sábado, 15 de janeiro de 2022

A verdadeira cura

A verdadeira cura

Amélia Rodrigues



Foram longos os dias de expectativa e de aflição.

Viajando à noite e repousando nos períodos ensolarados, a fim de diminuir as dores das ulcerações e da fraqueza orgânica, ele chegara a Cafarnaum e misturara-se à multidão.

As marcas iniludíveis da lepra faziam-no enxotado como um cão desprezível para distante, impedindo-o de acercar-se do Galileu.

Ouvira dele falar na distante Sídon, quando a sua fama por lá chegou.

Narrativas estranhas e inacreditáveis referiam-se aos Seus feitos como nenhum profeta antes jamais conseguira.

Afirmava-se que Ele era a luz que penetrava na escuridão e vencia toda a treva; que Suas mãos tocavam a paralisia e desatrelava os membros mortos, restituindo-lhes os movimentos; que o som da Sua voz adentrava-se pelos ouvidos moucos e rompiam-lhes o silêncio atroz; que repreendia os demônios e os mesmos fugiam gritando de dor e de medo; que lavava toda a podridão do corpo e lhe restituía a saúde...

Certamente, pensava, Ele somente o fazia aos filhos de David das antigas tradições.

Ele era estrangeiro e não conhecia muito a legislação de David, mas sentia-se filho de Deus, embora não lhe soubesse o nome nem quem Ele era.

Recordava-se da primeira despigmentação, da mancha arroxeada no pescoço, da borda eriçada em pontos pequeninos. Depois, foram as sensações atordoantes do cansaço, das dores nos membros inferiores e superiores, das dificuldades para quaisquer movimentos e logo das primeiras feridas purulentas e nauseabundas...

Ainda mantinha na memória quando a própria mulher, num momento de ira, chamou-o de leproso, propagando-se a sua voz por toda a aldeia que, sem piedade, correu à sua porta e o apedrejou sem nenhuma consideração, expulsando-o da convivência social.

Seus filhos fugiram e os amigos o amaldiçoaram.

Pensou, ele próprio, em matar-se, fugindo, porém, inicialmente, de todo lugar onde fosse visto e seviciado.

Todos o odiavam, mas ele desejava viver, embora quase morto e em decomposição.

Encetara a longa viagem sem esperança de alcançar o Profeta.

Pelos difíceis caminhos experimentara sofrimentos, perseguições inomináveis, mas não desistiu. Sentia-se impulsionado a prosseguir e confiava no Enviado.

A linguagem do coração falava-lhe de venturas jamais vividas e de alegrias íntimas que lhe inundariam o ser, caso ele chegasse a tempo de ser socorrido.

Era um entardecer de fogo em tonalidades variadas.

Um vento morno soprava, aplaudido pelas ondas, a se arrebentarem nas praias de seixos miúdos.

Ele estava a regular distância por trás de um sicômoro.

O odor do corpo era-lhe quase insuportável e ele tremia sob a ação da febre...

À medida que os minutos sucediam-se, foram-se aglomerando as pessoas diante de uma barca ampla cravada na areia.

Repentinamente, o Profeta surgiu sem que ele soubesse dizer como alcançara a embarcação.

Suas vestes em tonalidade cinza escuro balouçavam ao sopro do ar quente. Os longos cabelos, que se misturavam à barba no peito, eram ondulados e também esvoaçavam. Seus olhos, porém, pareciam duas luzes brilhantes que passeavam sobre a multidão.

Automaticamente, ajoelhou-se e desejou cerrar as pálpebras sobre as vistas sem melhor luminosidade, mas não desejou perder a beleza daquele Ser que parecia sobrepairar acima de todos.

Um silêncio grandioso, quebrado somente pelas vozes da natureza, era o prelúdio da sinfonia que Sua voz doce e forte iniciava:

- Eu vos trago Boas Novas de alegria!

Houve um frêmito forte e as pessoas acercaram-se mais, sedentas de carícias e ansiosas por absorverem todas as palavras.

Assim também ele o fez. Saiu do esconderijo e aproximou-se da multidão, esquecendo-se da própria desdita.

As crianças, que choravam, silenciaram o pranto, os endemoniados calaram-se miraculosamente, e todos eram ouvidos e olhos nele cravados.

Ele distendeu os braços e pareceu envolver toda a massa que atraiu ao Seu seio.

