quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Quem sou eu?

Quem sou eu?

João Marcus 

(Pseudônimo de Hermínio C. Miranda)


Conta-se que, ao atravessar uma fase particularmente difícil de sua existência, Teresa de Ávila ter-se-ia queixado docemente ao Senhor, ouvindo, em resposta, uma voz misteriosa que lhe dizia ser assim que Deus trata aqueles a quem Ele ama.

“É por isso — responde Teresa, conformada, mas dolorida - que Ele tem tão poucos amigos.”

A tribulação do justo e do bom sempre foi um grave problema filosófico e moral. Por que sofre a criatura que tanto se empenha nas tarefas do bem, que se recolhe ao silêncio da renúncia, que se esforça por servir em lugar de ser servida, que sonha, como o amado Francisco, em se tomar dócil instrumento da vontade do Pai? Por quê?

A Doutrina dos Espíritos nos trouxe explicações lógicas e indiscutíveis, ao ensinar que a dor é a moeda difícil de ganhar, com a qual resgatamos compromissos vencidos de há muito, os quais a bondade infinita de Deus não permitiu fossem a protesto. A cobrança é sempre amigável, se nos dispomos, honestamente, ao resgate, ainda que, às vezes, possamos estranhar as circunstâncias sob as quais ele se realiza. Por que, por exemplo, tudo nos parece tão difícil? Por que parece termos ficado abandonados à nossa própria sorte, sem a presença amiga de nossos mentores? A verdade é que não estamos sós, nem nos faltam recursos para a tarefa regeneradora. Nem a pena é superior à culpa, nem nossas forças inferiores às necessidades. Tudo está na medida certa. Só a impaciência continua impaciente; a revolta, revoltada. E, por isso, aquele que segue sob o peso da dor, mas sereno, parece um ser estranho, insensível e incompreensível.

Diante de questões como essa, que se transformam em objeto de penosas especulações no cérebro privilegiado dos sábios, outros sempre encontraram respostas. Como disse Jesus, Deus jamais ocultou a verdade aos simples e humildes. Veja bem que ele disse simples e humildes, e, não, ignorantes, pois o ignorante também pode ser orgulhoso, e o sábio pode ser humilde.

Não é difícil encontrar no Evangelho a explicação que o próprio Mestre antecipou ao ensinamento que o Consolador haveria de trazer no futuro, segundo suas próprias observações. João registra essa palavra, em particular no capítulo 15, versículos 18 e 19:

— “Se o mundo vos odeia, sabei que me há odiado antes de vós. Se fôsseis do mundo, o mundo amaria o que é seu, mas como não sois do mundo, porque vos retirei do mundo, por isso o mundo vos odeia."

Nada mais claro e profundo, verdadeiro e preciso.

Em primeiro lugar, o Mestre parece advertir por antecipação os que ficarem na dura liça terrena. Ele sabe que a luta não vai ser fácil. Quando falou que veio trazer a espada e a discórdia, não era porque sua doutrina fosse belicosa ou desarmonizada, mas porque aquele que deseja implantar, num mundo hostil, a verdade suprema do amor, não pode esperar que a semente generosa caia em terreno fértil e receptivo. Muitas espadas se levantarão contra a disseminação da paz, e a dissensão será levada até mesmo ao recesso dos lares, quando a mãe pacificada sofrer com o filho belicoso, ou a filha amorosa derramar lágrimas ocultas ante o pai agressivo. Como, porém, realizar a evangelização do mundo se não misturar os que já entreviram a luz com aqueles que tateiam nas trevas? Se os desesperados ficassem entregues ao seu desespero, jamais encontrariam o caminho que pode levá-los para fora daquele dédalo de paixões em que se perderam. Quem vai buscá-los, senão os que já aprenderam a sair de lá?

