Possessão e Exorcismo
Hermínio C. Miranda
A ficção contemporânea descobriu há algum tempo o riquíssimo filão dos fenômenos psíquicos. O tema, aliás, se apresenta facilmente à exploração de todos, dado que verdadeira maré montante de fenômenos e de estranhos cultos se espraia pelo mundo. Logo em seguida, as fábricas de ilusão de Hollywood se apossaram da mesma temática para "faturar" alto o interesse e a curiosidade de milhões de criaturas humanas por toda parte. Em lugar dos antigos e ingênuos filmes de horror, começaram a surgir estórias mais elaboradas, como “O Bebê de Rosemary”, em que a feitiçaria é explorada em termos da veemente linguagem cinematográfica dentro das melhores técnicas de manipulação da imagem e do som.
A mais recente investida nesse campo é o famoso livro de William Blatty, "The Exorcist", que figurou consistentemente na lista dos "best-sellers" americanos por algum tempo e foi logo produzido em filme de grande sucesso. É difícil dizer se isso é um bem ou não, mas é fácil observar que se trata de um fato. Os meios de comunicação acham-se, no momento, definitivamente interessados na fenomenologia psíquica e, certos de responderem a uma demanda pública bastante ávida, colocam todos os recursos de que dispõem a serviço da técnica de divulgação sob forma de estórias de alto poder dramático.
Amigos que sabem das nossas ideias e da nossa familiaridade com a fenomenologia nos fazem perguntas entre irônicos e curiosos: Você leu o livro? Viu o filme? Que acha? É verdade aquilo? Como o Espiritismo entende a possessão? Vocês fazem exorcismos?
É difícil, numa simples conversa, na brevidade de um encontro social ou no intervalo das atividades profissionais, dizer o suficiente para informar com precisão aquele que pergunta para esclarecer-se, mas não tem preparo bastante para penetrar questões de tamanha densidade e complexidade. Como, porém, é melhor acender uma vela do que lamentar a escuridão, resolvi preparar este modesto trabalho que, sem descer às profundidades e sem espalhar-se pela amplidão que o tema requer, possa conter algumas informações colhidas em fontes que merecem fé.
Uma dessas preciosas fontes é o excelente trabalho de pesquisa realizado pelo eminente professor T. K. Osterreich, da Universidade de Tübingen, na Alemanha e que tive a ventura de encontrar soterrado na poeira de um "sebo" carioca. Trata-se de uma tradução publicada em 1930, pela editora Richard R. Smith, de Nova York, sob o título "Possession - Demoniacal and Other among Primitive Races, in Antiquity, the Middle Ages, and Modern Times" ("Possessão - Demoníaca e Outras entre os Povos Primitivos, na Antiguidade, na Idade Média e nos Tempos Modernos"). A obra original é de 1921 e o texto inglês ocupou 400 páginas, pois os pesquisadores germânicos são pacientes, metódicos, meticulosos e tem o hábito de esgotar o assunto de que cuidam.
Voltaremos daqui a pouco ao livro do professor Osterreich. Antes precisamos de delimitar o campo da nossa especulação e conversar um pouco sobre a terminologia a ser empregada no decorrer deste trabalho. É preciso esclarecer também que não invoco aqui minha autoridade pessoal, que é nula - estou apenas sacando ao banco de dados da Doutrina Espírita, de suas obras suplementares e complementares as informações de que necessitamos para melhor entendimento dos problemas que pretendemos discutir.
* * *
A Enciclopédia Britânica, com muito mais propriedade e penetração, discorre com relativa segurança sobre o tema, em seu artigo sob o título "Possession", embora, evidentemente, sem admitir a conceituação que emerge da Doutrina Espírita. Para os autores da Britânica, a possessão é o "suposto controle do corpo humano e da mente por um espírito estranho, humano ou não-humano; ou a ocupação por um espírito estranho de alguma parte do corpo humano, causando doença, dor, etc." (Os grifos são meus.)
O Espiritismo não admitiria a possessão de um corpo humano pelo Espírito de um ser não-humano. Ademais, que quer dizer a Britânica por não-humano? Animal? Demoníaco? Monstruoso?
O desdobramento do artigo, não obstante, revela que a ótica de seus autores é toda situada nos fenômenos da possessão primitiva entre os povos incultos do passado e do presente, dado que numa frase seca e com implicações finalistas de quem encerra o assunto vem esta observação:
"Os fatos documentados (pela pesquisa) são explicáveis como sintomas de doenças mentais ou resultantes da sugestão."
O professor Osterreich, extremamente meticuloso na coleta de suas informações subscreveria com pequenas modificações a conclusão da Britânica, como veremos.
Na Codificação Kardequiana o assunto vem tratado especificamente em "O Livro dos Médiuns'', capítulo XXIII) e em "A Gênese", capítulo XIV, 45 a 49, sob o título "Obsessões e Possessões".
Na primeira obra citada Kardec apresenta a obsessão como um dos problemas mais sérios do exercício da mediunidade e informa que a palavra obsessão é termo genérico de um fenômeno que pode desdobrar-se em três principais variedades: a obsessão simples, a fascinação e a subjugação. A primeira delas é a menos perniciosa - porque, usualmente, o médium - pois todo obsidiado tem forte componente mediúnico - está consciente das manobras e dissimulações do Espírito, o que certamente o incomoda, mas não o perturba a ponto de provocar desarranjos mentais.
A fascinação é fenômeno possessivo de consequências bem mais graves, porque o agente espiritual atua diretamente sobre o pensamento de sua vítima, inibindo-lhe o raciocínio e levando-a à perigosa convicção de que as ideias que expressa, por mais fantásticas que sejam, provêm de um Espírito de elevado gabarito intelectual e moral. Seu engano é evidente a todos, menos a ele próprio, que segue, fascinado e servil, o Espírito que se apoderou sutilmente de sua mente.
Na subjugação, Kardec distingue dois aspectos: a moral e a corporal. No primeiro caso, o ser encarnado é constrangido a tomar atitudes absurdas, como se estivesse completamente privado do seu próprio senso crítico. No segundo caso, o obsessor "atua sobre os órgãos materiais e provoca movimentos involuntários", obrigando a sua vítima a gestos de dramático e lamentável ridículo. Ao comentar esses aspectos, Kardec é de opinião que o termo subjugação é mais apropriado que possessão, de uso mais antigo e corrente. O que conhecemos, assim, por possessão, seria então um caso extremo e grave de obsessão. O Codificador justiça a sua escolha, informando que a possessão implicaria a admitir a existência de seres criados para o mal e perpetuamente voltados para o mal, o que não existe, pois todos são suscetíveis de progresso espiritual. Segundo, "porque implica igualmente a ideia do apoderamento de um corpo por um Espírito estranho, de uma espécie de coabitação, ao passo que o que há é apenas constrangimento", o que pode ser perfeitamente expresso pela palavra subjugação.
