terça-feira, 2 de agosto de 2022

O suicida do trem

O suicida do trem

Suely Caldas Schubert

Relato feito por Divaldo Franco

Eu nunca me esquecerei que um dia havia lido num jornal acerca de um suicídio terrível, que me impactou: um homem jogou-se sobre a linha férrea, sob os vagões da locomotiva e foi triturado. E o jornal, com todo o estardalhaço, contava a tragédia, dizendo que aquele era um pai de dez filhos, um operário modesto.

Aquilo me impressionou tanto que resolvi orar por esse homem. 

Tenho uma cadernetinha para anotar nomes de pessoas necessitadas. Eu vou orando por elas e, de vez em quando, digo: se este aqui já evoluiu, vou dar o seu lugar para outro; não posso fazer mais.

Assim, coloquei-lhe o nome na minha caderneta de preces especiais - as preces que faço pela madrugada. Da minha janela eu vejo uma estrela e acompanho o seu ciclo; então, fico orando, olhando para ela, conversando. Somos muito amigos, já faz muitos anos. Ela é paciente, sempre aparece no mesmo lugar e desaparece no outro.

Comecei a orar por esse homem desconhecido. Fazia a minha prece, intercedia, dava uma de advogado, e dizia: Meu Jesus, quem se mata (como dizia minha mãe) "não está com o juízo no lugar". Vai ver que ele nem quis se matar; foram as circunstâncias. Orava e pedia, dedicando-lhe mais de cinco minutos (e eu tenho uma fila bem grande), mas esse era especial.

Passaram-se quase quinze anos e eu orando por ele diariamente, onde quer que estivesse. 

Um dia, eu tive um problema que me fez sofrer muito. Nessa noite cheguei à janela para conversar com a minha estrela e não pude orar. Não estava em condições de interceder pelos outros. Encontrava-me com uma grande vontade de chorar; mas, sou muito difícil de fazê-lo por fora, aprendi a chorar por dentro. Fico aflito, experimento a dor, e as lágrimas não saem. (Eu tenho uma grande inveja de quem chora aquelas lágrimas enormes, volumosas, que não consigo verter). 

Daí a pouco a emoção foi-me tomando e, quando me dei conta, chorava.

Nesse ínterim, entrou um Espírito e me perguntou: 

- Por que você está chorando? 

- Ah! Meu irmão - respondi - hoje estou com muita vontade de chorar, porque sofro um problema grave e, como não tenho a quem me queixar, porquanto eu vivo para consolar os outros, não lhes posso contar os meus sofrimentos. Além do mais, não tenho esse direito; aprendi a não reclamar e não me estou queixando.

O Espírito retrucou: 

- Divaldo, e seu eu lhe pedir para que você não chore, o que é que você fará? 

- Hoje nem me peça. Porque é o único dia que eu consegui fazê-lo. Deixe-me chorar! 

- Não faça isto, pediu. Se você chorar eu também chorarei muito.

- Mas por que você vai chorar? perguntei-lhe.

- Porque eu gosto muito de você. Eu amo muito a você e amo por amor. 

Como é natural, fiquei muito contente com o que ele me dizia.

- Você me inspira muita ternura - prosseguiu - e o amo por gratidão. Há muitos anos eu me joguei embaixo das rodas de um trem. E não há como definir a sensação da eterna tragédia. Eu ouvia o trem apitar, via-o crescer ao meu encontro e sentia-lhe as rodas me triturando, sem terminar nunca e sem nunca morrer. Quando acabava de passar, quando eu ia respirar, escutava o apito e começava tudo outra vez, eternamente. Até que um dia escutei alguém chamar pelo meu nome. Fê-lo com tanto amor, que aquilo me aliviou por um segundo, pois o sofrimento logo voltou. Mais tarde, novamente, ouvi alguém chamar por mim. Passei a ter interregnos em que alguém me chamava, eu conseguia respirar, para aguentar aquele morrer que nunca morria e não sei lhe dizer o tempo que passou. Transcorreu muito tempo mesmo, até o momento em que deixei de ouvir o apito do trem, para escutar a pessoa que me chamava. Dei-me conta, então, que a morte não me matara e que alguém pedia a Deus por mim. Lembrei-me de Deus, de minha mãe, que já havia morrido. Comecei a refletir que eu não tinha o direito de ter feito aquilo, passei a ouvir alguém dizendo: "Ele não fez por mal. Ele não quis matar-se." Até que um dia esta força foi tão grande que me atraiu; aí eu vi você nesta janela, chamando por mim.

- Eu perguntei - continuou o Espírito - quem é? Quem está pedindo a Deus por mim, com tanto carinho, com tanta misericórdia? Mamãe surgiu e esclareceu-me: 

- É uma alma que ora pelos desgraçados.

Comovi-me, chorei muito e a partir daí passei a vir aqui, sempre que você me chamava pelo nome. 

(Note que eu nunca o vira, face às diferenças vibratórias.)

