos limites permitidos pelas circunstâncias. Não há, portanto, uma essência no homem, considerado o homem como o existente, mas apenas possibilidades. Sartre define a essência do homem como um suspenso na sua existência, pois a essência humana vai ser elaborada através da sua vivência no mundo. Essa essência, portanto, só se completa com a morte, com o fim da existência. Isto nos lembra a imortalidade memorial do Positivismo de Comte. O que o homem fez na existência é que constitui a sua essência. Com a morte o homem se acaba e sua essência permanece no mundo como um simples fato cultural. Não obstante, a vida do homem é uma paixão inútil, um esforço constante de superação, de transcendência. O animal vive, mas o homem existe, e esse existir se caracteriza pela paixão, pelo impulso de transcendência conscientemente dirigido. Só existe o homem que segue esse impulso.

É fácil compreender que as filosofias da Existência, à maneira do que Kardec dizia das Ciências, avançam paralelas ao Espiritismo até certo ponto e depois se detêm, perplexas diante do mistério. O momento em que elas se detêm é o limiar da interexistência, esse intermúndio em que o ser se completa na morte, mas no qual se passam também fatos da mediunidade. E nesse momento que o Existencialismo se transcende a si mesmo para transformar-se em interexistencialismo. A Filosofia Espírita da Existência não se limita ao existir no mundo, como um fato simplesmente fenomênico, mas graças ao conceito de mediunidade oriundo da investigação científica objetiva e nela desenvolvido descobre o existir no intermúndio (que os gregos já conheciam como o existir dos deuses) e descobre ainda o suceder das existências no mundo como um processo palingenésico inerente a toda a Natureza (que os gregos também conheciam).

Assim, a Filosofia Espírita, em sua ecstase existencial, ilumina os problemas obscuros do Existencialismo. A facticidade misteriosa se explica pelo fazer anterior do Ser, através do desenvolvimento do princípio inteligente e sua projeção na existência como ser humano. Atravessando a existência, como um projétil (o projeto existencial) o homem completa na morte não o seu próprio Ser, mas o ser do corpo que chegou aos limites de suas possibilidades, nem a sua própria essência, mas apenas a essência de uma existência, através da vivência das experiências necessárias ao seu atualizar progressivo.

Para a Filosofia Espírita o corpo não é uma instância ontológica, mas uma instância existencial. Da existência material o ser passa para a existência espiritual, mudando de instância existencial: substitui o corpo físico pelo corpo energético do perispírito. E na existência espiritual encontramos ainda o problema existencial da facticidade com todas as suas implicações. O Espírito aparece feito no plano espiritual, dotado de um corpo que foi elaborado anteriormente, de um psiquismo que se desenvolveu na vivência mundana, com sua afetividade e sua intelectualidade preparadas nas existências sucessivas e consumadas na derradeira existência material. Não obstante, e até por isso mesmo, a existência espiritual é uma transcendência da existência material, é o momento em que a síntese do em si e do para si, que Sartre considera impossível, se realiza no em si para si, ou seja, na existência espiritual que, para os gregos, era divina e os levava a chamar os Espíritos de deuses.

Mas o conceito de mediunidade ilumina também a existência terrena, dando-lhe uma nova dimensão. O existente ou homem no mundo adquire a condição espírita de interexistente ou homem no intermúndio. O avanço das Ciências Psicológicas está comprovando essa realidade já demonstrada pelo Espiritismo e sustentada pela Filosofia Espírita. A descoberta da percepção extrassensorial provou que os rígidos limites existenciais não correspondem à realidade existencial. Há, na própria existência terrena, corporal, mundana, uma realidade psíquica superando e envolvendo a realidade puramente vital do homem. E quando Heidegger se refere ao ser no mundo, como Mitsein (ser com outros, o ser social) e à Mitdasein, ou coexistência (vida social), temos de acrescentar a esses dois conceitos a dimensão mediúnica das testemunhas de que falava o apóstolo Paulo, dos outros espirituais que nos envolvem e, portanto, da convivência espiritual que experimentamos através da existência.