Ao reexaminar, porém, o assunto, em "A Gênese", talvez por uma questão de clareza didática, ele preferiu os termos mais usuais, chamando a obsessão de "ação persistente que um Espírito mau exerce sobre um indivíduo", enquanto que na possessão, "em vez de agir exteriormente, o Espírito atuante se substitui, por assim dizer, ao Espírito encarnado; toma-lhe o corpo para domicílio, sem que este, no entanto, seja abandonado pelo seu dono, pois que isso só se pode dar pela morte. A possessão, conseguintemente, é sempre temporária e intermitente, porque um Espírito desencarnado não pode tomar definitivamente o lugar de um encarnado, pela razão de que a união molecular do perispírito e do corpo só se pode operar no momento da concepção".
Ensina Kardec que, na obsessão grave, o obsidiado fica envolto e impregnado de fluidos perniciosos que cumpre dispersar pela aplicação “de um fluido melhor", ou seja por processos magnéticos, através de passes, por exemplo.
“Nem sempre, porém - adverte Kardec -, basta esta ação mecânica; cumpre, sobretudo, atuar sobre o ser inteligente (itálicos do original) ao qual é preciso se possua o direito de falar com autoridade que, entretanto, falece a quem não tenha superioridade moral. Quanto maior esta for, tanto maior também será aquela."
E acrescenta:
“Mas, ainda não é tudo: paro assegurar a libertação da vítima, indispensável se torna que o Espírito perverso seja levado a renunciar aos seus maus desígnios; que se faça que o arrependimento desponte nele, assim como o desejo do bem, por meio de instruções habilmente ministradas, em evocações particularmente feitas com o objetivo de dar-lhe educação moral. Pode-se então ter a grata satisfação de libertar um encarnado e de converter um Espírito imperfeito."
Informa ainda Kardec, ao encerrar suas observações, que tanto as obsessões como as possessões apresentam, não raro, características epidêmicas, ou seja, coletivas, alcançando simultaneamente uma quantidade de pessoas numa mesma comunidade. Veremos isto no livro de Osterreich:
Creio que com esse mínimo de noção acerca de como o Espiritismo encara o problema, podemos passar à frente.
* * *
A intenção revelada no prefácio é a de oferecer aos filósofos a oportunidade de uma abordagem nova aos problemas suscitados pelo fenômeno.
Seu ponto de partida são as repetidas referências dos evangelistas à possessão, das quais escolheu algumas, como em Marcos 5:2-10 (o possesso de Gerasa), Marcos 1:23-27 e 9:17-27, Mateus 12:22, Lucas 13:10-13, Atos 19:13-16 e vários outros, bem como narrativas dos mesmos episódios nos diferentes evangelistas.
"É impossível - observa o ilustre professor - evitar a impressão de que estarmos tratando de uma tradição autêntica."
Fenômenos idênticos são relatados igualmente por inúmeros autores leigos através dos tempos, o que empresta aos fatos observados uma aura de veracidade que seria impossível deixar de admitir, como assinala o autor.
Luciano (nascido no ano 125 de nossa era) descreve um cidadão que praticava profissionalmente a forma de exorcismo então conhecida: era um sírio que dialogava inteligentemente com o Espírito possessor, perguntando-lhe como havia entrado no corpo.
O paciente - escreve Luciano em "O Amante da Mentira" - permanece silencioso, mas o demônio responde em grego ou em línguas bárbaras e diz quem é ele, de onde vem e como entrou no corpo do homem: este é o momento escolhido para conjurá-lo a retirar-se; se ele resiste, o sírio o ameaça e finalmente o expulsa.
Um certo Flávio Filostratos, na biografia que escreveu de Apolônio de Tiana, conta um episódio de possessão e um curioso exorcismo. Uma senhora apresentou-lhe o filho possesso, explicando que o demônio gostava dele porque tinha uma aparência muito agradável e acrescentou:
"Ele (o suposto demônio) não lhe permite o uso de sua própria razão, impedindo-o de ir à escola, de aprender a manejar o arco e a flecha e até mesmo de permanecer em casa; leva-o para lugares ermos. O menino não tem nem mesmo sua própria voz; emite sons graves e profundos como os de um homem adulto. Os olhos pelos quais ele vê não são os seus."
Mais adiante, a mulher informa ao sábio que de suas conversas com o possessor este a informou, pela boca de seu filho, que era o Espírito de um homem morto na guerra e que muito sofria com a saudade de sua esposa. Além do mais, a ingrata traíra impiedosamente sua memória três dias após sua morte, casando-se novamente. Havia mesmo tentado uma "barganha" com a mãe do menino. Se ela não o denunciasse, ele faria muitos benefícios ao jovem, de quem muito gostava. Cedo, porém, ela descobriu que suas promessas eram enganadoras e que o possessor continuava a agir com leviandade e egoísmo.
Como o menino se recusara a ir ver o sábio, Apolônio de Tiana entregou à mulher uma carta contendo "as mais terríveis ameaças" ao demônio.
Não ficamos sabendo se o Espírito levou a sério as ameaças.
Cirilo de Jerusalém, autor cristão do século quarto, também tinha noção exata do fenômeno da possessão, descontada naturalmente a sua crença de que o possessor era o próprio demônio:
"Sua presença é das mais cruéis e opressivas; a mente fica obscurecida: seu ataque é também uma injustiça e uma usurpação de recursos alheios. Pois ele usa tiranicamente o corpo dos outros e seus instrumentos como se fossem de seu próprio domínio; atira no chão os que estão de pé; perverte a língua e contorce os lábios. Emerge espuma em lugar de palavras; o homem fica envolto em trevas; seus olhos estão abertos e contudo sua alma não vê através deles e o miserável estremece convulsivamente até morrer."
Relato quase idêntico faz Zeno de Vernona (morto pelo ano 375 da nossa era). Descreve a terrível cena da possessão, acrescentando que o possessor informa acerca de seu sexo, "o momento e lugar onde entrou na pessoa, diz o seu nome e a data da sua morte".
Este escritor não chama o possessor de demônio, como muitos, e sim de "espírito impuro".
Um texto recolhido por Kerner refere-se a um caso do século XVI: Uma jovem apresentou os sinais característicos da possessão. Muitos sacerdotes foram falar com ela, tanto os do lugar como das vizinhanças, "mas a todos o diabo replicou, com um desprezo que excedia a todos os limites e, quando questionado acerca de Jesus, respondeu com tal desprezo que é impossível reproduzir".