O Pai enviou-me, a fim de que desperteis do letargo, da indiferença, do sofrimento e venhais a mim, pois eu vos reunirei num rebanho e vos guardarei com a minha vigilância.

As lágrimas, que antes haviam secado, fluíram suavemente e escorreram-lhe pelos olhos cansados e abertos em chagas vivas, refrescando-os.

Uma noite esplendorosa, com estrelas cintilando ao longe e o luar derramando-se sobre a Terra eram um espetáculo de beleza de que não se recordava haver antes percebido.

- Não temais os maus nem os seus males! - Exclamou, como se fosse um clarim mágico, tocado ao longe.

- Eu vos tenho no coração e vos alivio todas as dores.

- Amai, porque essa é a chave para decifrar todos os enigmas, resolver todos os problemas, e nunca revideis ao mal com outro mal, perdoando o agressor porque ele é infeliz e não sabe.

- A verdadeira felicidade consiste em amar, olvidando os ressentimentos e as paixões inferiores.

- Quem ama encontra um tesouro e nunca mais é o mesmo, pois que se torna rico. Portanto, vos digo que tenho piedade daqueles que riem das misérias alheias e locupletam-se com as parcas moedas das viúvas e dos pobres, porque padecerão fome e alucinação. Felizes aqueles que, por enquanto, choram e se recuperam perante as Leis de meu Pai, porque se liberam das cargas dos crimes.

- O único sentido da vida física é a luta para a conquista do amor que produz harmonia e abençoa o mundo com a paz.

- Não vos canseis de amar, mesmo quando desamados e perseguidos, porque eles, os perversos, não sabem o que fazem.

- Eu vim para que todos tenhais alegria no coração e saúde para o bem viver.

Novamente houve o silêncio, quando uma voz chorosa quebrou a harmonia:

- Jesus, Filho de David, tem piedade de mim, que sou amaldiçoado pela lepra...

Houve um movimento instintivo da multidão, abrindo passagem e um homem recurvado sobre um bordão, trêmulo, aproximou-se dele.

Todos o olharam ansiosos, com dúvidas.

Ele abraçou o infeliz e disse-lhe:

- Fica bem, eu o quero em nome de meu Pai.

Diante dos nossos olhos, e podíamos ver-lhe as carnes fremir, ergueu o desgraçado e mandou que se fosse.

Estava curado!

Houve gritos, exclamações, júbilos, aleluias!

E Ele continuou atendendo os desditados que se acercaram.

O enfermo de Sídon estava petrificado.

Não saberia dizer como tudo agora ocorria, porque Ele se lhe aproximou e indagou com ternura de um amigo:

- Que queres que eu te faça? - Interrogou-o, afavelmente.

Quase sem fôlego, ele respondeu:

- Que eu tenha paz!

Esquecera-se da lepra e desejava aquela harmonia que d'Ele exalava. Naquele momento não teve medo de morrer nem de viver.

Jesus sorriu com gentileza e disse-lhe:

- Fica bom, eu o quero também...

Todo ele tremeu, quase numa convulsão.

Todos os músculos movimentaram-se e uma sudorese abundante lavou-lhe o corpo enfraquecido e em putrefação.

De repente sentiu que o anjo da saúde tomou-lhe todas as fibras e a lepra desapareceu.

Quis agradecer-lhe, dizer palavras não dizíveis, mas não lhe chegavam à boca, aberta pela surpresa imensa.

- Eu te conheço desde ontem... - Ele arrematou, afirmando: - Segue em paz, que é a bênção do Pai no coração daqueles que O amam, e nunca mais te esqueças de amar...

*

Ele voltou a Sídon, a bela cidade fenícia às margens do Mar Mediterrâneo, e numa aldeia criou um albergue para os portadores da hanseníase em homenagem Àquele que lhe concedeu paz.

E jamais esqueceu a frase: 

- Eu te conheço desde ontem.

Não somente se houvera curado da lepra externa, mas também daquela interior, de onde se origina a que devasta o corpo.

Muitos se haviam curado, recuperado a aparência que a morte consumiu depois, enquanto ele houvera adquirido a cura real, a do Espírito necessitado de harmonia.

Amélia Rodrigues
Psicografia de Divaldo Franco, na tarde de 9 de agosto de 2013,
na residência de Epaminondas Correia e Silva, 
em Paramirim, Bahia.

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