Moral e Religião
J. Herculano Pires
Numerosas vezes temos assinalado o sentido profundamente religioso de “O Livro dos Espíritos”. Há estudiosos, entretanto, que não percebem esse sentido, preferindo encarar a obra fundamental da doutrina como simplesmente filosófica. Por isso, fazendo coro com os adversários do Espiritismo, inadvertidamente, chegam a negar o seu aspecto religioso. Dessa falsa posição resultam lamentáveis confusões, tanto entre adeptos pouco inteirados do assunto, quanto entre leigos que se interessam pela doutrina.
Emmanuel definiu o Espiritismo, na obra “O Consolador”, como sendo “um triângulo de forças espirituais”. A base desse triângulo, que se assenta na Terra, tem como ângulos a Ciência e a Filosofia. O vértice, que se volta para o céu, é a Religião. Essa imagem corresponde exatamente à definição de Kardec, em “O que é o Espiritismo”, quando o codificador afirma que o Espiritismo é ao mesmo tempo Ciência e Filosofia, de consequências morais.
O fato de Kardec não haver mencionado a palavra “religião” faz com que alguns estudiosos rejeitem a semelhança que apontamos. Convém lembrar, porém, que Kardec era discípulo de Pestalozzi, cuja doutrina pedagógica só admitia a religião como moral. Para o grande mestre de Yverdun, a religião se manifestava através de três fases. Havia a religião animal, a religião social e a religião moral. Somente esta última, depurada de todos os convencionalismos sociais, e por isso mesmo traduzindo-se por moralidade pura, no mais alto sentido da palavra, era digna de figurar em sua doutrina pedagógica.
Além disso, é preciso convir que Kardec, ao formular a sua definição, já havia recebido as instruções do Espírito da Verdade, que lhe anunciava o restabelecimento do Cristianismo primitivo. Ora, esse Cristianismo puro havia sido deturpado pelas influências daquilo que Pestalozzi chamava “religião social”, e que Bergson definiria, em nossos dias, como “religião estática”. Mas a “religião social” era a única forma de religião admitida na época. Fiel aos princípios da filosofia pedagógica em que formara o seu espírito, fiel aos ensinos espirituais recebidos e fiel, ainda, ao ensino de Jesus nos Evangelhos (veja-se a passagem da mulher samaritana), Kardec substituiu a palavra “religião”, que poderia provocar confusões, pela palavra “moral”, que livrava o Espiritismo de qualquer interpretação dogmática e infiltração ritual.
Se estas razões de ordem histórica e, portanto, concretas não bastassem, teríamos ainda a própria declaração de Kardec a respeito, no seu derradeiro discurso, e teríamos também a sua definição religiosa em “O Evangelho Segundo o Espiritismo”.
Mas não se precisa de tanto, para compreender o sentido religioso do Espiritismo. Basta a análise do próprio texto de “O Livro dos Espíritos”, que começa pela definição de Deus, aponta Jesus como o modelo humano e termina tratando das leis morais, da lei religiosa de adoração e das penas e gozos futuros. Negar que tudo isto seja religião é a mesma coisa que negar a existência da luz solar.
Por tudo isso, alegra-nos a publicação do livro de Emmanuel, “Religião dos Espíritos”, psicografado por Chico Xavier. O luminoso guia espiritual não vem apresentar-nos, nesse pequeno grande livro, nenhuma doutrina pessoal, mas apenas uma tentativa de aprofundamento espiritual do aspecto religioso de “O Livro dos Espíritos”. À maneira do que fez com os Evangelhos, em tantas mensagens esclarecedoras, Emmanuel comenta questões da obra básica da doutrina, penetrando-lhes o sentido espiritual.
Este pequeno-grande livro é, portanto, um convite, como o diz o autor, no prefácio, ao estudo mais aprofundado da religião “em espírito e verdade” que a obra básica nos oferece. Emmanuel declara esperar a colaboração dos “companheiros de tarefa”. Essa colaboração só pode ser dada por aqueles que forem capazes de se dedicar ao estudo da obra básica, penetrando-lhe “a essência redentora”. Kardec acentuava que o Espiritismo “não é uma questão de forma, mas de fundo”. O problema da religião espírita insere-se exatamente nessa definição do codificador.
Tratando-se de uma religião em espírito e verdade, segundo a definição de Jesus, no episódio da mulher samaritana; de uma religião moral, segundo Pestalozzi; de uma religião dinâmica, liberta de formalismo, de acordo com a definição bergsoniana; ou de moralidade pura, segundo o próprio Kardec; a religião espírita não pode ser encarada de maneira formal, mas substancial. Quando colocamos de lado a letra que mata, para penetrar o espírito que vivifica, tudo se esclarece.
- Para seguirmos corretamente o espiritismo, devemos submeter todas as mensagens mediúnicas ao crivo duplo de Kardec, sendo eles, a razão e a universalidade.
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