quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

O doutrinador rigorista

O doutrinador rigorista

Humberto de Campos



Palavra vigorosa e inflamada, o pregador espiritista alongava-se na exposição de sempre:

– Nunca haverá acordo entre o mundo e nós outros. Fujamos desta Babilônia incendiada, onde a perdição corrompe o caráter e perverte as melhores energias. Neste pântano terrível, as víboras peçonhentas do crime rastejam em todas as direções. Salvaguardemo-nos, à distância, das sombras densas do pecado. Observai o abismo sob vossos pés! Trevas por todos os lados... Nas mais ínfimas estradas, a visão invariável de poeira e lama, pedras e espinhos, desencoraja o viajor anteriormente dominado de idealismo e esperança. Revelemos nossa repugnância, diante do mundo criminoso e perdido. Recordemos os santos magnânimos que iluminaram o quadro das civilizações, nos dias mais escuros. Todos eles fugiram ao Planeta perverso! É que, neste lamaçal imenso, as melhores aspirações do Espírito se perdem na borrasca do mal, longe de Deus!...

Macário Barroso era, assim, rigorista e implacável.

Dirigindo considerável agrupamento espiritista, sua atitude desconcertante alcançava a comunidade inteira, dilatando preocupações e tristezas e fazendo escassear alegrias. As jovens colaboradoras, nos seus trabalhos de difusão doutrinária, não deveriam manifestar os júbilos próprios da mocidade cheia de sonhos e as gargalhadas infantis, chilreios de pássaros felizes nos galhos fartos da vida, considerados por Macário como impulsos inconvenientes da meninice, requisitando repreensões ásperas.

– Não concordo com traço algum que nos recorde as perdições do mundo. Simplifiquemos tudo, combatamos a falsidade de certos princípios que escancaram a porta aos pecados miseráveis.

Não reconhecia, porém, o orientador, que simplicidade não significa violência, e que os enganos de concepção tanto podem permanecer naquele que se atira à irreflexão, como no homem que deseja amadurecer o fruto quando a fronde verde apenas oferece flores tenras.

Macário, todavia, apresentava fenômeno singular. Extremista de opinião, impressionava favoravelmente a quantos lhe ouvissem pareceres, porque, no fundo, era homem devotado e sincero. Não concedia a si mesmo nenhum entretenimento, nenhum prazer. Sacrificara-se quase totalmente aos princípios de que se tornara emérito pregador. Revelava gestos de profunda nobreza aos companheiros na fé, e a sinceridade é sempre sedutora, onde quer que permaneça. Por isso mesmo, a psicologia de sua individualidade brilhante apresentava situações de enorme complexidade. É que o prestigioso orientador não sabia identificar as necessidades alheias senão através dos prismas que lhe eram peculiares. No seu modo de observar, todos os casos deveriam estar afinados pelas características do que lhe era próprio. Porque guardava escabrosas impressões do passado individual, em virtude de experiências cruéis na luta humana, criara padrão exclusivo e errôneo para julgar os outros. Pintava a negro qualquer paisagem do mundo, condenava seu tempo, não tolerava os amigos que se decidissem ao trabalho da coletividade em ambientes até agora estranhos à expressão religiosa, quais a Política, a Ciência, a autoridade administrativa e o círculo das Finanças. Compreendia à sua maneira que Jesus não poderia partilhar trabalhos diferentes da atividade puramente mística em si mesma, e se algum companheiro manifestava propósitos de cooperar nesses setores, Macário exibia profunda admiração e observava:

– Não concordo. Semelhante atitude é o escândalo da volta ao mundo, que deveremos detestar.

Se, em plena rua, alguém lhe mostrasse uma casa de esporte ou algum recanto de alegria popular, Barroso afastava-se intencionalmente, baixava os olhos e tornava outro rumo, esclarecendo:

– São remanescentes de Sodoma e Gomorra, redutos do crime, que o fogo consumirá algum dia.

