sábado, 26 de maio de 2018

Senhor, que queres que eu faça?

Senhor, que queres que eu faça?

João Marcus

(Pseudônimo de Hermínio C. Miranda)



Consumada a tragédia da crucificação, a doutrina do Mestre parecia destroçada ao nascedouro. Estavam apenas alguns apóstolos aterrorizados e, na memória inconstante do povo, a lembrança de ensinos esparsos do Rabi assassinado. As autoridades políticas e religiosas da época estavam convencidas de que, com o desaparecimento do seu profeta, era só uma questão de tempo a extinção total das “heresias” que ele disseminara. Temos de reconhecer que outro não poderia ser o raciocínio dos dirigentes de então. Quem mais ousaria enfrentar o poder religioso apoiado no procurador de César? E quem eram aqueles obscuros pescadores e operários para levantarem novamente a bandeira que Jesus fizera tremular? Modestos seguidores do Cristo, não estavam eles aparentemente preparados para a gigantesca tarefa que tinham diante de si: a propagação e a institucionalização do Cristianismo. O Messias não os escolhera pelos seus dotes intelectuais e sim pelas faculdades espirituais que só ele percebia neles.

E, então, as coisas começaram a acontecer de maneira insólita. Primeiro, ainda sob a doce luz do amanhecer, foi o tremendo impacto da aparição do líder “morto” a Madalena. Em seguida, a nobre figura de Jesus também se mostrou a outros amigos e discípulos, nos quais, finalmente, eclodiram as várias mediunidades na cena dramática do pentecostes. Teria sido aquela a faculdade que o Cristo vira nos rudes companheiros que recrutara?

No entanto, faltavam ainda alguns componentes no quadro que se armava. Era evidente que o movimento não seria abandonado à sua própria sorte, pois resultara de um trabalho longo, extenso e profundo, programado com minúcias nas elevadas esferas e executado com fidelidade absoluta no plano terreno. Como o Cristo se recolhera ao mundo espiritual, era de lá que viria agora a orientação. A pregação que durara cerca de três anos não ficaria restrita aos judeus, como a princípio se acreditou. O Cristianismo não seria apenas mais uma seita judaica: tinha planos mais arrojados, mas disso ainda não sabiam os que lutavam por ele do lado encarnado da vida. No mundo espiritual, no entanto, já estava eleito aquele que iria assumir o encargo gigantesco de iniciar a institucionalização e a universalização da doutrina de Jesus. Faltava somente chamá-lo aos seus compromissos. O homem era Saulo de Tarso, mas nem ele próprio sabia disso. Ao contrário, se lhe viessem dizer que estava prestes a entregar-se àquela tarefa, teria retrucado com a altivez que então lhe era característica que, ao contrário, empenhava-se em apagar da face da Terra os últimos vestígios das novas e revolucionárias ideias que se contrapunham ao judaísmo estratificado ao longo dos milênios, herança imorredoura de Moisés e dos profetas lendários. Poucos, naquela altura, aceitavam a afirmação do Mestre de que a palavra nova não vinha destruir a Lei, mas fazê-la cumprir-se. A jovem doutrina, cujos fundamentos então foram lançados, vinha dar continuidade ao programa evolutivo da Humanidade, indicando novos rumos ao pensamento, abrindo insuspeitadas perspectivas à especulação.

Saulo estava escolhido e, como homem, não sabia ainda do seu programa de trabalho. Seu chamamento não se deu nos salões pomposos da sinagoga majestosa, nem na presença dos imponentes membros do Sinédrio ou à vista das multidões na praça pública; ele foi chamado numa poeirenta estrada, batida pelo sol causticante, sob o testemunho de dois ou três companheiros de viagem, atônitos diante do que se passava com o orgulhoso rabino.

Num segundo, Saulo se viu atirado ao chão. Quando se levantou, não era mais Saulo, o doutor da lei; largara na poeira da estrada a crisálida endurecida e morta do orgulho e levantara-se como Paulo, o Apóstolo da nova ordem. É que às vezes precisamos cair para subir...

