quarta-feira, 5 de abril de 2023

O passe

O passe

Otília Gonçalves



Demorava-me sob as bênçãos da meditação salutar quando o dr. Cléofas retornou, no dia seguinte, constatando que a noite de repouso me fizera um grande bem. Fazia-se acompanhar de um rapaz, em cujo rosto a bondade se espraiava dadivosa.

— Apresento-lhe o jovem Adrião — falou o Médico com um gesto cativante.

Apertamo-nos as mãos e, envolvidos pelo halo de simpatia recíproca, escutei o Benfeitor prosseguir, elucidando:

— Trata-se de companheiro que se dedica ao serviço de refazimento espiritual, mediante a contribuição socorrista de passes.

“Portador de nobres qualidades — informou, solícito, o dr. Cléofas —, desde há muito se dedicou o jovem amigo ao sacerdócio do amor entre os enfermos e, conosco, sob as bênçãos de Jesus, atende ao programa da fraternidade, doando-se integralmente.”

Desculpando-se, delicado e discreto, das palavras de carinhoso estímulo do velho obreiro, o rapaz, que poderia ter sido um filho muito querido do meu afeto, acercou-se do leito quente e macio, falando-me com naturalidade espontânea:

— A visão feliz do abnegado Instrutor enxerga-me com recursos que realmente não possuo. Aqui me encontro atendendo a imposições do dever.

Trânsfuga da lei, em muitas etapas, sou hoje agraciado com a dádiva de oportunidades educativas que não posso menosprezar para a minha própria recuperação moral. E, nesse sentido, tenho aqui recebido as maiores contribuições para o meu programa iluminativo de ascensão.

“Em diversas ocasiões — e olhou com expressiva vivacidade para o Médico silencioso e jovial — cheguei a recintos de socorro qual beduíno perdido e desarvorado, carregando aflições e andrajos, coberto do pó dos desenganos e ferido pelo sabre impiedoso dos erros ultrizes. Não fosse a bondade do Vigilante Incansável que me tem conduzido a este Plano de meditação e trabalho...”

Enxugando uma lágrima que lhe deslizou pela face, continuou:

— ... o infinito amor de Jesus Cristo, Nosso Senhor, porém, tem-me acolhido, retirando-me do infortúnio de mim mesmo, e essas mãos, que tantas vezes foram utilizadas para a futilidade e o crime, agora se estão voltando para a tarefa justa de aplicação sadia, no serviço construtivo.

Silenciando, momentaneamente, continuou, mudando de assunto, sob as vistas compassivas do Benemérito Médico Espiritual:

— Sei que a irmã Otília, quando na Terra, foi espiritista convicta. Não desconhece, portanto, o quanto representa em responsabilidade o seu esponsalício com essa Doutrina, renascimento do Cristianismo primitivo.

Naturalmente, ligada a uma Organização de Assistência Social, traz consigo créditos que não serão esquecidos, graças aos esforços em favor dos pequeninos. Todavia, por enquanto, o seu estado perispiritual não difere muito da situação em que se encontram outros enfermos, aqui igualmente hospitalizados, dependendo, a sua recuperação, dos esforços envidados na observância das prescrições que lhe serão ministradas.

— Já falei ao nosso Enfermeiro — explicou o dr. Cléofas — do seu caso e quais os recursos que devem ser movimentados para a sua medicação.

— Como é do seu conhecimento — prosseguiu Adrião, com muita lucidez —, todos os males procedem da mente”, quando desorientada. Assim sendo, as enfermidades são decorrência natural do mau uso da saúde e, naturalmente, da desorganização mental. Só as mentes habituadas a exercícios disciplinares e educativos podem reunir recursos equilibrantes para a manutenção de uma vida sadia. Já o velho ensinamento dos latinos traduz essa afirmativa, referindo-se ao corpo são, mantido por uma alma sã.

Animada pela bondade do moço, formulei uma indagação em torno de assunto de que muito ouvira falar, repetidas vezes, quando encarnada:

— Poderia o bondoso amigo esclarecer-me algo a respeito da Ioga e dos diversos processos de mentalização praticados pelos esoteristas, considerando-se os seus esclarecimentos há pouco enunciados?

— Naturalmente — respondeu-me. — Explico-me. A utilização da mente é o medicamento e a ginástica mais proveitosa para o espírito. Amar, servir, ajudar, edificar pela superação da comodidade, vencendo os filetes perigosos que nos invadem, em forma de cólera, tristeza, inveja, queixa, é realizar exercício salutar. Nesse sentido, o Evangelho é um curso valioso de Educação Mental, à base do otimismo. Não desejamos aludir à cristalização mental em ideias nobres e belas, vibrações edificantes e generosas, distantes, todavia, da ação positiva, real e produtiva.

“Remontemos historicamente a algumas valiosas lições.

Zoroastro e seu primo Metyoma, quando da compilação do livro sagrado dos persas — o Zend-Avesta sintetizaram num programa simples o roteiro da salvação: Pensar com justiça e “aguçar a mente na pedra da experiências”, sentindo as penas alheias e alegrando-se com as alegrias do próximo; falar com justiça, fazendo da palavra um meio positivo, combatendo o mal e defendendo a verdade, ajudando o fraco; depois, porém, de ter aprendido a pensar bem, a falar com justiça, deve o homem, preparado como está, AGIR bem.