Furtava-se deliberadamente a toda palestra em que houvesse preocupação, embora correta, pelos problemas da vida social, e fugia à conversação onde o bom humor estivesse amenizando as agruras do caminho comum dos homens.

Apesar de bondoso e sincero, isolou-se aos poucos, afastando-se de amigos, de companheiros e de afeições. Cheio de preocupações salvacionistas, era sempre fecundo em apelos, conselhos e advertências, onde quer que estivesse, sem a necessária seleção de valores, lugares e situações. O que definia, no entanto, como intenção regeneradora, não era mais que a imposição das ideias próprias, com o esquecimento de que, para beneficiar com proveito, deveria dirigir-se à esfera mental de cada um dos irmãos na luta, sem obrigá-los a procurar o plano em que se mantinha.

Debalde a carinhosa mãe lhe observou os perigos da situação. Inutilmente os amigos solicitaram-no à transformação precisa. Macário foi implacável. Preferiu a solidão, a necessidade, o abandono. Declarava-se amedrontado do mundo, onde a bagagem de seus erros se tornara volumosa e exigia que todos os companheiros exteriorizassem receios iguais aos dele. Via monstros em todos os recantos, perversão nas alegrias mais inocentes.

E foi assim, rígido e inflexível, sem ceder absolutamente a ninguém, que o bondoso doutrinador regressou à esfera espiritual.

Desprendera-se da zona carnal, quase sozinho, como preferira viver, no radicalismo dos princípios pessoais.

Muita gente passou a catalogá-lo na relação dos santos, tais os supostos sacrifícios que Barroso revelara na existência terrestre, os quais, na realidade, não passavam de imposições de sua personalidade intransigente. Todavia, enquanto reduzido grupo erigia ao desencarnado um mundo de homenagens, o doutrinador passou às surpresas inesperadas na esfera diferente de ação. Fundamente desapontado, não encontrou a paisagem que aguardava. Achou-se sem ninguém, exclusivamente sozinho. Que região era aquela constituída de montanha gelada? Contemplava a distância os vales que a neblina convertia em quadros cinzentos e indefiníveis. Frio cortante dilacerava-lhe o coração. Como interpretar a novidade constrangedora? O pobre amigo chorou amargamente, implorando elucidações da Providência Divina. Não fora combatente implacável dos erros e mentiras de seu ambiente e de sua época?

Decorrido muito tempo na expectativa dolorosa, foi visitado por benevolente emissário que lhe estendeu auxílios carinhosos.

– Ah! meu amigo! que fiz por merecer tamanhas flagelações? – perguntou Macário, após agradecer-lhe a presença amorosa – cumpri meus deveres, não olvidei obrigações assumidas...

O mensageiro contemplou-o afetuosamente e falou, tomando-lhe as mãos num gesto paternal:

– Ó meu filho, quanto lastimo o teu desentendimento. Não posso negar-te o esforço e a boa vontade, entretanto...

– A que incompreensão vos referis? – interrogou o ex-doutrinador conturbado – acaso não me afastei do mundo para servir a Deus?

A bondosa entidade fixou um gesto significativo e esclareceu:

– Esta simples afirmativa demonstra o teu engano fatal. Como poderia o servo atender ao senhor que lhe contratou a atividade, abandonando a zona de serviço confiada ao seu esforço? Reconhecendo a Terra integrada na criação de Deus, como cumprir os desígnios do Pai, fugindo-lhe aos serviços?

Enquanto Macário denunciava intraduzível angústia no pranto que lhe borbulhava dos olhos, o amigo continuava:

– Muitas vezes procurei restituir-te o coração ao verdadeiro caminho, falando-te através de familiares e amigos prudentes, mas cristalizaste os raciocínios, cerrando as portas do plano mental aos meus apelos.

– É que o mundo sempre me pareceu insondável abismo, de crimes sem conta... nunca pude
contemplá-lo sem mágoa e condenação – exprimiu-se o recém-desencarnado, lacrimoso.

