quinta-feira, 18 de julho de 2024

O Ser Moral

O Ser Moral

J. Herculano Pires



O problema do ser é fundamental em toda a Filosofia. Mas as definições filosóficas não o definem, antes propõem. Quando dizemos ser humano fazemos uma especificação perigosa, pois caímos no perigo de tomar essa expressão como sinônimo da palavra homem. E isso não é correto, pois o homem é mais do que o ser e, ao mesmo tempo, o ser é mais do que o homem. Kardec referiu-se, em O Livro dos Espíritos, “ao ser do corpo”. Ser é aquilo que é. Por isso, numa das metáforas da Bíblia, Iavé, o deus dos judeus, que queria passar como o Ser Supremo, disse: “Eu sou Aquele que é”. A pretensão alegrou os filhos de Deus, o povo eleito, mas não passava de uma afirmação ambígua. A palavra ser foi arrancada, como a costela de Adão, do verbo ser, mas não deu nenhuma Eva e sim um proteu semelhante ao da palavra alma, que Kardec sentiu-se no dever de definir para evitar confusões. Quando falamos de Deus como Ser, sempre o elevamos à grandeza suprema. Mas quando falamos do homem como ser nos referimos ao que o homem é. Há no homem, portanto, vários elementos conjugados: o corpo, a alma – o corpo espiritual ou perispírito –, as faculdades humanas normais e paranormais e a especificidade do ser humano, que é diferente de todos os demais seres. Existe a pedra e o ser da pedra, o cavalo e o ser do cavalo, a borboleta e o ser da borboleta e assim por diante. O ser é uma entidade metafísica, não visível nem tangível, uma essência e não uma forma.

Ninguém pode matar um ser, mas apenas a sua representação física. A imortalidade do homem não se define como privilégio do homem, mas do ser. Há seres de razão – matemáticos, lógicos e ideológicos – e todos eles se relacionam com o ser humano sem jamais se confundirem com este. Não é fácil definir o ser, mas não se pode olvidá-lo ou negá-lo. O que é na sua facticidade ôntica, na formação ontogenésica de suas virtualidades específicas, não pode deixar de ser, pois se integra na realidade total como forma essencial e incessantemente autogeradora, porque o ser se define, em última instância, como necessidade teleológica de toda a realidade. Por isso o ser aqui existencial de Heidegger que pretende ser concreto, na sua facticidade temporal, completo na sua essência e forma, ambas humanas, não passa de um fantasma (no sentido grego do termo), uma aparição no aqui e no agora, que se esvai na temporalidade, na frustração aparente da morte sartreana, vestindo-se da aparência biológica para continuar a ser na realidade ontológica pura. A morte aparece então como o não ser, a negação do ser em que se repete sempre na solidão da inerência física do morrer. O não do ser é apenas o reverso do sim que o afirmou no plano sensorial, contrapondo-se à sua eterna realidade metafísica. O ser nos dá as costas e desaparece. Não está mais ao nosso alcance. Mas sabemos que, apesar disso, permanece em nós, em nossa memória, em nossa afetividade, em nossa saudade, na historicidade em que nos inserimos juntamente com ele, na sua essência que se derrama em nós e em nosso redor. Verificamos que ele vive apesar da morte e que não podemos descartá-lo de maneira alguma. 

Chegamos à compreensão de que ele nos deixou, mas ao mesmo tempo ficou. O que nos apavora na morte não é a morte em si mesma, mas a ausência que se abre em nosso convívio e que é realmente impreenchível. Sabemos, de maneira profunda (em nossa consciência do real) que todos morremos e sabemos também, com a mesma certeza, oriunda de nossas experiências, que o Ser não se acaba, não se extingue, mas precisa ontologicamente de se completar na morte, como Heidegger afirma em contraposição à leviana teoria da frustração sartreana. O que nos faz sofrer não é a morte, mas a nossa recusa à realidade da vida, que leva sempre a morte atrelada ao seu carro como inevitável corolário das atividades existenciais do homem. Toda a série de experiências que constitui uma existência vai fatalmente desembocar na morte. O ato de morrer é um fechar de portas para o mundo. O Ser se engolfa em si mesmo, desliga os contatos com a realidade sensível e volta à solidão do em-si como coisa, isolado em sua autoinerência. Tudo se consumou na realidade possível. Cabe-lhe então, na sua câmara escura, projetar na tela da memória o seu próprio drama para assisti-lo sozinho e avaliar os seus resultados, as consequências para a nova abertura existencial que vai se abrir para ele nas hipóstases de Plotino. Nessa retrospecção avaliativa o Ser assimila em última instância as suas conquistas existenciais e as consolida em si mesmo. Não será mais, nunca mais, o que era, mas carregará o que era como disposições e elementos destinados à elaboração do que será. O temor e a náusea da morte se converterão em anseio de renovação e esperança, não segundo a tese de Gabriel Marcel, mas segundo a teoria do encontro com o Outro, de Kierkegaard, no único diálogo então possível, pois o Outro é Deus, que o Ser reencontra na transcendência vertical de Karl Jaspers.

