O suicídio de Belchior
Clóvis Tavares
“ Que adiantaria ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? Ou que daria o homem pelo resgate de sua alma? (Mateus - 8:36-37)
Numa estação ferroviária americana, há muito tempo, li alhures, um grupo de comerciantes em viagem recreativa acercou-se de uma pequena índia que, na plataforma, vendia delicadas cestas de vime e outras utilidades de artesanato.
Desejavam eles comprar suvenires. Um dos turistas, adiposo, espertalhão, com um sorriso velhaco, preparou-se para lograr a pequenina vendedora. Alteou a voz e preparou o golpe, com cruel indelicadeza:
- Aqui a gente paga o dobro do que pagaria em qualquer outro lugar... Os turistas são roubados sempre, em toda parte...
- Não meu senhor, respondeu a indiazinha, humilhada e serena - não estou explorando ninguém. Eu mesma e minha mãe fizemos estas cestas e gastamos muitos dias...
- Ora, não estão caras... - interrompeu-a o outro viajante, também não devoto da honestidade... - E por que não roubar, se puder, não é menina? Todos roubam... Nós também somos comerciantes e queremos é ganhar dinheiro...
A menina indígena, com a mesma tranquilidade, num inglês vagaroso, mas seguro, surpreendeu o grupo (que, por sinal, portava distintivos religiosos), com sua resposta:
- Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? Não foi assim que Jesus perguntou?... Isso aprendi na Escola de Evangelho da Missão... Não mentirei nem roubarei nunca meu senhor...
Os abastados homens de negócio, envergonhados, compraram algumas cestinhas e não puderam articular uma palavra sequer. Uma criança lhes mostrara quanto a sua crença religiosa estava divorciada da legítima vida cristã...
***
Essa história real veio-me à memória ao ler a notícia do suicídio de Belchior, ocorrido na semana finda.
Os jornais nos informaram que apareceu, boiando nas águas do Rio Paraíba do sul, um cadáver de um homem de 83 anos. Seu rosto já se achava irreconhecível, com as fossas nasais e os lábios corroídos pelos peixes. Num bolso do paletó, ainda acrescenta o A Cidade (27 de agosto de 1958), além de documento identificador, foi encontrado um bilhete com estas lacônicas palavras: “Não culpo a ninguém e sim ao custo de vida.”
Diante do bilhete conciso e humilde, que se transfigura em silencioso desafio à sensibilidade coletiva, é lícito meditar um pouco...
Belchior foi apenas mais uma vítima de suicídio, da carência espiritual, amedrontado diante das lutas pela vida? Ou foi também de certo modo, uma vítima anônima, entre milhões de outras, dos gananciosos que dominam o gigantesco maquinário industrial, dos reis das finanças que alargam as taxas de inflação e asfixiam o pobre e envenenam as fontes da vida?
Teria sido o infeliz Belchior tão somente um suicida aos olhos de Deus? Ou teria sido, parcialmente, imolado em holocausto a Mamon, que domina e mata os que não lhe prestam culto?
O comércio honesto, qual o exercia a indiazinha cristã, não é apenas uma necessidade social: é igualmente uma bênção indispensável à vida e um elo de solidariedade entre os homens.
O mais comum, entretanto, é fundamentar a existência através do dinheiro desonrado pela cupidez, multiplicado pelos lucros ilícitos, agigantado à custa de sonegações, subornos e especulações.
Esquecidos da Lei Divina e da responsabilidade espiritual do homem, o gozo fácil, o sibaritismo social, a fortuna acumulada, a corrupção multiforme, a coroa do domínio econômico na sociedade.
Será que algum comerciante ganancioso ou algum forjador de manobras econômicas, terá consciência de se sentir parcialmente responsável pela morte de um velhinho de 83 anos, que deserta do mundo justamente pela elevação do custo da vida? Do que se paga para poder viver?
Rico louco da Parábola Evangélica, que saíste das páginas do Novo Testamento e te multiplicaste no seio da supercivilização materialista de hoje, escuta o mesmo Jesus, que uma indiazinha humilde ouviu e acatou:
"Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?"
Clóvis Tavares do livro:
Sal da Terra - Antologia organizada por Flávio Mussa Tavares
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