Aptidões e tarefas
Deolindo Amorim
O princípio da desigualdade ou diversidade das aptidões individuais justifica racionalmente o aproveitamento dos valores humanos em todas as situações, em qualquer nível intelectual, econômico ou social. É um argumento dentre outros da tese reencarnacionista, como se sabe.
Cada espírito que reencarna tem sua situação, suas experiências, seus compromissos, seu grau de conhecimento e de capacidade. Sendo desiguais espiritualmente, não quanto à natureza, mas quanto ao estágio evolutivo em que se encontram, é natural que sejam também desiguais as inclinações, as preferências, as aptidões...
Justamente por isso, o Espiritismo é uma doutrina essencialmente democrática, uma vez que valoriza o elemento humano em qualquer plano da vida em que esteja situado.
Ninguém é inútil ou desnecessário porque não sabe fazer isto ou aquilo, porque tem mais inclinação para uma coisa do que para outra. Todos são úteis.
Os campos de serviço, que se abrem constantemente na seara espírita, oferecem oportunidades a todos, de acordo com as possibilidades individuais. Cada qual procura naturalmente uma faixa de ação onde sinta que possa estar mais à vontade ou possa prestar serviços com mais eficiência. As opções são livres e necessárias, aliás em todo movimento, principalmente no espírita, que exige esforço desinteressado e muita dose de renúncia.
A expansão do movimento espírita, sobretudo no Brasil, onde se desenvolve uma obra assistencial cada vez maior e onde, ao mesmo tempo, nossas ideias enfrentam problemas e desafios em vários flancos de crítica, comporta muito bem, ou indispensavelmente, o funcionamento simultâneo de vários tipos de atividades, visando ao mesmo objetivo — o serviço pela causa espírita. Nada mais que isto.
O campo assistencial, por exemplo, é muito grande e meritório, exigindo vocações autênticas. Também meritório é o campo mediúnico, como são igualmente meritórios outros campos de trabalho espírita. No entanto, por mais que se reconheça a realidade, certas faixas de serviço ainda não foram bem compreendidas. Uma delas, por exemplo, é a faixa cultural. Não existe propriamente, nem poderia existir, principalmente agora, uma cúpula que se poderia chamar de elite espírita. Com as novas condições de vida e por força da interdependência em que vivem, hoje, os homens, os grupos, as classes, enfim, a noção de elite, no velho sentido de predominância intelectual de caráter seletivo já está obsoleta, já é uma ideia arcaica.
A equivalência cultural e profissional hoje em dia já não permite distinguir as pessoas pela situação intelectual ou social. O conceito de distância social, que teve muito peso nas sociedades antigas, abrindo um fosso profundo na escala profissional, está muito reduzido atualmente. Em primeiro lugar porque certas carreiras e profissões se valorizaram muito. E em segundo lugar porque as oportunidades de ascensão intelectual e profissional são cada vez maiores. Assim, não se pode mais olhar a sociedade como se fosse uma pirâmide lá em cima, no vértice, a elite mais intelectualizada e cá em baixo, na base, a massa confusa, sem capacidade para compreender os grandes problemas.
Hoje, seria uma visão completamente errada de vez que a sociedade não está mais assim.
Justamente por isso, não se pode pensar na formação de uma elite no movimento espírita. Também não se deve chegar ao exagero de querer desvalorizar o trabalho daqueles que na seara espírita, e pela força mesma das circunstâncias, desempenham tarefas de ordem intelectual. Porventura o campo cultural do Espiritismo também não é importante? Também não se precisa de obreiros capazes? Nosso movimento precisa, ao mesmo tempo, de trabalhadores idealistas em todos os campos. Assim, o homem prático, que é o administrador, tem seu lugar inconfundível, 0 médium, quando compenetrado de sua missão, é elemento insubstituível. O articulador de congraçamento é igualmente um trabalhador necessário, do mesmo modo que é necessário o elemento que promove campanhas humanitárias. Cada qual, em seu campo de trabalho, pode ser um apóstolo do bem. Não se pode nem deve, porém, enaltecer uma faixa de serviço, minimizando outras, como se fossem de importância secundária.
Sem dúvida, o trabalho assistencial é de natureza diferente do intelectual.
Mas qual dos dois trabalhos é mais importante? Eis aí um julgamento difícil, senão impossível. No momento da necessidade humana, fala mais alto a assistência social, no momento em que é preciso esclarecer ou defender a causa espírita quando desafiada pela crítica, fala mais alto o lado cultural. E assim por diante... (...)
Porque colocar, pois, em segundo plano o campo cultural do movimento espírita, dando mais ênfase ao campo da produção mediúnica ou hipertrofiando a significação das obras assistenciais?
(...) Negar o valor das atividades culturais no meio espírita é fechar os olhos a uma realidade evidente. Não há conflito, não há dissonância entre os diversos campos de trabalho, como não há qualquer avaliação de superioridade; mas é preciso que haja mais discernimento a este respeito.
É por isso mesmo que a Doutrina Espírita democraticamente aproveita os valores humanos em todos os graus, considerando sempre a desigualdade das aptidões como ponto de referência. (...) todos podem servir, todos podem ser obreiros da mesma seara, cada qual colocado na esfera de ação que lhe seja mais indicada. Ninguém fica de fora, a não ser que, por si mesmo, queira sobrar no conjunto. Há funções para todos, e todas elas são relevantes quando se observa a harmonia, a realização geral, É com este espírito construtivo que devemos avaliar o trabalho dos companheiros que se ocupam de tarefas diferentes no meio espírita, mas todos eles estão integrados no mesmo pensamento, no mesmo ideal — trabalhar pela causa comum, a causa do Espiritismo como doutrina de renovação do homem e da sociedade.
(Jornal Mundo Espírita — Curitiba — PR — Abril de 1973)
(Coletânea de artigos publicados por Deolindo Amorim, em diversos jornais e revistas espíritas do Brasil e do Exterior / Livro organizado por Celso Martins)
- Para seguirmos corretamente o espiritismo, devemos submeter todas as mensagens mediúnicas ao crivo duplo de Kardec, sendo eles, a razão e a universalidade.
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