Para a Filosofia Espírita da Existência o existente se define pela mediunidade. Esta consiste na faculdade normal (nem sobrenatural nem paranormal) de percepção extrassensorial e, portanto, de comunicação com os existentes do intermúndio. A dinâmica e a mecânica dessa comunicação são estudadas em "O Livro dos Médiuns", que é um desenvolvimento dos problemas mediúnicos de "O Livro dos Espíritos". O existente atualiza as suas possibilidades mediúnicas que lhe ampliam a consciência de si mesmo e da sua natureza existencial, através do desenvolvimento mediúnico, que não é apenas o sentar-se à mesa de sessões para receber espíritos, mas principalmente aguçar a visão espiritual, entendendo-se por visão todo o complexo da percepção extra-sensorial. Esse aguçamento equivale a um transcender dos limites existenciais, pois é um liberar progressivo da percepção global do espírito, um escapar da prisão sensorial orgânica para outras dimensões da realidade. O existente, com essa atualização dos seus possíveis espirituais, torna-se um interexistente, um ser no intermúndio. Mas o intermúndio não é um conceito espacial e sim um conceito hipostásico, não é quantitativo, mas qualitativo. A intuição grega dos deuses se converte na realidade espírita dos Espíritos e a do intermúndio espacial na realidade do intermúndio psíquico.

O interexistente não é apenas intuição, nem apenas hipótese, ou formulação teórica. Pelo contrário, o interexistente é uma realidade histórica, antropológica, que podemos encontrar em todos os tempos e lugares. Foram interexistentes os videntes e profetas de todas as épocas, os xamãs e pajés das tribos selvagens, os oráculos, as pitonisas, os taumaturgos de todas as religiões. São interexistentes os médiuns e os paranormais de hoje, os gênios de todas as épocas, os fundadores e propagadores de religiões. A História da Filosofia oferece-nos as figuras de Sócrates, Platão, Plotino, Descartes e Bergson como interexistentes. Na História da Psicologia temos o caso recente de Karl Jung. Na História Política e Militar as figuras de Joana D'Arc, Abraão Lincoln, Makenzie King (do Canadá), Lord Dowding (Comandante da RAF na defesa de Londres durante a última guerra mundial), e assim por diante. Os casos famosos de Francisco Cândido Xavier e José Pedro de Freitas (Arigó) foram objeto de estudos numerosos, inclusive um estudo do primeiro como interexistente, publicado no livro "Chico Xavier, quarenta anos no mundo da mediunidade", de Roque Jacintho. O conceito espírita de interexistente se comprova na realidade histórica e na realidade cotidiana das nossas próprias existências, quando não em nós mesmos.

O problema da comunicação, que a partir de Kierkegaard o Existencialismo colocou de maneira dramática — Kierkegaard rompeu o noivado porque não podia comunicar-se nem mesmo com a noiva, considerando como única forma de comunicação a do homem com Deus (o outro, segundo sua expressão) — esse problema é amplamente resolvido pela Filosofia Espírita da Existência. A comunicação é uma categoria filosófica do Espiritismo que tem amplitude cósmica. Vemos em "O Livro dos Espíritos" que o fluido universal é o veículo do pensamento, assim como o ar é o veículo da palavra. O homem pode comunicar-se às maiores distâncias. Daí a validade da prece, que é forma de comunicação. As experiências atuais de telepatia à distância confirmaram essa tese espírita, a ponto de levarem os cientistas soviéticos, materialistas, a se empenharem nas pesquisas telepáticas.

O aguçamento da visão espiritual pelo desenvolvimento mediúnico implica um problema filosófico de comportamento. A Filosofia Espírita da Existência coloca esse problema em termos de moralidade. Opõe-se assim aos sistemas orientais de desenvolvimento artificial das faculdades psíquicas, por entender que esses sistemas perturbam o equilíbrio existencial do homem. Só a moralidade, a evolução moral do ser e, portanto, o desenvolvimento de suas potencialidades espirituais pode permitir à criatura humana o aguçamento de sua visão espiritual. Cada existência é um processo condicionado pelas anteriores e pela preparação do Ser no mundo espiritual. Tem o seu plano e os seus limites, sendo estes determinados pelo grau de desenvolvimento real do Ser e pelos compromissos que o liga às circunstâncias terrenas. Qualquer tentativa de fuga a esses determinismos existenciais — o que pode ser feito em virtude do livre arbítrio — atenta contra o equilíbrio moral do Ser. Assim, a Filosofia Espírita da Existência revela mais uma vez sua natureza de síntese do Conhecimento: coloca-se entre as posições contrárias ao hedonismo materialista ou existencialista, de um lado, e do absenteísmo religioso ou místico, de outro lado, postulando a obediência às leis naturais, o que, no caso da concepção existencial, equivale ao respeito pela existência e seus fins.

J. Herculano Pires do livro:
Introdução à Filosofia Espírita

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