Outra narrativa do século XVIII historia um caso também tratado por um sacerdote que dialogou com o "demônio", mas sem grande sucesso:
"A despeito de que a possessa uma vez mais recuperou sua razão naquela oportunidade sem se lembrar do que havia Satanás falado por sua boca, ele não a deixou por longo tempo em paz depois que eu parti; atormentou-a tanto quanto antes..."
Osterreich encerra a narrativa desses e de outros episódios admitindo francamente que a concepção psicológica da possessão ainda é bem pouco conhecida. Realmente o é, para aqueles que desconhecem ou recusam os ensinamentos e as experiências acumuladas pela prática espírita há mais de cem anos.
Ao examinar as fontes da possessão, o ilustre professor tem oportunidade de enunciar de passagem uma das suas teorias prediletas: depois de confirmar que a possessão tem sido um fenômeno abundante na história das religiões, "desaparece ou recua para as sombras", sempre que prevalece um elevado grau de civilização. Lamento discordar do eminente autor. O que acontece é que as sociedades primitivas, a despeito de toda a generalizada ausência de cultura, tal como entendemos modernamente esse termo, sempre demonstraram um conhecimento bastante realista do fenômeno da possessão, tanto quanto da sobrevivência do Espírito e até da reencarnação, ao passo que, na sociedade moderna, uma porção de nomes sofisticados e "científicos" foram inventados para rotular e mascarar legítimos casos de possessão, como esquizofrenia, psicose, neurose, fuga, dissociação dupla ou múltipla personalidade, etc. Isso não quer dizer, porém, que a possessão deixou de ocorrer somente porque o homem se "civilizou". Compulsando os impressionantes levantamentos estatísticos mundiais, diríamos até que, ao contrário, a interferência dos Espíritos desencarnados através da obsessão e da possessão, é cada vez mais ativa, dominadora e vigorosa, dado que, vivendo numa época de tensões insuportáveis e desorientação moral e filosófica nunca esteve o homem tão facilmente à mercê dos desencarnados igualmente desorientados e confusos.
Em rápido exame crítico das fontes de referência, Osterreich admite que "os relatos mais interessantes e pormenorizados vem precisamente de autores que acreditam na realidade da possessão e quando combinam a observação exata com boa capacidade descritiva (o material) pode ser bem utilizado, a despeito do ponto de vista dos autores".
O grifo é meu, evidentemente. Quis apenas destacar o fato de que, sem querer, o ilustre professor reconhece implicitamente que tem melhor visão do fenômeno aqueles que o interpretam como ação de uma entidade estranha ao possesso.
Luiz J. Rodriguez, no seu livro "God Bless the Devil" (edição Bookman, 1961) (*), observa que está mais perto da realidade aquele que encara a possessão como invasão da personalidade pelo demônio do que aquele que insiste em enquadrar o fenômeno no quadro clínico de origem interna, caracterizando-o como distúrbio psíquico inteiramente livre de influência externa direta. O demônio seria, pelo menos, uma personalidade estranha à do possesso e, ao tratar o fenômeno como tal, há muito mais "chance" de êxito do que se apenas o considerarmos como doença mental originada no próprio paciente.
(*) "God Bless the Devil" (edição Bookman, 1961) - Traduzido para o português como: Muito Além da Morte - Nota RDB.
Aliás, o professor Osterreich inicia o segundo capítulo de sua obra, ao estudar os sinais externos da possessão, com a afirmativa de que "a primeira e mais notável característica é a de que o organismo do paciente parece invadido por uma nova personalidade e é governado por uma alma estranha".
Profundas alterações ocorrem, então, no timbre da voz, na expressão fisionômica, nos gestos, no vocabulário, em toda a personalidade, enfim, naquilo que ela possui de essencial e característico.
Neste ponto do livro, transcreve ele um longo trecho da obra de Theodore Flournoy "Des Indes à la Planête Mars", que comentamos em "Reformador" de novembro de 1972. No trecho citado, Flournoy descreve as alterações de personalidade ocorridas em Helène Smith, quando se incorporava nela o Espírito que se identificava como Cagliostro. Aqui, porém, o leitor espírita já está de sobreaviso, pois sua formação doutrinária o informa de que neste exemplo estamos falando sobre mediunidade e não possessão. Ainda que o fenômeno da possessão exija um componente mediúnico da parte do possesso, é claro que não pode ser colocado lado a lado com o do exercício normal da mediunidade controlada e disciplinada. O professor Osterreich, porém, não se atrapalha por tão pouco, pois classifica o fenômeno mediúnico puro e simples como possessão voluntária... com o que admite, nitidamente, a participação de entidade estranha à do médium que cede seu corpo físico ao Espírito manifestante. Ele não vai, no entanto, ao ponto de expressar tal concessão, que seria muito para a rigidez de suas concepções.
Suas citações estão, porém, continuamente a desmentir suas próprias teorias. Podemos tomar qualquer uma delas, que se acham disseminadas às centenas por todo o livro. Esta é retirada do livro "Névroses et idées fixes" (Neuroses e Ideias Fixas) de Pierre Janet:
"Era um espetáculo extraordinário para nós que ali estávamos, ver aquele Espírito mau falar pela boca da pobre mulher e ouvir ora o timbre da voz masculina, ora da feminina, mas tão distintas uma da outra que era impossível acreditar que havia apenas uma mulher falando."
A perplexidade dos observadores leigos é compreensível, pois sem admitir a independência da personalidade invasora, o mecanismo não faz sentido. É o que vemos também em F. von Baader:
"Se dois estados poderiam até então ser observados nela, o estado comum de vigília e o magnético (sonambúlico), era agora necessário distinguir três: o estado comum de vigília, o bom estado de vigília magnética e o mau estado de vigília magnética. A voz, os gestos, a fisionomia, os sentimentos, etc., eram nos dois últimos estados citados exatamente como céu e inferno. De modo particular as feições se alteravam tão rapidamente que dificilmente se poderia confiar nos próprios olhos ou reconhecer no estado satânico a mesma pessoa do bom estado magnético."
Coloquemos isso em terminologia espírita para entender: a mulher era médium e nada fazia senão produzir fenômenos mediúnicos. Apresentava-se alternadamente em estado de vigília lúcida e ora incorporada por um Espírito turbulento, ora por um Espírito tranquilo e equilibrado.
O mesmo von Baader menciona caso em que o possesso falava de si mesmo na terceira pessoa. Muito simples: não era o possesso que falava e sim o possessor, e cada vez que este se refere ao seu médium é claro que tem de chamá-lo de ele ou ela, na terceira pessoa, e não eu.