Somos obrigados a tratar esse problema da Filosofia Espírita na sua perspectiva própria e na linguagem correspondente, em conotação com as posições filosóficas atuais, porque só assim se pode demonstrar a precisão e a clareza do pensamento espírita, em flagrante contraste com a nebulosidade das teologias fantasmagóricas que as religiões masoquistas nos cevaram por milênios nos horrores da dor e da morte. Hoje essas mesmas religiões tentam romper o ergástulo de suas concepções negativas com apelos à leviandade sensorial das inovações rituais em termos de secularização e mundanismo. Não é possível nenhuma reformulação de sistemas e de princípios sem o aprofundamento filosófico dos problemas fundamentais do homem.

A posição filosófica existencial, como a abordam, do Ser na existência – pois o Ser do homem é o único realmente acessível às nossas investigações –, exclui de imediato as fabulações teológicas oriundas da pretensão da vaidade humana a serviço do obscurantismo. A Moral, na sua mais alta expressão, é questão de equilíbrio e orientação do pensamento com a afetividade. Qualquer desvio nesse sentido, com vistas a interesses secundários, como a ênfase excessiva dada à razão ou a ênfase contrária, dada ao sentimento, negam todos os valores e a própria essência da moralidade. A prova dessa premissa nos é dada pela história, mostrando que a ênfase do sentimento levou o mundo de volta aos tempos de barbárie, com brutalidade elevada ao quadrado da estupidez em nome de Deus e a ênfase da razão levou a cultura mundial ao materialismo supostamente científico, negando o homem e seus direitos, a começar da negação de Deus. De um lado, o domínio interesseiro, medroso e hipócrita dos beatos na salvação própria em detrimento da Humanidade, de outro lado a opressão dos ideólogos insensíveis, metódicos e manhosos, tripudiando em benefício próprio e de suas greis sobre a liberdade humana.

A formação do Ser Moral, como Kardec acentuou, só é possível nas sociedades livres e orientadas pela razão e o sentimento em equilíbrio. Sem o desenvolvimento da afetividade temos apenas a razão fria e esquemática, que é o cadáver da razão. 