São esses os que Jesus retirou do mundo. Ao retirá-los e investi-los das tarefas salvadoras, embora humildes, marcou-os como selo indelével do amor, e o mundo, que não mais os reconhece como seus, hostiliza-os abertamente. Se continuassem entregues ao mundo, seriam tolerados e até amados. Que não se impressionem, no entanto, lembra o Senhor, porque, antes de cada um de nós, ele próprio — que também não é do mundo — sofrera o mesmo ódio, os mesmos rancores, as mesmas aflições. Ele, que nada tinha a resgatar. Aqueles a quem distinguiu com a sua marca concedeu não apenas o privilégio de servir, mas também o de se redimirem.

E, assim, nossa atitude diante da dor deve ser de respeito, de serenidade e de esperança. Estamos recebendo o salário justo, com o qual compraremos o tesouro da liberdade e da paz, aprendendo a conviver com a verdade. Não nos disse Ele que uma vez conhecida a verdade estaríamos livres? É assim mesmo. Depois do erro clamoroso, atormentado pela voz implacável da consciência, muitos são os que buscam fugir de si mesmos, num contínuo processo de alucinação. Quanto maiores as loucuras, mais forte a dose de anestesia espiritual que procuram ingerir. A dor alheia é um dos ingredientes desse veneno que a ciência ainda não identificou. Enquanto fazemos os outros sofrerem, vivemos a trágica ilusão de que a nossa dor se atenua. Terrível ilusão: ela apenas se acovarda e se recolhe às profundezas do ser, de onde emergirá um dia, incontrolável, avassaladora, ao soar a hora do despertamento.

Por outro lado, se a dor não é de resgate e sim sacrificial, tanto melhor. Não é mais belo sofrer por amor, para servir, do que sofrer sob o aguilhão da culpa? O pensamento do Cristo, no texto de João, não distingue aqueles que já estariam redimidos dos que ainda trazem o peso do erro; mas, que importa? Se ele nos chamou, se nos separou do mundo, é porque confiou em nós, é porque nos entregou a tarefa da disseminação da esperança. Não é bom saber que a qualquer um de nós Ele confia a sua mensagem de amor, até a pobres e rotos trabalhadores como nós? É bastante que identifique em nós um átomo de boa vontade, um pequenino impulso no desejo de servir. É preciso que nos lembremos disso ao transmitirmos canhestramente o recado de Mais Alto. Peçamos aos companheiros que nos ouvem, que nos vigiam, que nos odeiam, que nos desprezam, que prestem atenção à beleza da mensagem e não aos andrajos do arauto. Não ao mensageiro, mas à própria essência da palavra que ele traz.

É por isso que a Doutrina abençoada dos Espíritos nos previne, a cada instante, que não podemos cruzar os braços ante nossas próprias limitações, ou quando nos sentimos fustigados pela dor e pela incompreensão. Se insistíssemos em esperar a purificação e o equilíbrio para, então, começar a tarefa, nunca ela seria iniciada, e nunca alcançaríamos os primeiros estágios da purificação. Pode ser um belo sinal de humildade dizer ante a tarefa espírita:

— Quem sou eu?

Mas é também falsa modéstia, vaidade mal escondida, comodismo pernicioso a falar por nós, e em nós. Sim, quem sou eu, é verdade, mas mãos à obra, que o trabalho aí está, não apenas nos outros, mas, principalmente, no território agreste do nosso íntimo, à espera de sacrifícios e renúncias anônimas.

E quando a dor nos sacudir mais fortemente do que desejaríamos ou esperávamos, lembremos daquela advertência imortal:

— ... “sabei que (o mundo) me há odiado antes de vós.”

E graças daremos a Deus, por sermos alguns daqueles poucos amigos que Ele tem.

João Marcus

Hermínio C. Miranda
(Sob pseudônimo de João Marcus), do livro:
Candeias na noite escura

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Nota explicativa: - Hermínio C. Miranda também assinava seus artigos como João Marcus e H.C.M. Este expediente foi sugerido pelo editor da Revista Reformador para que pudessem ser publicados mais artigos dele em uma mesma revista. 

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