Kerner, muito alarmado, ao relatar outro caso informa que "tudo quanto esses demônios dizem pela boca daquele homem é inteiramente diabólico em sua natureza e completamente oposto ao caráter do indivíduo possuído. Consiste em zombarias e maldições contra tudo quanto é sagrado, contra Deus e nosso Salvador e - particularmente em zombarias e maldições dirigidas contra as pessoas que se acham sob seu domínio, a quem eles ultrajam pelas suas próprias bocas e batem com seus próprios punhos".
Ao estudar os "estados subjetivos do possesso" (capítulo 3), o professor Osterreich informa, à pág. 26, que, em tempos mais recentes, especialmente aí pelo século XVIII e bem mais no século XIX, "a crença no demônio está diminuindo" e, em consequência, acredita-se que são as "almas dos mortos que não se acham em paz que entram nos vivos". (O destaque é do original.) Acrescenta, porém, que já em tempos muito remotos encontramos indícios dessa mesma crença, ou seja, de que não são demônios os obsessores e possessores, mas almas dos mortos, isto é, Espíritos desencarnados, como diríamos nós. Segundo Osterreich, os povos primitivos admitiam também as possessões "boas", ou seja, de Espíritos mais esclarecidos que vinham voluntariamente trazer sua contribuição de afeto. Donde se conclui que, nessas matérias, como dizia Luiz J. Rodriguez, que cito novamente, antigos, rudes e ignorantes xamãs (1) revelavam mais sólido conhecimento do problema espiritual do que muitos dos que ostentam hoje pomposos títulos acadêmicos.
(1) Não dispomos de espaço para um estudo mais aprofundado do xamanismo. A palavra é de origem asiática e entrou na Europa através do inglês "shamam". O xamã era ao mesmo tempo médico, sacerdote, exorcista, curandeiro, mágico, adivinho, enfim, um médium.
Nos tempos medievais, quando a ignorância em torno do assunto foi praticamente geral, os obsessores tiveram sua época de ouro, manobrando livremente suas vítimas do anonimato invisível do mundo espiritual. Vejamos um diálogo entre o Espírito manifestado, que evidentemente passava por ser o próprio demônio e um despreparado "doutrinador". Certo David Brendel acompanhou dia e noite, durante onze semanas, o caso da possessão de uma menina. Duas de suas conversas com "Satã" foram preservadas. Vejam como o Espírito se diverte à custa da ignorância e ingenuidade do seu perguntador:
- Você esteve também com a filha do ferreiro, lá em Meissen?
- Sim - respondeu o Demônio -, havia cem companheiros meus lá; eu ajudei a levar o velho para o inferno.
- Você também conhece Judas, o traidor?
- Ele está sentado comigo, no inferno.
- Você conheceu o Mau Ladrão, Pilatos, Herodes, o Dr. Johannes Faustus, Cristoph Wagner e Johannes de Luna?
- Oh, são meus melhores amigos. Tenho no inferno a carta de Faustus escrita com seu Sangue.
- Mas ela não queima?
- Oh, não!
- Para que serve ela?
- Preciso tê-la à mão para exibi-la e condená-lo.
- Você, que sabe tantas coisas, sabe também orar?
Esta é a primeira pergunta inteligente, mas a resposta é irreproduzível. O perguntador insiste noutra direção:
- Se você me tivesse em seu poder o que faria?
- Quebraria o seu pescoço, e minha face ficaria contorcida de raiva.
O professor Osterreich reproduz mais um desses diálogos, extraído do livro "Un cas de possession", de Van Gennep, publicado em 1911, e conclui, muito seguro de si:
"A individualidade estranha frequentemente relata uma espécie de história de sua vida. É quase desnecessário acrescentar que tais histórias contribuem para imaginação ou reminiscências (memórias do paciente?) da vida real da personalidade que supostamente entrou no organismo."
O assunto é de tão pouca monta que o professor nem acha necessário dizer que se trata de fantasia. Vemos, assim, como excelentes e bem intencionados pesquisadores se deixam arrastar facilmente pelos seus preconceitos e perdem oportunidade de valioso aprendizado. Observações de grande interesse ficam soltas pelo texto como se flutuassem desligadas do verdadeiro contexto do estudo. Como estas, por exemplo: a de que os Espíritos possessores são sempre idênticos em admitirem que fizeram algo errado, ou seja, que cometeram crimes; os lapsos de memória, pois, ao despertar, o possesso não se lembra do que se passou enquanto esteve entregue à personalidade invasora; ou ainda o fato de que quase sempre o possesso fala e age de olhos fechados (característica da mediunidade na grande maioria dos sensitivos "tomados"); movimentos desordenados nas manifestações mais violentas, e outros tantos, como, ainda, o fato de que no estado de possessão a vítima somente se refere a si mesma na terceira pessoa:
"No estado demoníaco - escreve o muito citado Kerner - ou no início da possessão, a paciente sempre fala de si mesma na terceira pessoa e não é possível naquele momento conversar com ela; quem desejar ser entendido terá de falar com o próprio demônio."
Lógico, meu Deus! O Espírito do paciente está impedido de manifestar-se através do seu próprio corpo, que se encontra sob o domínio da entidade possessora. Já era tempo de saberem disso os observadores, pelo menos os mais modernos. Uma vez que toda a fenomenologia aponta irresistivelmente para a hipótese - chamemo-la assim - de uma invasão externa da personalidade do paciente e que a doutrina do demônio está completamente desmoralizada, por que não admitir que a entidade possessora é um Espírito desencarnado, ou seja, Espírito de uma pessoa que aqui viveu na carne e se acha agora desembaraçado do corpo físico?
Para fugir a essa admissão, que explica facilmente os fatos, o professor Osterreich elabora uma complexa teoria de bifurcação ou divisão do ego original, como se o Espírito encarnado - cuja realidade, aliás, ele não admite também - pudesse dividir-se em dois, três ou mais entidades a partir da mesma origem, a que ele chama de fisiológico-metafísica. Sua teoria, no entanto, é tão inaceitável, que ele próprio confessa, logo adiante (pág. 37), que "o fenômeno da separação da segunda (personalidade) a partir da primeira é, para nós, inescrutável. Seria mesmo, na realidade - prossegue ele -, duplamente incompreensível, em primeiro lugar porque escapa inteiramente ao nosso conhecimento e, em segundo lugar, porque, tanto quanto sabemos, a primeira personalidade nada tem com isso”.
