quinta-feira, 2 de junho de 2022

As Vidas Sucessivas

As Vidas Sucessivas

Gabriel Delanne



A lei das existências sucessivas é-nos ensinada pelos Espíritos instruídos. O testemunho de milhares de almas que se comunicam vem trazer a esta crença a autoridade da experiência diária, porque todos dizem-nos que veem os erros de suas vidas passadas, que sofrem por isso e que procuram voltar à Terra para reparar as faltas anteriormente cometidas.

Eis o que a respeito diz Allan Kardec:

O dogma da reencarnação, afirmam certas pessoas, não é novo: ressuscitou de Pitágoras. Nunca dissemos que a doutrina espírita fosse invenção moderna; o Espiritismo, sendo uma lei da Natureza, existe desde a origem dos tempos, e sempre nos esforçamos em provar que seus indícios aparecem desde a mais remota antiguidade. Pitágoras, como se sabe, não é o autor do sistema da metempsicose: colheu-o entre os filósofos da Índia e do Egito, onde ele existia desde tempos imemoriais. A ideia da transmigração das almas era, pois, uma crença vulgar, admitida pelos homens mais eminentes. Como lhes veio essa ideia? Pela revelação ou por intuição? Não o sabemos; mas, como quer que tenha sido, uma ideia não transpõe as idades e não é aceita por inteligências escolhidas, se não tiver um lado sério.

A antiguidade desta doutrina, em vez de constituir-lhe motivo de repulsa, deve ser considerada uma prova a seu favor. Contudo, vê-se que há, na metempsicose dos antigos, um ponto que a diferencia muito da doutrina moderna da reencarnação, e que os Espíritos rejeitam do modo mais absoluto: a transmigração do homem para os animais. Os Espíritos, ensinando o princípio da pluralidade das existências corporais, fazem reviver uma doutrina que nasceu nas primeiras épocas do mundo e que se conservou até os nossos dias no pensamento íntimo de muitas pessoas; eles, porém, apresentam-na sob um ponto de vista mais racional, mais conforme com as leis progressivas da Natureza e mais em harmonia com a sabedoria do Criador, despojando-a de todos os acessórios da superstição. Uma circunstância digna de nota é que não é somente em nossos livros que eles a ensinaram nestes últimos tempos: antes de nossa literatura, numerosas comunicações da mesma natureza foram obtidas em diversos países e se multiplicaram consideravelmente depois. (*)
(*) A pluralidade das existências foi ensinada na antiguidade por Platão, Plotino, Porfirio, Jámblico, Origenes, Timeu de Locres. Os druidas faziam disso um ensino público. Nos tempos modernos, Delormel, Charles Bonnet, Dupont de Nemours, Constant Savy, Ballanche, Jean Reynaud, Henri Martin, Esquiros, Flammarion são partidários da doutrina das vidas sucessivas sobre a Terra ou sobre outros planetas. (Nota do editor)
Examinemos a coisa sob outro ponto de vista e, abstração feita de toda intervenção dos Espíritos, que ficam de parte por um instante, supondo-se mesmo que nunca se tivesse tratado dos Espíritos, coloquemo-nos momentaneamente num terreno neutro e admitamos no mesmo grau a probabilidade das duas hipóteses, a saber: a pluralidade e a unidade das existências corporais, e vejamos para que lado penderão a nossa razão e o nosso próprio interesse.

Certas pessoas repelem a ideia da reencarnação pelo único motivo de não lhes convir isso, dizendo que lhes basta uma existência e que não desejam ter outra igual; conhecemos alguns que se enfurecem só com o pensamento de reaparecerem na Terra.

Ouvimos fazer este raciocínio: Deus, que é soberanamente bom, não pode impor ao homem o recomeço de uma série de misérias e tribulações. Acharão, porventura, que haja mais bondade em condenar-se o homem a um sofrimento perpétuo por alguns momentos de erro, do que em fornecer-lhe os meios de reparar suas faltas? O pensamento de ser para sempre fixada a nossa sorte por alguns anos de provas, quando nem sempre depende de nós atingir a perfeição na Terra, tem alguma coisa de aflitivo, ao passo que a ideia contrária é eminentemente consoladora: ela deixa-nos a esperança. Por isso, sem nos pronunciarmos pró ou contra a pluralidade das existências, sem admitirmos uma hipótese de preferência à outra, dizemos que, se fosse concedida a escolha, ninguém preferiria um julgamento sem apelo.

Se não há reencarnação, não haverá senão uma existência corporal: isto é evidente; se a nossa existência corporal é a única, a alma de cada homem é criada na ocasião do seu nascimento. Admitindo-se, segundo a crença vulgar, que a alma nasce com o corpo ou, o que significa o mesmo, que anteriormente à sua encarnação, ela só possui faculdades negativas, apresentamos as questões seguintes:

1 - Por que motivo a alma apresenta aptidões tão diversas e independentes das ideias adquiridas pela educação?