- Quando adquiri a consciência total - prosseguiu ele - já se haviam passado mais de catorze anos. Lembrei-me de minha família e fui à minha casa. Encontrei a esposa blasfemando, injuriando-me: "- Aquele desgraçado desertou, reduzindo-nos à mais terrível miséria. A minha filha é hoje uma perdida, porque não teve comida e nem paz e foi-se vender para tê-los. Meu filho é um bandido, porque teve um pai egoísta, que se matou para não enfrentar a responsabilidade. Deixando-nos, ele nos reduziu a esse estado."

- Senti-lhe o ódio terrível. Depois, fui atraído à minha filha, num destes lugares miseráveis, onde ela estava exposta como mercadoria. Fui visitar meu filho na cadeia.

- Divaldo - falou-me emocionado - aí eu comecei a somar às "dores físicas" a dor moral, dos danos que o meu suicídio trouxe. Porque o suicida não responde só pelo gesto, pelo ato da autodestruição, mas, também, por toda uma onda de efeitos que decorrem do seu ato insensato, sendo tudo isto lançado a seu débito na lei de responsabilidades. Além de você, mais ninguém orava, ninguém tinha dó de mim, só você, um estranho. Então hoje, que você está sofrendo, eu lhe venho pedir: em nome de todos nós, os infelizes, não sofra! Porque se você entristecer, o que será de nós, os que somos permanentemente tristes? Se você agora chora, que será de nós, que estamos aprendendo a sorrir com a sua alegria? Você não tem o direito de sofrer, pelo menos por nós, e por amor a nós, não sofra mais.

Aproximou-se, me deu um abraço, encostou a cabeça no meu ombro e chorou demoradamente. Doridamente, ele chorou. 

Igualmente emocionado, falei-lhe: 

- Perdoe-me, mas eu não esperava comovê-lo.

- São lágrimas de felicidade. Pela primeira vez, eu sou feliz, porque agora eu me posso reabilitar. Estou aprendendo a consolar alguém. E a primeira pessoa a quem eu consolo é você.

===

Que supremo desespero leva uma pessoa a jogar-se sob as rodas de um trem! Que suprema covardia moral leva o ser humano a desertar da vida, buscar a morte, na infeliz suposição de que resolverá assim todos os seus problemas!

O suicida do trem - como passei a chamá-lo desde que me inteirei desse caso, narrado por Divaldo - Uma empatia muito grande por esse Espírito se fez em meu coração.

Sua tragédia fez-me recordar certa reunião mediúnica, há muitos anos, em que fui incorporada por um suicida que também se jogara sob um trem.

A cena que exteriorizava era terrivelmente assustadora. A impressão que tive é que estava ao lado dele, ou com ele, na via férrea, numa noite sombria, e o trem crescia ao nosso encontro como um negro monstro de ferro, atordoante, estremecendo tudo à sua passagem. Ele vinha, tornava-se gigantesco e havia como que uma atração hipnótica na patética figura do homem, que, estático, de olhos esbugalhados, contemplava a máquina, cujo farol era como um olho descomunal mantendo-o imóvel, chumbado ao solo, à espera que se consumasse o atro destino que para si mesmo escolhera. Até que um grito de pavor, um urro de animal ferido indicava o momento do impacto de seu corpo - um minúsculo boneco que logo desapareceu, engolido sob o monstruoso veículo.

A esta altura da cena, em minha condição de médium, sentia-me, para minha segurança e alívio, dentro da sala, no meu lugar habitual. Mas o trem, que parecia ter prosseguido no seu trajeto, vinha novamente, numa repetição enlouquecedora. O infeliz suicida, porém, embora já ligado à reunião, torcendo-se e gemendo de forma comovente, sentia-se, num processo de repetição constante, triturado pelas rodas, num sofrimento indescritível.

A terrível cena marcou-me o psiquismo de forma indelével.

Ao escrever sobre o caso relembro e revivo o impacto da comunicação mediúnica. Muitos outros suicidas comunicaram-se por nosso intermédio, no transcurso dos anos, mas este foi especial. Da mesma forma como ocorreu com Divaldo em relação a esse pobre operário, pai de dez filhos.

Fato que merece ser ressaltado, é que Divaldo não o auxiliou através da sintonia mediúnica, visto que ele não foi trazido à reunião. O médium, porém, prestou-lhe socorro por meio da prece.

No torvelinho de seus sofrimentos, sentindo-se morrer e remorrer, esmagado sob toneladas de ferro, ouvindo o apito a cada instante e o ruído das rodas, como a lhe marcarem o sinistro compasso das dores superlativas, a vibração da prece o atingiu.

Ah! o refrigério da oração! Possibilitou-lhe, de imediato, uma pausa, numa fração de tempo, quando ouviu o seu nome e se sentiu balsamizado pelo amor.

* * *

A questão do suicídio foi objeto de interesse de Allan Kardec, que registrou em O Livro dos Espíritos as respostas dos Benfeitores Espirituais.

Na pergunta 943, lê-se:
"Donde nasce o desgosto da vida, que, sem motivos plausíveis, se apodera de certos indivíduos?