O fenômeno é incompreensível para o eminente autor porque, tomando as analogias no plano físico a confusão é total, pois quando uma célula se desdobra em duas a primitiva deixa de existir, ao passo que, no fenômeno que ele deseja classificar como divisão da personalidade, a primitiva continua a existir com todas as suas características, ignorando a existência da outra, a não ser que lho digam. Daí conclui o professor, algo desalentado, mas profundamente honesto:
"Tocamos aqui, deliberadamente um ponto em que a hipótese da divisão entra em contradição com a lógica."
Qual a saída? Acha o professor que tem a "explicação". A nova personalidade manifestante traria consigo uma quantidade de ideias "inatas" e acrescenta:
“Nem tudo que ela diz será baseado na sua própria experiência; ela saberia inúmeras coisas sem tê-las experimentado e teria comando da linguagem, além de numerosas capacidades complexas sem nenhum aprendizado.”
Surpreendente afirmativa essa de um cientista e pesquisador tão sério que, para fugir a qualquer preço da hipótese espiritual da possessão, apresenta-se com uma teoria fantástica e ilógica de que somos capazes de aprender coisas sem ter aprendido!
É difícil, porém, enquadrar os fenômenos que ele próprio reproduz, das suas fontes, na sua complexa e vulnerável teoria.
"Algum desses pacientes - escreve Kerner -, quando o demônio se manifesta e começa a falar por eles, fecham os olhos e perdem a consciência, tal como no sono magnético; o demônio então fala por suas bocas sem que eles o saibam. Com outros, os olhos permanecem abertos e a consciência lúcida, mas o paciente é incapaz de resistir, mesmo com toda a força de sua mente, à voz que fala nele; ele ouve a si mesmo expressar-se como se fosse outra e estranha individualidade alojada nele, mas fora de seu controle."
Vemos aqui a mediunidade chamada inconsciente e a consciente. O fenômeno é sempre o mesmo e só em termos de Doutrina Espírita podemos entendê-lo e explicá-lo.
“A moça retém a consciência enquanto a voz fala - escreve outro observador meticuloso e atento, por nome Eschenmayer -, mas não pode evitá-lo, mesmo tentando com toda a sua vontade; ela ouvia a voz ressoar externamente como a de um indivíduo estranho, alojado dentro dela, sem que estivesse em condições de controlá-lo ou fazer qualquer coisa."
A despeito de tudo isso, o professor insiste, à pág. 47, que "uma análise mais exata revela que os estados mentais, aparentemente pertencentes a um segundo ego, são realmente parte do indivíduo original".
E estamos conversados. É a persistente e insustentável doutrina da divisão da personalidade.
Quanto ao documentadíssimo e famoso caso de Joana dos Anjos, acha o professor Osterreich que deve ser examinado com grande reserva, porque tem sua gênese numa pessoa altamente histérica e de moral algo frouxa. Este caso, aliás, se presta a observações muito interessantes que esperamos poder fazer sem alongar demais o artigo.
Madre Joana deixou um valioso depoimento pessoal na sua autobiografia, além de existirem outras obras e relatos pessoais de autenticidade indiscutível. Descreve ela os estágios iniciais da sua possessão referindo-se a uma perturbação mental que durou cerca de três meses. Nesses períodos de perturbação ela perdia a consciência de si mesma.
"O demônio - diz ela - obscureceu-me de tal modo que eu mal podia distinguir seus desejos dos meus; provocou-me, além disso, forte aversão pela minha vocação religiosa."
Mais adiante, descrevendo com extrema precisão o lento processo de invasão diz ela:
"Acho que ele não teria assumido esse poder sobre mim se eu não me tivesse aliado a ele. Tive experiências como essa em várias ocasiões, pois quando eu resistia com firmeza descobria que todas aquelas fúrias e cóleras se dispersavam como tinham vindo, mas, infelizmente, com muita frequência acontecia que eu não me continha com suficiente força para resistir, especialmente em pontos nos quais eu não via - pecado grave. Nisso, porém, é que eu me enganava, porque como eu não me continha nas pequenas coisas, minha mente era arrastada, depois, sem perceber, para as grandes..."
Que notável lucidez nessas observações! O processo da obsessão se desenrola exatamente assim: sutil e lentamente, aos poucos, a partir das pequenas e aparentemente inócuas concessões. Destas, passam as vítimas às maiores e depois às grandes. Neste ponto há mais como retornar e facilmente a obsessão vai aos extremos da possessão.
O professor Osterreich faz restrições, como vimos, ao caráter de Madre Joana e, em tese, está certo, porque os obsessores desencarnados encontram maiores facilidades para os seus propósitos funestos quando a vítima se acha desguarnecida moralmente e, portanto, exposta ao ataque e ao envolvimento; mas é preciso lembrar que não há imunidade total contra a obsessão a não ser nos seres que além de se apegarem a rígidas práticas morais, se achem quitados com seus compromissos cármicos. Também sob esse aspecto o famoso e muito citado caso de Loudun contém ensinamentos preciosos, pois os obsessores não respeitaram nem pouparam os exorcistas, por mais bem preparados que estivessem eles. O padre Surin, é de justiça assinalar, estava moralmente credenciado para o trabalho de que o incumbiram as autoridades eclesiásticas da época. É difícil, porém, a esta distância no tempo - os fatos ocorreram no século dezessete - e ante informações incompletas, do ponto de vista espírita, produzir uma análise crítica balanceada da sua posição no caso, a despeito da notável narrativa que ele próprio deixou. Que sabemos, porém, de seus compromissos espirituais ou de suas ligações cármicas com o grupo de freiras implacavelmente assediadas por uma legião de obsessores? Num livro que eu muito gostaria de ler, Osterreich vai buscar a transcrição do depoimento do padre Surin. Chama-se a obra "Cruel Effets de la Vengeance du Cardinal Richelieu ou Histoire des Diables de Loudun", ou seja, "Efeitos Cruéis da Vingança do Cardeal Richelieu", de- autor anônimo que assinou simplesmente Aubin.
Ao narrar o que poderíamos chamar de sua própria contaminação, diz o padre Surin:
"As coisas foram tão longe que Deus permitiu, creio que por causa dos meus pecados, o que talvez nunca foi visto na Igreja, ou seja, que no exercício de meu ministério (exorcismo), o demônio deixou o corpo da possessa e entrou no meu, me assaltando, confundindo, agitando e perturbando visivelmente, fazendo de mim um endemoninhado por várias horas. Não lhe posso explicar o que acontece dentro de mim nessa ocasião e como esse Espírito se une ao seu sem me privar nem da consciência nem da liberdade da minha alma, tornando-se contudo como se fosse um outro eu, tal como se eu tivesse duas almas, uma das quais desalojada de seu corpo e do uso de seus órgãos, assistindo afastada às atividades da outra que se apossou do corpo. Os dois Espíritos lutam no mesmo campo que é o corpo e a alma parece dividida. Uma dessas partes fica sujeita a impressões diabólicas e outra com os impulsos que lhe são próprios ou vem de Deus."