2 - Donde procede a aptidão extranormal de certas crianças para tal arte ou tal ciência, ao passo que muitos adultos ficam inferiores ou medíocres durante toda a sua vida?

3 - Donde vêm, para uns, as ideias intuitivas ou inatas que não existem em outros?

4 - Donde se originam, para certas crianças, esses instintos precoces de vícios ou de virtudes, esses sentimentos inatos de dignidade ou de baixeza que contrastam com o meio em que elas nasceram?

5 - Por que certos homens, abstração feita da educação, são mais adiantados que os outros?

6 - Por que há selvagens e homens civilizados? Se tomardes uma criancinha hotentote e a educardes nos nossos liceus de mais nomeada, conseguireis fazer dela um Laplace ou um Newton?

Perguntamos: qual é a filosofia ou a teosofia que pode resolver esses problemas? As almas ao nascer ou são iguais ou são desiguais: das duas uma. Se são iguais, por que são tão diversas as suas aptidões? Dirão que isso depende do organismo? Porém, então nos encontramos com a doutrina mais monstruosa e mais imoral. O homem fica sendo apenas uma máquina, o joguete da matéria, sem a responsabilidade de seus atos e podendo lançar a culpa de tudo sobre as suas imperfeições físicas. Se são desiguais, é porque Deus o criou assim; mas então, por quê? Essa parcialidade se conformará com a justiça e com o amor igual que ele dedica a todas as suas criaturas?

Admitamos, ao contrário, uma sucessão de existências anteriores progressivas, e tudo se explica. Os homens trazem, ao nascer, a intuição do que adquiriram; são mais ou menos adiantados, segundo o número de existências que têm percorrido. Deus, em sua justiça, não podia criar almas mais perfeitas nem menos perfeitas; com a pluralidade das existências, a desigualdade que observamos nada tem de contrária à mais rigorosa equidade; esta parece não existir, porque só vemos o presente e não o passado. Este raciocínio repousará numa hipótese, numa simples suposição? Certamente que não; partimos de um fato patente, incontestável: da desigualdade das aptidões e do desenvolvimento intelectual e moral, que é inexplicável por todas as teorias em voga e que tem na nossa teoria uma explicação simples, natural e lógica. Será racional preferir-se aquelas que nada explicam?

A respeito da sexta questão, dirão, naturalmente, que o hotentote é de uma raça inferior. Mas, perguntamos, o selvagem é ou não um homem? Se é, por que Deus negou a ele e à sua raça os privilégios concedidos à raça caucásica? Se não é um homem, por que procuram fazê-lo cristão? A Doutrina Espírita é mais lógica: para ela, não há muitas espécies de homens, e, sim, homens que são Espíritos mais ou menos atrasados e suscetíveis de progredirem; não será isto mais conforme à justiça de Deus?

A crença nas vidas sucessivas era o fundamento do ensino dos mistérios; os filósofos antigos, tendo à sua frente Platão, acreditavam nas vidas anteriores; ele dizia: “Aprender é recordar.”

Portanto, a pluralidade das existências da alma tem a seu favor a autoridade da tradição, da razão e da experiência, e é lógico que ela seja aceita com entusiasmo por todos aqueles que já sentiram o vácuo das outras teorias. Com as vidas sucessivas, o Universo nos aparece povoado de seres que percorrem em todos os sentidos o infinito da imensidade. Quão pequena e mesquinha é a teoria que circunscreve a Humanidade a um imperceptível ponto do espaço, que no-la mostra começando num instante dado para acabar igualmente com o mundo que a sustenta, não abraçando assim senão um minuto na eternidade! Quão triste, fria e glacial é ela, quando nos mostra o resto do Universo antes, durante e depois da existência da Humanidade terrena, sem vida, sem movimento, qual imenso deserto imerso no silêncio! Como é desesperadora a pintura que nos faz do pequeno número de eleitos votados à contemplação perpétua, ao passo que a maioria das criaturas é condenada a sofrimentos infindáveis! Quão aflitiva é, para os corações amorosos, a barreira que ela levanta entre os mortos e os vivos!

Ao contrário, quão sublime é a teoria espírita! Como a sua doutrina engrandece as ideias e dilata o entendimento! A Terra nos oferece o espetáculo de um mundo essencialmente progressivo. Saído do estado caótico, ele se transforma e se modifica à medida que avança em seu curso secular. Os seres aparecidos então em sua superfície seguiram a mesma lei de progressão, e a sua estrutura aperfeiçoou-se harmonicamente à medida que as condições exteriores se tornaram melhores. O homem, enfim, saindo dos baixios da bestialidade, elevou-se até o conhecimento do mundo exterior.

