Velhos e moços
Humberto de Campos
Não era raro
observar-se, na pequena comunidade dos discípulos, o entrechoque das opiniões,
dentro do idealismo quente dos mais jovens. Muita vez, o séquito humilde dividia-se
em discussões, relativamente aos projetos do futuro.
Enquanto Pedro e
André se punham a ouvir os companheiros, com a ingenuidade de seus corações
simples e sinceros, João comentava os planos de luta no porvir; Tiago, seu
irmão, falava do bom aproveitamento de sua juventude, ao passo que o jovem
Tadeu fazia promessas maravilhosas.
- Somos jovens! -
diziam. - Iremos à Terra inteira, pregaremos o Evangelho às nações, renovaremos
o mundo!...
Tão logo o Mestre
permitisse, sairiam da Galileia, pregariam as verdades do reino de Deus naquela
Jerusalém atulhada de preconceitos e de falsos intérpretes do pensamento
divino. Sentiam-se fortes e bem dispostos. Respiravam a longos haustos e
supunham-se os únicos discípulos habilitados a traduzir com fidelidade os novos
ensinamentos. Por longas horas, questionavam acerca de suas possibilidades
apresentavam as suas vantagens, debatiam seus projetos imensos. E pensavam
consigo: que poderia realizar Simão Pedro, chefe de família e encarcerado nos
seus pequeninos deveres? Mateus não estava igualmente enlaçado por inadiáveis
obrigações de cada dia? André e o irmão os escutavam despreocupados, para
meditarem apenas quanto às lições do Messias.
Entretanto,
Simão, mais tarde chamado o “Zelote”, antigo pescador do lago, acompanhava
semelhantes conversações, humilhado. Algo mais velho que os companheiros, suas
energias, a seu ver, já não se coadunavam com os serviços do Evangelho do
Reino. Ouvindo as palavras fortes da juventude dos filhos de Zebedeu,
perguntava a si mesmo o que seria de seu esforço singelo, junto de Jesus.
Começava a sentir mais fortemente o declínio das forças vitais. Suas energias
pareciam descer de uma grande montanha, embora o espírito se lhe conservasse
firme e vigilante, no ritmo da vida.
Deixando-se,
porém, impressionar vivamente, procurou entender-se com o Mestre, buscando
eximir-se das dúvidas que lhe roíam o coração.
***
Depois de expor
os seus receios e vacilações, observou que Jesus o fitava sem surpresa, como se
tivesse pleno conhecimento de suas emoções.
-Simão - disse o
Mestre com desvelado carinho —, poderíamos acaso perguntar a idade de Nosso
Pai? E se fôssemos contar o tempo, na ampulheta das inquietações humanas, quem
seria o mais velho de todos nós? A vida, na sua expressão terrestre, é como uma
árvore grandiosa. A infância é a sua ramagem verdejante. A mocidade se
constitui de suas flores perfumadas e formosas. A velhice é o fruto da
experiência e da sabedoria. Há ramagens que morrem depois do primeiro beijo do
Sol, e flores que caem ao primeiro sopro da Primavera. O fruto, porém, é sempre
uma bênção do Todo-Poderoso. A ramagem é uma esperança; a flor uma promessa; o fruto
é realização. Só ele contém o doce mistério da vida, cuja fonte se perde no infinito
da divindade!...
Ao passo que o
discípulo lhe meditava os conceitos, com sincera admiração, Jesus prosseguia,
esclarecendo:
- Esta imagem
pode ser também a da vida do espírito, na sua radiosa eternidade, apenas com a
diferença de que aí as ramagens e as flores não morrem nunca, marchando sempre
para o fruto da edificação. Em face da grandeza espiritual da vida, a
existência humana é uma hora de aprendizado, no caminho infinito do Tempo; essa
hora minúscula encerra o que existe no todo. É por isso que aí vemos, por vezes,
jovens que falam com uma experiência milenária e velhos sem reflexão e sem
esperança.
- Então, Senhor,
de qualquer modo, a velhice é a meta do espírito? Perguntou o discípulo,
emocionado.
- Não a velhice
enferma e amargurada que se conhece na Terra, mas a da experiência que edifica
o amor e a sabedoria. Ainda aqui, devemos recordar o símbolo da árvore, para
reconhecer que o fruto perfeito é a frescura da ramagem e a beleza da flor,
encerrando o conteúdo divino do mel e da semente.
Percebendo que o
Mestre estendera seus conceitos em amplas imagens simbológicas, o apóstolo
voltou a retrair-se em seu caso particular e obtemperou:
- A verdade,
Senhor, é que me sinto depauperado e envelhecido, temendo não resistir aos
esforços a que se obriga a minh‘alma, na semeadura da vossa doutrina santa.
- Mas, escuta,
Simão redarguiu-lhe Jesus, com serenidade enérgica —, achas que os moços de
amanhã poderão fazer alguma coisa sem os trabalhos dos que agora estão
envelhecendo?!... Poderia a árvore viver sem a raiz, a alma, sem Deus?!
