quinta-feira, 25 de agosto de 2022

O temor do Inferno

O temor do Inferno

Djalma Matos



A crença na existência do inferno... O temor do inferno, como mansão de penas eternas, como lugar destinado a sofrimentos horríveis, que jamais tem fim, para as desditosas almas que nele, por suprema desgraça, chegam a ingressar, - se em outras eras, de maior atraso moral e intelectual, teve sua utilidade, para refrear instintos perversos de consciências endurecidas no crime e na impiedade, já agora, na nossa época, em que predomina o livre pensamento, o livre exame e a livre manifestação da ideia, malgrado ao sangrento esforço dos fazedores de guerra, é de todo ineficaz e contraproducente.

Causa estranheza que os sacerdotes se empenhem, com tanto zelo, em propagar tal crença, como se fosse ensinamento cristão, quando, evidentemente, não há nada mais contrário ao espírito do Cristianismo, que se inspira no amor e no perdão, pregados e exemplificados pelo seu excelso fundador.

Esse dogma, incompatível com o grau de evolução mental e espiritual a que chegamos, não pode mais ser aceito sinceramente por quem tenha a faculdade de raciocinar.

Se a uma criança, que vive num meio em que ainda não penetraram os melhoramentos da civilização, alguém quiser assustar com o papão, é bem possível que consiga o seu intento. Usar, porém, do mesmo expediente com um menino ou menina, que se acostumou a andar de automóvel, a ouvir rádio, a assistir cinema e a ver aviões cruzarem os ares quase que diariamente, o efeito será negativo, porque, dispondo de elementos para raciocinar e esclarecer-se, compreenderá logo o absurdo da ameaça.

Acontece, não obstante, que muitas crianças ladinas fingem acreditar no papão, para não parecer que estão convencidas de que os maiores – quase sempre os pais – não estão falando a verdade, e se esforçam, a seu turno, por convencer aos mais pequenos da real existência do papão.

O mesmo fenômeno mental, ou psicológico, observa-se nos pregadores e fiéis das igrejas cristãs, em relação à existência do inferno, com a condenação eterna e Satanás. São, por via de regra, bastante inteligentes e sensatos para intimamente não aceitarem tais absurdos, incompatíveis com a noção que se deve ter da justiça de Deus, equânime e misericordiosa, mas, fingem acreditar – os pregadores, por amor à intangibilidade dos dogmas, que juraram defender, e os fiéis, porque se sentem no dever de proclamar como verdade indiscutível tudo que sai da boca dos sacerdotes de sua infalível religião.

Jesus jamais se referiu a inferno como mansão circunscrita de penas eternas, e sim como planos, ou diversos estados, em que as almas pecadoras se encontrarão pelos sofrimentos e expiações: as trevas exteriores, onde haverá “choro e ranger de dentes”, para as criminosas, endurecidas, impenitentes, e o “fogo”, fogo das más paixões e dos desejos impuros, para as viciosas de toda espécie.

Amai a Deus sobre todas as coisas – Amai o próximo como a vós mesmos – Amai-vos uns aos outros – Não façais aos outros o que não quereis que vos façam – Perdoai para serdes perdoados – Perdoais não sete vezes, mas setenta vezes sete – Não julgueis para não serdes julgados... Estes ensinamentos que se confirmam e se completam uns aos outros, repetidos, quase todos, várias vezes, no Evangelho de Jesus, consubstanciam os fundamentos de sua santa e consoladora doutrina, como ninguém poderá negar.

E, assim sendo, porque querer obscurece-los, dando mais importância a frases isoladas, atribuídas ao meigo Nazareno, que falam do inferno, condenação e Satanás, e que, se realmente proferidas por Ele, se não referiam a estados transitórios das almas pecadoras, só podem ser levados à conta de força de expressão?

Como admitir que o Divino Messias fosse incoerente e contraditório, certificando da bondade e misericórdia do Pai e, ao mesmo tempo, ameaçando com a vingança extremada desse mesmo Pai, com a condenação eterna e satanás?

Oh! Cegueira dos homens! Dizem-se cristãos, mas, como não encontram em seus corações a predisposição para o amor e o perdão, que o Cristo pregou e exemplificou, querem ver, de preferência, nas suas palavras, o inferno e Satanás, à previdente sabedoria e misericórdia do Pai, que elas revelam – a condenação e a intolerância, ao “perdoai setenta vezes sete vezes” o exclusivismo da seita, ao “amai-vos uns aos outros” – a hostilidade em nome da fé, ao “não façais aos outros o que não quereis que vos façam” – o direito de julgar em nome do Cristo, à sua formal declaração de que não veio para julgar o mundo e sim para salvá-lo, e ao conselho de não julgarmos para não sermos julgados. Como não querem reformar-se, para adaptar os atos aos preceitos evangélicos, lidam por moldar o Cristianismo ao sabor de suas mentes e sentimentos.

Nós, espíritas, temos a convicção de que não existe inferno com condenação eterna, nem diabo nem Satanás, rival ao mesmo tempo que carcereiro de um Deus vingativo e cruel. Para nós, Deus é pai de amor e misericórdia, que não quer a perdição de nenhuma de suas criaturas, e nenhum poder contrasta à sua vontade onipotente e sabedoria infinita.

Sabemos que nas consequências do nosso modo de agir neste mundo – em pensamento, palavras e atos – estão a punição e a recompensa.

Os crimes que cometemos, os vícios que adquirimos, as imperfeições que conservamos, aderem à nossa personalidade e, ao desencarnarmos, levamos no perispírito – no corpo espiritual a que se referia S. Paulo – esse lastro indesejável, que mantém o nosso ser preso à pesada atmosfera da Terra, impedindo-o de elevar-se e de evoluir. É possível que, não sendo a carga muito pesada, ainda no estado de desencarnados possamos dela livrar-nos, por um vigoroso e persistente esforço da vontade. O regular, porém, - e que por via de regra acontece, é termos que reencarnar na Terra, algumas ou muitas vezes para, experimentando o mal que fizemos aos outros, padecermos, sofrendo com aquilo que antes nos deu ilícito prazer, e nos irmos corrigindo e depurando.

Neste processo de depuração, mais ou menos doloroso, mais ou menos prolongado, conforme as imperfeições a corrigir e a força de vontade empregada, consiste o inferno aceito e reconhecido pelos espíritas, o qual, por não ser eterno, mas transitório, condicionado às circunstâncias de cada caso e consentâneo com a bondade e sabedoria do Criador e com as esperanças da criatura, é tomado mais a sério, concorrendo muitíssimo mais para a regeneração da humanidade do que o temor absurdo das penas eternas.

Djalma Matos
Reformador (FEB) Janeiro 1943

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