Sem o desenvolvimento da razão só temos os instintos à solta, na deterioração progressiva do pensamento sem bússola. Toda esquematização desses campos fundamentais das energias humanas leva fatalmente à degeneração do homem, pela asfixia de suas potencialidades divinas. Arrancar o homem da animalidade, o que vale dizer arrancá-lo da brutalidade e da irresponsabilidade, submetendo-o a princípios de ordem moral puramente abstratos, com ameaças e promessas depois da morte, é minar a estrutura de suas experiências objetivas no mundo, perturbando-lhe o desenvolvimento psicomental com dúvidas e suspeitas que o levam à distorção do pensamento na direção de interesses bastardos e consequentemente à degeneração moral. Não se trata da moral comum ou social, apegada a costumes, preconceitos e superstições, mas da moralidade consciencial em que se funda a conduta dos seres conscientes de suas responsabilidades no mundo dos homens. As condenações morais do meio social são geralmente proferidas por indivíduos e tribunais desprovidos de autoridade moral e até mesmo sem capacidade avaliativa nesse plano. O ser moral não se entrega ao arbítrio da incompetência de julgadores primários. Rebela-se contra esses julgamentos e mantém a sua conduta com a serenidade e a firmeza dos seus princípios morais inabaláveis. Jesus foi condenado pela moral farisaica. Sócrates pela moral ateniense. Essas condenações só serviram para engrandecer na História e na Espiritualidade os dois condenados. O ser moral é o supremo objetivo da evolução humana na Terra. Ele encarna em nossa pobre Humanidade o arquétipo, ou seja, o modelo da perfeição humana possível em nosso mundo. Um passo além o projeta fora da órbita terrena, no plano da angelitude. Não se iludam, porém, os que acreditam na santificação, na angelização através de métodos de certos mestres de sabedoria infusa. Os próprios anjos não são criação específica e privilegiada, mas o resultado da evolução do homem, e não querem passar por divindades mitológicas. Não se identifica o ser moral pela mansidão da voz, pelos gestos delicados e as atitudes de santidade artificial. A herança divina do homem é natural e se desenvolve nas duras batalhas da carne. As criaturas seráficas sofrem sempre de anemia ou deficiência das faculdades mentais. O ser moral só se distingue dos outros pela retidão de uma conduta escrupulosa e segura, mas não exagerada ou fingida, mas comedida e firme. A sofisticação religiosa veste muita gente com peles de ovelha, muitas vezes adornada com peles de raposa. O ser moral se configura no protótipo natural do homem: franco, leal, firme em suas convicções, avesso à malícia e ao palavrório vazio, despido do infantilismo da vaidade pessoal, das ideias de grandeza, voltado sempre para os problemas sérios da dignidade humana. Jesus multiplicou os pães para saciar a fome da multidão, mas também multiplicou o bom vinho nas bodas de Caná para estimular a alegria. A alegria espontânea e justa é um dos seus apanágios, ao contrário do que pensam os choramingas e as carpideiras. A alegria é luz que ilumina o coração das criaturas e as profundezas do Infinito. Onde a treva se implanta surge o brilho de uma estrela ou a irradiação de uma constelação. O homem sério e preocupado com a verdade sabe sorrir e provocar a alegria ao seu redor. Os casmurros são criaturas doentes, tímidas, carregadas de recalques e de fobias. Mas os que fingem alegria intencional e nunca se preocupam com nada podem ser debilóides ou espertalhões. A verdadeira virtude nunca está nos extremos, como sustentava Aristóteles, mas no meio. O ser moral se define como tal pelo seu equilíbrio na balança das atitudes, sem se acumpliciar jamais com as trapaças dos extremistas da consciência prática ou da consciência teórica. A consciência estética, na sua condição de síntese total, permite-lhe ver com precisão o momento em que deve entrar na luta dos contrários, evitando abusos e desmandos que podem pôr em perigo a evolução moral e ética do mundo.

O desenvolvimento consciencial implica o aumento constante da responsabilidade. O ser prático ou o ser teórico, apegados aos aspectos normativos da aquisição de experiências e sua assimilação, podem errar com mais liberdade suas diretivas existenciais. Mas o ser moral, que acumulou experiência e saber e aprimorou sua capacidade de intuição, tem o dever de manter-se vigilante, ativo e destemido no plano de ação de sua jurisdição. Todo ser moral converte-se naturalmente num vigilante do processo evolutivo em sua área específica. Essa a razão por que ele se levanta contra os prevaricadores e os trânsfugas, sempre ansiosos por se acomodarem em suas posições, evitando discrepâncias de opiniões na estúpida suposição de que a paz do pântano agradaria mais a Deus do que a luta pela defesa da verdade. No episódio evangélico da expulsão dos vendilhões do Templo, Jesus apareceu – e ainda hoje aparece aos olhos dos cordeirinhos mansos, nascidos apenas para balar ao crepúsculo – como envolvido por impulsos contrários ao seu ministério de amor. Mas a verdade é que havia mais amor na face irada do Messias, ante o desrespeito dos homens práticos à elevada função espiritual do Templo, do que nos rabinos ungidos com óleo sagrado, que permitiam a profanação por conveniências venais. Para Jesus, o certo era afugentar os prevaricadores, para que eles não manchassem a sua consciência imatura, servindo ainda de mau exemplo aos que vinham na retaguarda evolutiva. O plano de Deus estava muito acima dos interesses convencionais e políticos do rabinato conciliador e interesseiro. A visão de um ser moral, regido pela consciência estética, não se limitava às conveniências imediatas dos seres práticos ou retóricos, empenhados na continuidade de seus negócios rendosos.

A menção de Sócrates e Jesus, para exemplificar a complexidade da evolução consciencial, não quer dizer que todo ser moral tenha de possuir o mesmo grau consciencial desses arquétipos históricos. Como se vê na Escala Espírita de Kardec, em cada ordem de seres há sempre gradações que escalonam os tipos afins em posições diversas. O que interessa, pois, na luta do homem pelo seu desenvolvimento consciencial, não é a conquista de posições no escalonamento moral, mas a conquista incessante, nas experiências existenciais, de um grau a mais de percepção dos problemas morais.

J. Herculano Pires do livro:
O mistério do Ser ante a dor e a morte

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