Lembra-te da tua parte de esforço e não te preocupes com a obra que pertence ao
Todo-Poderoso. Sobretudo, não olvides que a nossa tarefa, para dignidade
perfeita de nossas almas, deve ser intransferível. João também será velho e os
cabelos brancos de sua fronte contarão profundas experiências. Não te magoe a
palestra dos jovens da Terra. A flor, no mundo, pode ser o princípio do fruto,
mas pode também enfeitar o cortejo das ilusões. Quando te cerque o burburinho
da mocidade, ama os jovens que revelem trabalho e reflexão; entretanto, não
deixes de sorrir, igualmente, para os levianos e inconstantes: são crianças que
pedem cuidado, abelhas que ainda não sabem fazer o mel. Perdoa-lhes os
entusiasmos sem rumo, como se devem esquecer os impulsos de um menino na
inconsciência dos seus primeiros dias de vida. Esclarece-os, Simão, e não
penses que outro homem pudesse efetuar, no conjunto da obra divina, o esforço
que te compete. Vai e tem bom ânimo!... Um velho sem esperança em Deus é um irmão
triste da noite; mas eu venho trazer ao mundo as claridades de um dia perene.
Dando Jesus por
terminado o seu esclarecimento, Simão, o Zelote, se retirou satisfeito, como se
houvesse recebido no coração uma energia nova.
***
Voltando à casa
pobre, encontrou Tiago, filho de Cleofas, falando à margem do lago com alguns
jovens, apelando ardentemente para as suas forças realizadoras.
Avistando o velho
companheiro, o apóstolo mais moço não o ofendeu, porém fez uma pequena alusão à
sua idade, para destacar as palavras de sua exortação aos companheiros
pescadores. Simão, no entanto, sem experimentar qualquer laivo de ciúme,
recordou as elucidações do mestre e, logo que se fez silêncio, ao reconhecer
que Tiago estava só, falou-lhe com brandura:
- Tiago, meu
irmão, será que o espírito tem idade? Se Deus contasse o tempo como nós, não
seria ele o mais velho de toda a criação? E que homem do mundo guardará a
presunção de se igualar ao Todo-Poderoso? Um rapaz não conseguiria realizar a
sua tarefa na Terra, senão tivesse a precedê-lo as experiências de seus pais.
Não nos detenhamos na idade, esqueçamos as circunstâncias, para lembrar somente
os fins sagrados de nossa vida, que deve ser a edificação do Reino no íntimo
das almas.
O filho de Alfeu
escutou-lhe as observações singelas e reconheceu que eram ditas com uma
fraternidade tão pura, que não lhe chegavam a ferir, nem de leve, o coração.
Admirando a ternura serena do companheiro e sem esquecer o padrão de humildade
que o Mestre cultivava, refletiu um momento e exclamou comovido:
-Tens razão!
O velho apóstolo
não esperou qualquer justificativa de sua parte e, dando-lhe um abraço,
mostrou-lhe um sorriso bom, deixando perceber que ambos deviam esquecer, para
sempre, aquele minuto de divergência, a fim de se unirem cada vez mais em
Jesus-Cristo.
Naquela mesma
tarde, quando o Messias começou a ensinar a sabedoria do Reino de Deus, Simão,
o Zelote, notou que havia na praia duas criancinhas inconscientes. Dominada
pela nova luz que fluía dos ensinamentos do Mestre, a mãe delas não vira que se
distanciavam, ao longo do primeiro lençol raso das águas; o velho pescador,
atento à pregação e às demais necessidades da hora em curso, observou os dois
pequeninos e acompanhou-os. Com uma boa palavra, tomou-os nos braços, sentando-se
numa pedra e, terminada que foi a reunião, os restituiu ao colo maternal, em meio
de suave alegria e sincero reconhecimento. Inspirado por uma força estranha à
sua’ alma, o discípulo compreendeu que o júbilo daquela tarde não teria sido
completo se duas crianças houvessem desaparecido no seio imenso das águas,
separando-se para sempre dos braços amoráveis de sua mãe. No âmago do seu
espírito, havia um júbilo sincero. Compreendera com o Cristo o prazer de
servir, a alegria de ser útil.
Nessa noite, Simão,
o Zelote, teve um sonho glorioso para a sua alma simples. Adormecendo de
consciência feliz, sonhou que se encontrava com o Messias, no cume de um monte
que se elevava em estranhas fulgurações. Jesus o abraçou com carinho e lhe
agradeceu o fraterno esclarecimento fornecido a Tiago, em sua lembrança,
manifestando-lhe reconhecimento pelo seu terno cuidado com duas crianças
desconhecidas, por amor de seu nome.
O discípulo
sentia-se venturoso naquele momento sublime. Jesus, do alto da colina
prodigiosa, mostrava-lhe o mundo inteiro. Eram cidades e campos, mares e montanhas...
Em seguida, o antigo pescador compreendeu que seus olhos assombrados divisavam
as paisagens do futuro. Ao lado de seu deslumbramento, passava a imensa família
humana. Todas as criaturas fitavam o Mestre, com os olhos agradecidos e
refulgentes de amor. As crianças lhe chamavam “amigo fiel”; os jovens, “verdade
do céu”; os velhos, “sagrada esperança”.
Simão acordou,
experimentando indefinível alegria. Na manhã imediata, antes do trabalho,
procurou o Senhor e beijou-lhe a fímbria humilde da túnica, exclamando jubilosamente:
- Mestre, agora
vos compreendo!...
Jesus
contemplou-o com amor e respondeu:
- Em verdade,
Simão, ser moço ou velho, no mundo, não interessa!... Antes de tudo, é preciso
ser de Deus!...
Humberto de Campos por Chico Xavier do livro:
Boa Nova
Declaração de Origem
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