"Efeito da ociosidade, da falta de fé e, também, da saciedade.

"Para aquele que usa de suas faculdades com fim útil e de acordo com as suas aptidões naturais, o trabalho nada tem de árido e a vida se escoa mais rapidamente. Ele lhe suporta as vicissitudes com tanto mais paciência e resignação, quanto obra com o fito da felicidade mais sólida e mais durável que o espera."
E na 944 
- "Tem o homem o direito de dispor da sua vida?

"Não; só a Deus assiste esse direito. O suicídio voluntário importa numa transgressão dessa lei."
Na parte final da questão 957, o Codificador aduz os seus comentários, ressaltando os sofrimentos dos suicidas. Menciona o laço que une o Espírito ao corpo, e, que, rompido bruscamente, conserva fortes resquícios de vitalidade e magnetismo. Refere-se também ao fato de que o Espírito permanece jungido aos despojos carnais, por largo período, sofrendo os efeitos da sua decomposição.

Em o livro O Céu e o Inferno, o Codificador reúne, na segunda parte, comunicações de suicidas que dão notícias de seus sofrimentos após a desencarnação.

Na literatura mediúnica desponta a obra magistral de Yvonne Pereira, Memórias de um Suicida. Em alguns trechos desse livro a autora refere-se ao profundo trauma vibratório que a morte sob o trem acarreta ao perispírito do suicida, o que o coloca, talvez, na mais difícil situação espiritual, entre tantos outros infelizes que se mataram por outras formas.

* * *

Assim, Divaldo, em prece, roga a Jesus por esse operário suicida, procurando socorrer e minimizar-lhe as dores, que ele sabe serem superlativas. E o faz durante quase quinze anos, diariamente, onde quer que estivesse.

As vibrações o atingem, porque feitas com amor e verdadeiro desejo de ajudar.

Sobre a prece, Allan Kardec dedica o capítulo XXVII de O Evangelho Segundo o Espiritismo; em que, no item 10, descreve a ação benéfica que ela proporciona.

"Dirigido, pois, o pensamento para um ser qualquer, na Terra ou no espaço, de encarnado para desencarnado, ou vice-versa, uma corrente fluídica se estabelece entre um e outro, transmitindo de um ao outro o pensamento, como o ar transmite o som."

* * *

A oração de Divaldo soa então aos seus ouvidos, repercute vibratoriamente em seu mundo interior e, a princípio, é um pequeno alívio, para tornar-se, depois, um interregno entre tantos tormentos, proporcionando-lhe, condições de raciocinar - o que fez lembrar-se de Deus,  de sua mãe e da situação em que se encontrava.

Socorrido e amparado pela solicitude e desvelo maternos, foi sendo atraído para junto daquele que lhe enviava a vibração lenificadora.

Na voragem de suas angustias acerbas, foi alcançado pela força poderosa do amor. Esta força que se faz suavidade e doçura, que atua anónima, se preciso for, para agigantar-se mais adiante e mostrar-se invencível, por ser, em verdade, o maior elemento propulsor da evolução humana. Os corações que amam em plenitude, que amam o amor e por ele vivem, fazem-se ponte para socorrer os caídos, os desgraçados, os que ainda não aprenderam a amar.

O infeliz suicida despertou para a realidade. E esta lhe é ainda mais amarga. As dores morais o visitam e se instalam em seu coração ao constatar as consequências do seu ato.

É então que esse ser humano, com toda a sua terrível carga de aflições, encontra Divaldo sofrido e triste. Quer ajudá-lo e esse desejo incontido o aproxima do médium, que o vê pela primeira vez. Consolá-lo é o seu pensamento, e por isso passa a narrar o seu pungente drama, a fim de testemunhar-lhe, com o seu exemplo vivo, o quanto recebera dele.

“Se você chora, o que será de nós que estamos aprendendo a sorrir com a sua alegria? Você não tem o direito de sofrer, pelo menos por nós, e por amor a nós, não sofra mais.”

O encontro emociona-o e chora abraçado a Divaldo - as primeiras lágrimas suaves a lhe refrigerarem o coração - na ânsia de consolar o benfeitor, de ser-lhe útil, de minorar-lhe as angústias interiores.

No silêncio da madrugada, tendo por testemunha a estrela amiga - que, cintilando, é como um coração que pulsa em direção a ambos -, dois corações humanos que se encontram, se aproximam e se deixam envolver pela suave magia do amor.

* * *

A missão consoladora da Doutrina Espírita, de que nos fala Kardec:
"Coloco em primeira instância o consolo que é preciso oferecer aos que sofrem, erguer a coragem dos caídos, arrancar um homem de suas paixões, do desespero, do suicídio, detê-lo talvez no limiar do crime! Não vale mais isso do que os lambris dourados?"
(Trecho do discurso de Allan Kardec aos espíritas de Lyon e Bordeaux. In "Viagem Espírita em 1862" - Ed. "O Clarim".)
* * *
Suely Caldas Schubert 
do livro: O Semeador de Estrelas

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