– Procedeste qual homem tirânico que intenta violentar quantos lhe cruzam os caminhos, obrigando-os a partilhar o resgate das dividas que lhe são próprias. Por estares endividado com a Terra, pretendeste doutrinar orgulhosamente, impondo aos outros inquietações e pesares que te pertencem ainda. Por que tamanha aversão à escola benfeitora? Acaso, meu filho, não te alimentavas do mundo, não te vestias dele? Não foi o mundo que te ministrou os primeiros conhecimentos, que te proporcionou a bênção do corpo, a possibilidade de renovação individual, o reencontro de afeições divinas? Desejarias insultar a Terra, porque te concedeu a dedicação dos pais, o templo da reencarnação, a tepidez do lar, o olhar amigo dos que te amam? Recebeste com abundância as inspirações de ordem superior, mas preferiste a solidão com a teimosia de quem não sabe renunciar aos caprichos próprios. Pregaste a palavra em nome de Jesus, convocando os ouvintes a receberem imposições, olvidando que o Mestre Divino não esperou pelas criaturas, na esfera de sua glória, mas veio até nós, ajudando-nos a cada um.

Valendo-se da pausa intencional que o mensageiro imprimira à alocução, clamou Barroso, desalentado:

– Amedrontavam-me os antros de perdição!...

– Por que pavor e não piedade? – inquiriu o sábio, serenamente. – Não te interessavas pelos enfermos do corpo? Como desprezar cheio de asco injusto os doentes da alma? Não te aproximavas carinhosamente dos mutilados físicos? Por que a repugnância para com os aleijados espirituais? Não há lugares desprezíveis para o cristão fiel, porque, em toda parte, é possível praticar o bem com Jesus.

Macário, muito triste, arregalava os olhos. Começara a entender a amarga situação.

Tentando, porém, a derradeira justificativa, exclamou:

– Seduzia-me a lembrança dos santos...

No entanto, antes que se alongasse em considerações novas, o mensageiro acrescentou:

– Não conheces, todavia, os santos de Júpiter ou Saturno. Tens notícias apenas dos que se glorificaram na Terra. Forçoso, pois, é reconhecer que, do mundo que detestaste, saíram os Simão Pedro e os Paulo de Tarso que tanto admiras. Deste modo, claro está que o mundo somente será perverso para quem o fixe nutrindo intenções ou reminiscências dessa natureza.

Macário Barroso experimentou tremendo choque. Entendera, enfim, o equívoco ruinoso de suas antigas concepções, caindo em amargurado silêncio.

Daí a instantes, o emissário endereçava-lhe um gesto de adeus.

– Oh! amado benfeitor! – suplicou o infeliz, banhado em lágrimas – por quanto tempo ficarei aqui, abandonado neste monte gelado?

– Esta montanha – esclareceu a generosa entidade – deve representar profundo símbolo ao teu coração.

Não basta subir ao tope da cultura e do conhecimento intelectual; é preciso que haja sol de compreensão e amor que ilumine e aqueça a culminância.

Emocionado, Barroso suplicou ainda:

– Abençoado amigo, mensageiro do Altíssimo, ensinai-me a reparar meus erros, para redenção de minha pobre alma! Auxiliai-me, não me negueis vossas mãos!...

O benfeitor, prestes a partir, dirigiu-lhe significativo olhar e acrescentou:

– Tens bastante conhecimento para compreender a magnanimidade de Nosso Pai. Tua questão, Macário, é com o mundo. Antigamente erraste, enlameando-lhe as estradas; presentemente renovaste o erro, fugindo-lhe aos serviços. Não tenho outro conselho para teu coração além da fórmula de procurares o credor e conhecer a própria conta. Quanto ao mais, meu irmão, confia na bondade do mundo e que Deus te conceda acréscimo de misericórdia no resgate justo.



Humberto de Campos por Chico Xavier do livro: - Reportagens de Além Túmulo







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