sábado, 20 de julho de 2024

As três sombras

As três sombras

Pe. Natividade


Escultura: As três sombras - Rodin

Numa estrada deserta, em noite fria, deslizavam tristes, três sombras embuçadas, perdidas em si mesmas.

De quando em quando, entreolhavam-se inquietas e seguiam a jornada murmurando ininteligíveis expressões.

Numa curva inesperada, num encontro dos caminhos, pararam, perscrutaram e, antes de seguirem diferentes rumos, desvelaram-se.

A primeira, a mais alta e negra, aproximou-se das demais e gargalhando, esclareceu:

— Sou a Ira. Faço-me de caminho mais curto para a morte.

Vivem comigo o desespero e a tragédia. Trajo-me de orgulho.

Seguem-me os passos o ódio, calço-me com as sandálias da revolta e arrimo-me no bastão da inquietude. Acompanho o homem desde “que o mundo é mundo” e pretendo viver com ele eternamente...

E depois de breve pausa:

— Todos me acolhem a qualquer hora, sem indagação, nem exigência. A simples apelo sou recebida com prazer em toda parte.

Sou feliz! Sigo o meu destino, atraindo o mundo a mim.

A segunda sombra, taciturna e trêmula, após ligeira meditação, falou receosa:

— Chamo-me Medo. Sou a porta larga que conduz à loucura.

Ando despido. Tenho força.

A Ira, prosseguiu, é vencida pela meditação arrimada na prece sob o pálio do perdão, e suas companheiras desfalecem e morrem ante a Humildade.

Mas eu sou invencível.

Oculto-me na luz e nas trevas, entre sábios e ignorantes, grandes e pequenos, ricos e pobres. Moro em todo lugar. Como rei, cerco-me de bajuladores fieis: a dúvida, o receio, a desconfiança, o pavor...

Não temo a fé, nem a religião. Desdenho-as até. Numa eu mostro a certeza, noutra apresento a suspeita. E sigo o meu caminho.

Muitos me amam, convocam-me sem cessar...

No intervalo que se fez, as duas megeras se contemplaram, quase sorriram e, fitando a terceira companhia, indagaram ansiosas:

— Quem és filha da tristeza?

— Eu? — inquiriu a sombra pesarosa. — Sou vossa irmã.

— Teu nome?

— Quase não o sei. Chamam-me infortúnio, uns outros felicidade e muitos desgraça. Sempre vivi errante, perseguida, odiada. Jamais sorri.

Um dia — e cerrou os olhos como quem recorda inesquecível encontro —, numa estrada como esta, encontrei Alguém que sorriu para mim. Era louro e belo, tinha olhos mansos e meiga voz, embora seu rosto refletisse tristeza imensa. Logo depois, fitou-me comovido, e mudo passou...

Notei que muitos o seguiam, chamando-Lhe Mestre.

Posteriormente eu soube mais. Era noite e Ele orava num horto sombrio. Fitei-o. Reconheceu-me. Seu rosto suado aureolou-se de ligeiro sorriso e disse-me: “Não desfaleças irmã! Segue tua trilha.”

Não o deixei mais. Acompanhei-o atado a cordas, na multidão, em palácio, na solidão, até ao fim...

Calou-se a sombra. E sob o vento cortante chorou.

— Que sucedeu? — inquiriram as ouvintes.

— Quando se agitava na Cruz, cercado da multidão encolerizada, fitou-me já arroxeado e murmurou só para mim: “Avança missionária. Longa, difícil e bela é a tua tarefa. Não mais seguirás a ira e o medo. Terás diferente via. Serás minha mensageira ao mundo desatento. Caminharás só, incompreendida, ensinando em silêncio.

“De quando em quando, duas companheiras passarão por ti: a lágrima arrimada à saudade. Mas em teu curso deixarás esperança e paz. Preciso de ti.

“Vai em meu nome, Dor irmã, e ergue as minhas ovelhas.

Chama-as a Mim. Fala-lhes da paciência e da resignação, da coragem e do bom ânimo.” 

“Seguir-te-ei!”

Eis quem sou.

Houve silêncio. O vento soprou mais forte e, despedindo-se, as três sombras seguiram os seus caminhos.

Pe. Natividade por Divaldo Franco do livro:
Crestomatia da imortalidade

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Pe. NATIVIDADE:
Manuel da NATIVIDADE de Maria (Pe) nascido em 8 de setembro de 1845 e falecido a l.° de janeiro de 1922. Valoroso sacerdote da Igreja Católica, na cidade do Salvador, caracterizado por um espirito eminentemente cristão, cuja vida de devotamento aos sofredores das zonas dos "alagados", dele fez um verdadeiro missionário da caridade e do amor. Desencarnou sobre humílimo grabato, em modestíssimo barracão de travas, aos fundos da Igreja de N. S. dos Mares, em extrema pobreza.

 

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