A cena é de profunda e imorredoura significação. Seu conteúdo espiritual é tão impressionante e inesgotável que ainda hoje, lendo a narrativa de Emmanuel, não podemos deixar de sentir outra vez a sua carga emocional. A pergunta de Paulo — acima de tudo — ainda ressoa aos nossos ouvidos. Identificado o Mestre, na visão deslumbrante que até o sol ofuscava, perguntou o futuro apóstolo:

— Senhor, que queres que eu faça?

No momento, não era muito o que desejava o Cristo: apenas que o homem de Tarso prosseguisse sua viagem para Damasco. Lá lhe seria dito o que fazer.

Podemos imaginar o tumulto que se precipitou no espírito aturdido do jovem doutor. Além do mais, estava cego. Seu destino era incerto. Somente em Damasco saberia que rumo tomaria a sua vida. Todos os valores, que até ali considerara, haviam ficado na poeira da estrada com o seu orgulho, agora inútil e incômodo. Algumas horas antes era um temido defensor dos preceitos de Moisés, investido de autoridade e poderes para esmagar a ferro e sangue a seita herética. Agora, não passava de um pobre cego, meio trôpego, incumbido de uma tarefa que nem sabia qual seria.

Em Damasco encontrou Ananias, que lhe restituiu a visão e o levou ao encontro do seu destino.

*

Nem todos somos chamados de maneira tão dramática aos nossos compromissos espirituais. Nem todos merecemos a visão deslumbrante do Cristo. Todos, porém, tivemos o nosso Ananias, na figura majestosa de Kardec, que, com a Doutrina dos Espíritos, removeu as “escamas” que até então impediam a nossa visão da realidade superior. Não precisamos mais repetir a pergunta de Paulo a Jesus.

Ao abrir os nossos olhos, o Espiritismo nos indica o caminho a seguir. As tarefas são aquelas mesmas que Paulo empreendeu com tamanha dedicação, amor e coragem: divulgar o conhecimento que nos foi confiado, espalhar por toda parte o consolo da doutrina que renova, explicar que o Espiritismo não exige iniciação, não se embaraça em dogmas, não impõe sacramentos, não ilude com vãs promessas redentoras a troco de fórmulas estéreis recitadas e rituais superados. O que ele nos propõe é a reforma interior que traga na sua esteira a reforma do mundo em que vivemos. Quer arrancar do fundo de nós, para a luz da nossa consciência, o homem novo de que falava Paulo. Deseja que estendamos a mão ao companheiro que sofre, qualquer que seja a sua raça, nacionalidade, crença ou descrença.

Ao lançar entre os homens a Doutrina Espírita, Kardec renovou o sonho de Paulo, que foi o primeiro a ter a visão universal de uma doutrina regeneradora.

Não precisamos mais perguntar ao Cristo o que devemos fazer — nossa tarefa está claramente diante de nós. Não importa se não dispomos de uma tribuna, de um microfone ou de uma coluna na imprensa — Paulo também não os tinha; sempre haveremos de dispor da atenção de irmãos nossos que ainda não tiveram a ventura de se recolherem à paz da verdade. Se alguns não quiserem ouvir, não faz mal — passemos adiante, transmitindo a palavra da esperança àqueles que estão maduros para ela. Se algum contratempo nos atingir, não importa. Também nas suas andanças pelo mundo, às vezes acontecia a Paulo ser escorraçado das cidades que visitava; muitas vezes foi preso, batido, apedrejado e insultado.

Entre os judeus ortodoxos era um renegado desprezível, entre os cristãos ainda bisonhos da primeira hora, um sonhador audacioso que, no afã de levar a Boa Nova a todos os povos, dispensava mesmo a circuncisão, atraindo para o Cristo até os gentios.

Por tudo isso, a lição de Paulo continua válida e a servir de roteiro aos espíritas, esses novos portadores da mensagem viva de Jesus.

João Marcus
(Pseudônimo de Hermínio C. Miranda)
Livro: Candeias na noite escura

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Nota explicativa: Hermínio C. Miranda também assinava seus artigos como João Marcus e H.C.M. Este expediente foi sugerido e adotado pelo editor da Revista Reformador, para que pudessem ser publicados mais artigos dele em um mesmo número da revista.

O livro, Candeias na noite escura, é uma compilação com os melhores artigos de Hermínio na revista Reformador assinadas sob o pseudônimo de  João Marcus.


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