Será possível supor-se que não haja laço algum entre as almas que viveram nas épocas passadas e as que vivem atualmente? Sabendo-se que a natureza do homem é ainda tão imperfeita, poder-se-á crer que, depois da morte, ele vá ficar parado e gozar de repouso eterno? E essa parada, esse termo de progresso estará em concordância com as noções que Deus nos permite conceber sobre Ele e sobre suas obras? A Natureza caminha sempre; ela trabalha sempre, porque Deus é a vida e é eterno, e a vida é o movimento progressivo para o supremo bem, isto é, para o próprio Deus.

Seria possível que somente o homem, ele que foi criado livre, pudesse ser bruscamente detido em sua marcha, com o grau de progresso que houvesse adquirido, sem participar do movimento da Natureza? Tal coisa seria incompreensível.

Entre duas doutrinas, das quais uma amesquinha e a outra amplia os atributos de Deus, das quais uma está em desacordo e a outra em harmonia com a lei do progresso, das quais uma estaciona e a outra avança, o bom senso indica de que lado se acha a verdade. Que cada um interrogue a sua razão; ela responderá, e a sua resposta será confirmada por um guia certo que jamais se engana: a consciência.

Se o nosso modo de ver é exato, alguns entretanto perguntarão por que o Poder Criador não revelou desde o princípio qual a verdadeira natureza do homem e seus destinos. A resposta é a seguinte: Deus não revelou isso desde logo, pela mesma razão que não se ensina à infância o que se ensina à idade madura. A revelação limitada foi suficiente durante certo período da Humanidade; Deus concede-a proporcionalmente às forças do Espírito. Aqueles que recebem hoje uma revelação mais completa, são os mesmos Espíritos que já receberam revelação parcial em outros tempos, porém que, desde então, aumentaram sua inteligência. Antes que a Ciência lhes tivesse feito conhecer as forças vivas da Natureza, a constituição dos astros, o verdadeiro lugar e a conformação da Terra, poderiam eles compreender a imensidade do espaço, a pluralidade dos mundos? Antes que a Geologia tivesse feito conhecer a estrutura deste globo, poderiam eles lançar o inferno para fora de seu seio? Antes que a Astronomia tivesse descoberto as leis que regem o Universo, poderiam eles compreender que não há baixo nem alto no espaço, que o céu não está colocado acima das nuvens nem é limitado pelas estrelas? Antes dos progressos da ciência psicológica, poderiam eles identificar-se com a vida espiritual? Poderiam conceber, depois da morte, uma vida feliz ou infeliz, que não fosse em lugar circunscrito e sob uma forma material? Certamente que, não compreendendo mais pelos sentidos que pelo pensamento, o Universo era muito vasto para o seu cérebro; fora preciso reduzi-lo a proporções menos amplas, que seriam alargadas mais tarde. É o que fazemos hoje, demonstrando, não a inanidade, mas a insuficiência dos primeiros ensinos. Portanto, os espíritas não admitem o paraíso, segundo o significado que ordinariamente se dá a esta palavra. Eles não podem compreender que exista lugar especial de delícias onde os eleitos estejam enfadados por uma eterna ociosidade, nem penitenciária onde as almas estejam eternamente torturadas.

Segundo os Espíritos, não há raça amaldiçoada nem existem demônios; segundo eles, há Espíritos maus em grande número, porém estes não são eternamente votados ao mal, pois têm constantemente a faculdade de se melhorarem nas reencarnações sucessivas. Neste caso, ainda o testemunho dos fatos é formal. Cada dia temos ocasião de verificar que Espíritos endurecidos voltam ao caminho do bem, devido às preces que fazemos por eles e às exortações que lhes dirigimos. Para muitos desses infelizes, a situação intolerável em que se acham parece-lhes eterna. Mergulhados em espessas trevas, desde o momento em que deixaram a Terra, e sofrendo horrivelmente, acreditam que esse estado não terá fim, e desesperam-se; mas, se um sincero arrependimento irromper do seu coração, seus olhos desvendar-se-ão: veem, então, sua verdadeira situação e pedem, como uma graça, para voltar à Terra, a fim de resgatarem, por uma vida de expiação e de sofrimento, os seus crimes anteriores. Verifica-se que, no mundo dos Espíritos, há alguns que se conservam por muito tempo refratários a toda ideia de submissão; mas, esses também têm o livre-arbítrio: sabemos que a sua hora há de chegar e que ninguém é castigado eternamente.

Gabriel Delanne do livro:
O Fenômeno Espírita

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