Mais adiante:
"Quando desejo, pelo impulso de uma dessas duas almas, fazer o sinal da cruz sobre minha boca, a outra me desvia a mão com grande rapidez e prende meu dedo entre seus dentes, mordendo-me raivosamente."
E uma conclusão melancólica e impotente:
"Quando os outros possessos me veem nesse estado é um prazer assistir ao seu triunfo e como os demônios se divertem dizendo: Médico, cura-te a ti mesmo; sobe agora ao púlpito; será um belo espetáculo vê-lo pregar depois que ele rolou pelo chão."
Em pós-escrito nesse mesmo documento, que é uma carta dirigida a íntimo amigo espiritual, padre Surin pede preces, das quais se confessa muito necessitado, pois a influência dos possessores já está durando dias inteiros e semanas, durante os quais ele se sente "obtuso com relação às coisas do céu", de tal forma que não pode nem recitar a mais conhecida das preces que é o Pai-Nosso.
Em seguida, informa:
“O demônio me disse: "Hei de privar-te de tudo. Não precisarás nem da tua fé, pois eu o farei um idiota."
O obsessor cumpriu implacavelmente suas ameaças. Os tormentos do pobre sacerdote duraram cerca de 25 anos. Não podia mais pregar e nem mesmo conversar. Perdeu a voz durante sete meses, ficando incapaz de celebrar a missa, ler e escrever e até mesmo vestir-se; enfim, fazer qualquer movimento. Nesse período de aflições inomináveis, nenhum médico conseguiu minorar seus sofrimentos. Ao cabo de mais de 20 anos, segundo depoimento de Osterreich, padre Surin livrou-se daquelas aflições, mas caiu em outro estado anormal, que o ilustre professor estuda em profundidade em outro livro seu por nome "Phanomenologie des Ich" (Fenomenologia do Eu).
Do ponto de vista espírita, vemos, portanto no caso do padre Surin, o doloroso processo de envolvimento de um exorcista com os Espíritos que pretende expulsar com fórmulas canônicas e ritos inadequados. Ele próprio narra, com inegável realismo, a ridícula posição em que os Espíritos o colocam, divertindo-se com quem, incapaz de se curar, pretende curar os outros. A técnica espírita tem um "approach" inteiramente diferente. O problema não é expulsar o demônio; é dialogar e esclarecer um Espírito em grave estado de desequilíbrio, que se apoia no desenvolvimento de seu tenebroso plano de ação vingativa, em fatos e compromissos às vezes remotos no tempo, mas ainda não resolvidos satisfatoriamente. Tais processos se arrastam de século em século, porque não é pela vingança que se parte o círculo vicioso da dor e sim pelo perdão. Na sua terrível cegueira espiritual, os obsessores não percebem que o exercício do perdão é mais do que um mero preceito evangélico - que não tem sentido, infelizmente, para muitos desses Espíritos endurecidos para alcançar a força de um princípio científico no campo da Psicologia, dado que o perdão realmente liberta. Sentimos, também, na prática espírita, que é invariavelmente pelo amor frustrado que nos perdemos na treva da dor e é pelo amor reconquistado que adquirimos condições para retomar os caminhos da paz. Outro aspecto importante: por mais que se revista de ódios e rancores, o Espírito atormentado preserva sempre o germe do amor no seu coração e inconscientemente anseia pela volta do amor. Se o doutrinador - ou seja, aquele que conversa com o obsessor - consegue convencê-lo dessa tese, começa ali mesmo o longo processo da recuperação.
Vejamos, porém, como o eminente professor Osterreich encara o fenômeno.
Acha ele evidentemente falsa a concepção de que existem dois Espíritos ou duas almas na posse do mesmo corpo. Aliás, ele nem emprega a expressão alma ou Espírito e sim ego. Lamenta ele que esse "erro" venha sendo cometido sistematicamente por muitos autores, inclusive ele próprio, antes de estudar adequadamente o fenômeno. Nada disso. O que ocorre, segundo o ilustre professor, é que a individualidade, que o padre identifica como a de Satanás, é "um novo e complexo estado de si mesmo, tanto quanto sua personalidade original". O padre endemoninhado teria, pois, o direito de dizer que "assumira uma personalidade satânica".
O argumento parece óbvio ao professor: como poderia Surin dizer que sente a raiva e a irritação do demônio, que se encontra num duplo estado afetivo ou que tem outra alma além da sua? Como poderá ele experimentar sentimentos que não são os seus? Como é possível imaginar outro ego entrando nele? Acha ainda o professor que, sendo impossível a interpenetração da mente pela mente, "começamos a perceber as coisas", pois que "ninguém jamais experimenta algo fora de seus próprios estados emocionais".
O que vemos aqui é o alinhamento de uma série de impossíveis dogmáticos a impedir uma abertura para a verdade, através de uma aproximação desinibida, com a mente aberta, ainda que, e necessariamente, vigilante, crítica, alertada. Partindo de impossíveis preconcebidos, daremos inapelavelmente em conclusões que nada explicam, representando apenas mais uma opinião pessoal sobre o assunto em discussão. E isto nunca foi ciência. Osterreich, porém, não deseja de forma alguma admitir a hipótese de interferência espiritual externa e autônoma. Lamenta mesmo que Ludwig Staudenmaier, no seu livro "Die Magie als Experimentelle Naturwissenchaft", tenha tratado como seres autônomos personalidades que se desenvolveram num processo de "escrita automática", ou seja, um caso comum de mediunidade psicográfica.
Para Osterreich, o possesso se convence de que está sob influência de outro ser e age como tal... E por isso é que temos o curioso espetáculo segundo o qual duas pessoas parecem falar através do mesmo corpo físico. Os argumentos do autor são, às vezes, de comovente ingenuidade. A certa altura, por exemplo, reproduz alguns diálogos entre o que chama de "egos" e os exorcistas ou outras testemunhas. E acrescenta que sua desconfiança com relação ao fenômeno é bastante acentuada "pelo fato de que o demônio responde muito cautelosamente às questões mais críticas".