“Posteriormente Jesus conclamou-nos, no programa singelo do amor e da caridade: — “a quem te pedir a túnica, dá igualmente a manta; a quem te pedir caminhar mil passos, segue dois mil”... ao serviço positivo, pela ação valiosa e nobre.

“Depreendemos que pensamento e ação são as linhas mestras da vida libertadora, para a felicidade geral da grande família humana. Entendeu?”

— Sim — respondi, emocionada.

— E a Ioga — exclamei, ansiosa —, realiza o aprimoramento da alma, consoante apregoam os seus aficionados?

— Em verdade — retrucou, atencioso — a Ioga opera modificações valiosas na alma, graças à austeridade disciplinar dos seus exercícios.

“Fundada na Índia, segundo a tradição, por Patanjali, é um sistema filosófico que ensina ser o estado perfeito a contemplação, conseguida pela imobilidade absoluta, o êxtase, através de rigorosas práticas ascéticas.

“Embora o seu grande valor, quando a alma retorna da imersão no oceano profundo da meditação contemplativa, continua sedenta de novo êxtase, de nova libertação, não resolvendo, portanto, o indevassado problema da paz.

“Temos observado que o estado beatífico no mundo espiritual varia profundamente de quanto se acredita vulgarmente. Ninguém contemplará a Face Soberana por meio de voos individualistas, nas asas da mentalização. É imprescindível resgatar as divisas que a Mãe Terra concede, no ativo processo de intercâmbio fraterno, ajudando o berço generoso que nos recebeu, a ascender conosco, igualmente.”

E procurando fazer-se mais compreensível, acrescentou:

— O cristão que se afeiçoa ao trabalho, em favor de todos, guarda inestimável patrimônio, entesourando preciosas moedas que lhe conferem a entrada no Reino da Ventura.

E dando novo rumo à palestra, acentuou:

— Iremos atender-lhe à organização espiritual, utilizando-nos dos recursos do passe, esse admirável auxiliar ao alcance das nossas intenções socorristas.

“Como é sabido — esclareceu, paciente —, no passe movimentamos preciosos recursos que, infelizmente, entre os encarnados permanecem ainda inexplorados, embora as luzes que o Espiritismo tem projetado sobre o assunto. Todos somos dínamos geradores de energias poderosas, consoante a diretriz dada aos pensamentos. Pela mente, construímos ou derrubamos, ligando-nos às correntes com que melhor afinamos. Sendo a enfermidade uma resultante da harmonia do espírito no processo de ajustamento ao dever, considerando, ainda, as ações pretéritas e atuais, para que cessem seus efeitos, faz-se necessário anular-lhe as causas. Pela utilização dos recursos da prece, da paciência e da resignação, acompanhados de trabalho ativo, dispõe-se o paciente ao reequilíbrio da mente, pela situação de sintonia receptiva em que se coloca. Funciona, então, o passe, como medicação benéfica e estimulante. Daí a necessidade de se ligarem psiquicamente, agente e paciente, às Esferas Elevadas, para que a permuta de simpatia e entendimento seja de positivos resultados.

“Busquemos, neste momento, passar da teoria à prática, recorrendo às fontes poderosas do Bem e suplicando as dádivas da misericórdia divina.”

Calando-se, o jovem amigo quedou-se silencioso e, em breve, parecia em profunda concentração, elevado aos Céus.

Procurei, igualmente, reunir as energias de que dispunha, e a oração, fácil e consoladora, fluiu-me à alma.

Oh! minha filha, quanto bem faz à alma esquecer tudo no momento da prece e banhar-se nas águas benditas da esperança.

A prece é uma ligação de luz que envolve os espíritos em aspiral ascendente. Rompe abismos e dificuldades e, qual telefone sublime, conduz tal grau de felicidade, que não é facilmente entendida pelas deduções mentais em processos comuns. Só aqueles que lhe experimentaram a emanação dulçurosa nos terríveis momentos da inquietação, podem traduzir-lhe a concessão divina, ao retornar do mundo metafísico. Apaga preocupações e anula ansiedades, conforta o espírito e o mantém confiante.

Em breve sentia-me banhada por branda luminosidade que se desprendia do compassivo socorrista que continuava envolto na vibração oracional.

Ergueu os braços e, com movimentos rítmicos das mãos, muito discretamente, aplicou-me os passes magnéticos.

Como se obedecessem à movimentação passista, forças estranhas sacudiram-me a organização perispiritual e todas as fibras pareciam penetradas por eletricidade em movimentação. Sentia que da região cardíaca laços fortemente atados se desmanchavam, oferecendo-me um estado de libertação. A respiração se me tornava menos torturada e a sensação de dor diminuiu consideravelmente.

A aplicação não foi além de dois minutos, após o que, agradável torpor inundou-me toda, induzindo-me a sono reparador.

Quando despertei, horas depois, respirava livremente.

Adrião, sorridente, informou-me que a mesma operação se sucederia, por vários dias consecutivos, até que me encontrasse em condições de prosseguir com a movimentação do esforço próprio, segundo as instruções do dr. Cléofas.

Otília Gonçalves por Divaldo franco do livro:
Além da Morte

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