- Se ele dispusesse de um acervo de observações pessoais, em primeira mão, colhidas na prática mediúnica, não faria tantas afirmativas gratuitas e ingênuas. O obsessor é quase sempre um Espírito voluntarioso, decidido, artificioso, dissimulado e, muitas vezes, culto, inteligente e invariavelmente informado por um conjunto de fatos que nós ignoramos, quanto às razões profundas do seu assédio àquela específica pessoa humana. Que sabemos nós de suas ligações anteriores, de seus mútuos compromissos, de suas verdadeiras motivações? Por outro lado, sabemos pela Doutrina Espírita que as faltas cometidas contra o próximo armam automaticamente o mecanismo da cobrança e é como instrumentos cegos da reação, provocada pela ação negativa, que os obsessores agem. Não podemos esquecer, por certo, que mesmo cobrando o que a lei lhes permite e, portanto, agindo como agentes do resgate alheio, os obsessores não fogem à dura contingência de assumir novos compromissos que, a seu turno, terão um dia que resgatar. Daí o terrível círculo vicioso dentro do qual Espíritos rebeldes marcam passo dolorosamente, alternando suas posições, ora como obsessores, ora como obsidiados mas sempre sofrendo. Sem conhecer esse mecanismo e sem agir segundo sua lógica férrea, o exorcismo ritualístico é de uma ingenuidade trágica e de uma inocuidade lamentável. A misericórdia divina é tão grande, no entanto, que mesmo esse processo totalmente inadequado sucede às vezes em desatar o nó cego das paixões e libertar os sofredores de suas angústias, ao conseguir que o obsessor abandone sua vítima. Como se dá isso, a despeito do despreparo dos exorcistas? Há muitas razões. Em primeiro lugar - e isto Luiz Rodriguez já havia observado em seu livro - o sacerdote parte de uma premissa mais válida do que a da ciência oficial, ou seja, ele encara o fenômeno como invasão de um agente externo, autônomo, consciente, Independente da personalidade do possesso. Seu engano está apenas em identificar esse agente externo com o demônio teológico, do que, aliás, os obsessores têm tirado bom proveito, desempenhando o papel como se de fato o fossem. Nessas condições, o diálogo com a personalidade invasora, conduzido por um sacerdote inteligente e, principalmente, de rígidos padrões morais, pode produzir resultados excelentes, porque, por mais que se esforce num terrível jogo de cena, o obsessor, no fundo, respeita a força moral daquele que o enfrenta com paciência e amor. Dificilmente ele cederá pela força bruta ou pelo mero comando de um ritual sem sentido, conduzido numa língua morta que na maioria das vezes ele nem entende. Há ainda outra observação. É a de que, de outras vezes, o sacerdote interfere naquele momento em que a própria lei divina já determinou o fim do processo. Sabemos, ainda, e sempre segundo a Doutrina Espírita, que há um ponto além do qual a "cobrança" da falta se torna impraticável, seja por quem for, pela simples razão de que o sofrimento, a renúncia ou o amor já redimiram o culpado. Ainda que o obsessor continue inabalável e irredutível no seu propósito de perseguir e fazer sofrer, a vítima lhe escapa irremediavelmente das mãos. Ninguém paga aquilo que não deve; do contrário, a lei seria injusta.
Por conseguinte, quando interrogado a respeito de questões que poderão levar à libertação de sua vítima, o possessor se revela cauteloso e mais dissimulado do que nunca. Todos nós que ao longo dos anos temos frequentado grupos mediúnicos de desobsessão testemunhamos o esforço e a habilidade que o chamado doutrinador deve pôr em prática para extrair as informações que lhe permitam montar o quadro das razões antecedentes que levaram os Espíritos em tratamento àquele estado de comprometimento e angústia. A imantação do obsessor ao seu monoideísmo parece irredutível, alcança o ponto da mais terrível obstinação. Ele não quer por nada neste mundo abandonar a sua vítima; seu único propósito é vingar-se implacavelmente, esquecido de que ele próprio, fazendo parte integrante daquele círculo vicioso, tornou-se vítima exatamente porque anteriormente também fez vítimas, e que, perseguindo para vingar-se, reabre o círculo. Com isto, arma o dispositivo que virá fatalmente sobre ele com todo o instrumental da dor que vai gerar nova revolta e, assim, indefinidamente.
Para fugir, portanto, às óbvias implicações da perfeita autonomia das personalidades envolvidas, Osterreich busca saídas por outros canais, propondo hipóteses que podem ajustar-se a alguns aspectos da questão, mas não às demais ou a todas.
Observa, por exemplo, que frequentemente o "demônio" responde a perguntas que não chegaram a ser enunciadas, ou, por outra, foram apenas pensadas pelos circunstantes. Como é que o professor explica isso? Muito simples: o processo é idêntico àquele que se desdobra quando conversamos mentalmente com alguém e em nossa imaginação o "ouvimos" responder... No caso da obsessão haveria apenas uma extraordinária exacerbação do fenômeno, que levaria a uma excitação do aparelho vocal, levando-o a uma ação compulsiva. Assim, o fato de que o "demônio" responde sempre de maneira evasiva e cautelosa às questões delicadas deve ser interpretado, segundo Osterreich, da seguinte maneira: a pessoa imaginária age exatamente como a real, pois, definitivamente, não pode existir uma segunda pessoa e sim "uma mera aparência enganadora".
E, com isso, está encerrado o assunto e resolvido o problema, na opinião do eminente professor.
Aqui precisamos de uma pausa. O livro do Dr. Osterreich é realmente fascinante e contém um acervo preciosíssimo de fatos e de informações. Não podemos ter a pretensão de examiná-lo todo e na profundidade necessária, nos rígidos limites de um artigo. Com todo o trabalho de síntese que tenho procurado desenvolver até este ponto, observo desalentado que apenas chegamos até à página 70 das suas 400! Vamos, pois, sumarizar para concluir, mesmo ao custo de abandonar inúmeras observações de elevado interesse humano, como o caso de Madre Joana dos Anjos.
O capítulo 4º do livro é dedicado, segundo informa o título, à gênese e extinção da possessão. É aqui que mais divergimos das ideias e sugestões do professor Osterreich, que desdobra em novos aspectos a sua teoria da divisão da personalidade. Menciona ele, a certa altura, a natureza por assim dizer "contagiosa" do fenômeno que atinge circunstantes e, com frequência impressionante, os próprios exorcistas.
"Sacerdotes exorcistas - escreve ele à pág. 92 - estão particularmente expostos a essa "infecção" e raros são os que têm conseguido escapar completamente."
Reportando-se ainda ao caso das freiras de Loudun, informa que outros exorcistas, além do padre Surin, foram também atingidos, como os padres Lactance, Tranquille e Lucas. O primeiro deles morreu em consequência dos sofrimentos impostos pela possessão, depois de ter conseguido expulsar (o termo é altamente inadequado, a meu ver) três demônios, ou seja, três Espíritos da prioresa de Loudun.
Acha mesmo Osterreich que o próprio ritual do exorcismo contribui poderosamente para propagar o fenômeno pelo poder de sugestão que contém. Essa observação não tem o valor absoluto que o autor lhe atribui, mas certamente há algo de verdadeiro nisso, no sentido de que as pessoas que assistem ao complicado ritual, evidentemente em atitude de concentração e recolhimento, oferecem condições propícias à incorporação dos Espíritos ali presentes, quando possuem em estado latente ou ostensivo faculdades mediúnicas.
Por isso, na opinião de Osterreich, o exorcismo é a contraparte exata da gênese da possessão e explica:
“Da mesma maneira que a possessão surge, no homem, da crença de que ele está possesso, contrariamente desaparece, quando o exorcismo é bem sucedido, por meio da crença de que a possessão não subsistirá." (!)
A coisa não é tão simples assim, pois não se trata, aqui, como acredita o professor Osterreich, de um fenômeno de autossugestão, que pode ser desfeito por outra sugestão. O próprio autor não parece tão certo da sua doutrina ao afirmar, logo adiante, que "a natureza íntima deste efeito de convicção no fenômeno psíquico não é conhecida e não pode ser elucidada".
Sempre dogmático e sem aceitar a contribuição da Doutrina Espírita, ele acha que a coisa não só é desconhecida como não pode ser esclarecida. Mais um dos seus impossíveis...
Estuda, a seguir, uma série de fórmulas exorcistas, coletando judaicas, egípcias, católicas e outras. Algumas são estranhíssimas, outras ridículas - como o exorcismo para o leite, a fim de expulsar (sempre a ideia da expulsão) as criaturas malévolas alojadas no líquido -, todas inócuas, porque o que vale diante do obsessor não são as fórmulas e os ritos, mas a autoridade e o sentimento de quem lhe fala.
Descreve os vários recursos, como as ameaças, os gestos, as palavras que o exorcista deve utilizar e lembra o principal exorcismo, do Rituale Romanum, publicado por ordem do papa Paulo V, que recomendava, entre outras coisas, abanar a estola do padre em torno do pescoço do possesso e fazer a imposição das mãos, ou seja, o passe magnético.
Menciona um caso citado por Eschenmayer em que o exorcista "esforçou-se formalmente por converter o demônio", no que estava absolutamente certo, pois na realidade ele está se dirigindo a uma entidade espiritual tão livre e autônoma como qualquer outro ser humano e que precisa ser esclarecida de sua verdadeira posição para poder compreender e não ser expulso sem nenhuma explicação que o convença. Por isso, o próprio Osterreich informa que o sucesso do exorcismo depende da autoridade e do poder de sugestão de quem o pratica.
“É, ainda mais importante, especialmente em períodos religiosos - acrescenta o autor -, que o exorcista deva estar, ele próprio, convencido da realidade da possessão, se isto contribuir para fortalecimento de sua fé no exorcismo.”
Claro! Se mesmo convencido dessa realidade, muitas vezes o exorcista se dá mal o que pode ele esperar se vai cuidar do caso como de um simples fenômeno de sugestão ou de múltipla personalidade, como querem certos cientistas? A evidência da autonomia da personalidade manifestante é gritante, mas o pior cego ainda é aquele que não quer ver. Não adianta! Em vários casos - a observação é de Osterreich - o "demônio" impõe condições para abandonar sua vítima, isto é, "negocia" com o doutrinador, cedendo um pouco em troca de algo que deseje. Por tudo isso, principalmente, e porque suas teorias explicam alguns casos mas não se adaptam a outros, o professor observa aí pela página 107:
“O exorcismo não é, contudo, eficaz em todos os casos, mas de modo geral não dispomos ainda de evidência precisa que explique por que a sugestão dá resultado em um caso e não em outro."
A segunda parte do livro é um estudo meticuloso da possessão em todos os tempos e em todas as latitudes. Há observações de alto interesse acerca dos oráculos gregos e muitas páginas sobre os fenômenos mediúnicos modernos que o eminente autor se recusa a aceitar no contexto espírita, insistindo em chamá-los de possessão artificial e possessão voluntária. Lamentavelmente não podemos ir até lá sem alongar demais este trabalho, que é apenas uma notícia sobre o livro do Dr. Osterreich. Vamos, pois, concluir.
Em suma, a possessão é encarada de três maneiras diferentes quanto à sua gênese e, por conseguinte, é tratada também de três maneiras diferentes.
A ortodoxia religiosa - especialmente a católica - considera a possessão como invasão do demônio e trata-a por meio de um ritual cuidadosamente preparado, com gestos, fórmulas canônicas, orações especiais, mas sempre com a intenção de expulsar o invasor, sem tentar dialogar com ele para esclarecê-lo.
Para a ciência oficial, o fenômeno resulta de uma doença mental e o tratamento é conduzido à base de análise ou drogas, ou ambas.
O Espiritismo considera na gênese do fenômeno da possessão a faculdade mediúnica desgovernada e trata o caso pelo processo do diálogo com o Espírito possessor, buscando compreender suas razões para esclarecê-lo e libertá-lo da sua própria ignorância e confusão mental.
As três posições são bastante afastadas umas das outras, mas é preciso convir, sem paixões e com todo o respeito diante de cada uma delas, que a atitude da ciência é a mais esdrúxula e menos realista, procurando atingir as causas cuidando apenas dos efeitos. A posição religiosa é mais objetiva, porque admite a presença de uma personalidade invasora. Seus erros estão em identificar essa personalidade invariavelmente com o demônio e em tentar apenas expulsá-lo, quando deveria atraí-lo amorosamente ao esclarecimento. A posição adotada pela Doutrina Espírita é a que foi ensinada pelos próprios Espíritos. E quem melhor do que eles para nos dizer das complexas realidades do mundo em que vivem? A prática espírita jamais procura expulsar Espíritos e sim ajudá-los. Jamais os considera demônios que cumpre fazer voltar ao inferno mitológico, mas irmãos em Deus que é preciso libertar de suas próprias angústias e aflições.
E se o exorcismo é quase sempre ineficaz e com frequência impressionante envolve também o exorcista no processo da dor; se o tratamento clínico dos casos de possessão é longo, difícil e duvidoso, a terapêutica do amor e do esclarecimento usada nas sessões de desobsessão produz resultados espantosos, frequentes, abundantes e seguros. E que alegria, Senhor, quando recebemos nos braços, agradecidos e de olhos úmidos, o irmão que chora o seu arrependimento, lamenta o seu remorso e se prepara para a reconstrução do seu mundo interior, iniciando a longa caminhada para a paz.
Hermínio C. Miranda
Revista Reformador Maio 1974 - (FEB)
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