Breve ensaio sobre o mal
Joanna de Ângelis
O bem é tudo o que é conforme à lei de Deus;
o mal, tudo o que lhe é contrário.
O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec - Questão 630
Persiste no espírito humano a tendência para o mal, como ressonância do primarismo ancestral das experiências transatas da evolução.
Platão identificou-a nas suas observações profundas, denominando-a como face escura do ser, portanto, desconhecida, e Carl Gustav Jung constatou-a nos estudos da personalidade, a que chamou de sombra.
Aí permanecem os impulsos da violência e da agressividade, as paixões escravizadoras, os instintos indomados que respondem pelo retardamento da autoiluminação.
Trata-se do eu inferior, que representa um perigo para o indivíduo, e que deve ser identificado, a fim de ser combatido com a luz do discernimento e do amor.
Quase sempre é visto nas demais pessoas como enfermidades da alma, que se responsabilizam pelos incontestáveis danos causados às outras criaturas ou à sociedade em geral.
Quanto mais desconhecido do mundo íntimo, mais perturbações e prejuízos o mal ocasiona.
O Espírito não é mau em razão da sua origem divina, porém nele permanece o mal, como a ganga retida na gema preciosa ou o escalracho mesclado ao trigo bom na mesma gleba.
Ignorá-lo é uma forma de deixá-lo livre e em expansão, permitindo-lhe manifestações frequentes e danosas no comportamento.
Outrossim, tentar esmagá-lo através de atitudes rígidas, torna-se tarefa inútil, porquanto, à medida que for privado de exteriorizar-se, mais vigor adquire até o momento em que explodirá com virulência danosa.
Quando uma força pressiona e encontra resistência, prossegue até a liberação da sua carga, arrebentando ou sendo desarmada.
O comportamento correto em tal caso é aquele que leva à sua identificação - ao impulso - e à capacidade de resistência que possui.
No processo de desenvolvimento antropológico, o biótipo mais forte sobreviveu aos demais em razão da brutalidade, do volume e da astúcia na luta pela vida.
A medida que o homem desenvolveu a inteligência e aplicou-a para proteger-se e preservar a espécie, adquiriu o poder de vencer as feras e os animais gigantescos. Como decorrência, ficou a presença do mal nele dominante, que vem aplicando contra si mesmo - autodestruição, excesso nos vícios - e contra os outros - furtos e roubos, calúnias, perseguições, homicídios e guerras que ameaçam toda a civilização...
A fim de conscientizar-se do mal em si mesmo, faz-se imprescindível o aprofundamento do autoexame, para encontrar os pontos vulneráveis que o despertam e desencadeiam, predispondo-o para a agressão.
Todos os indivíduos são vulneráveis às aflições, que decorrem das enfermidades, das pressões, das agressões, dos distúrbios psicológicos.
Na infância, essas emoções se apresentam como movimentos desordenados, choro, refletindo a impotência da criança diante da dor, do desconforto, de alguma necessidade biológica...
Mais tarde, expressando-se como medo ou raiva, ela morde e, por fim, com maior recurso de mobilidade, bate, golpeia, foge ou planeja desforço.
Conforme o ambiente, a família, e particularmente a mãe, com quem mantém maior convivência, o mal que é inerente na infância ou se desenvolve, tomando vulto ou dilui-se em grande parte.
Na idade adulta, em razão de outros sentimentos, como vergonha e culpa, que geram tensão, aumentam o medo e a raiva, estimulando à prática do mal, como vingança ou forma cruel de sobrevivência.
O mal pode ser considerado uma emoção de emergência, que irrompe com violência quando teme, ou permanece em silêncio, agindo soturnamente e perturbando aquele que lhe experimenta a constrição.
Quando o mal se manifesta em ação, estimula o sistema nervoso simpático suprarrenal, que fornece energia para a ação nefasta - a luta - ou para a fuga, até que uma oportunidade própria se lhe desenhe favorável, a fim de descarregar a tensão.
A medida que aumenta essa força e não se faz liberada, o medo se transforma em raiva, que cresce até tornar-se fúria, que pode, às vezes, levar ao pânico.
A criatura teme a dor.
Tudo que a conduz ao sofrimento, se não tem o medo sob o controle da verdade e não domina a raiva, no mal se exterioriza para agredir e relaxar-se.
Certamente, a vontade não tem maior ação sobre o medo, que irrompe com ou sem motivo lógico e apavora, mas possui grande ascendência sobre a raiva que pode ser administrada.
A raiva não pode ser considerada uma manifestação destrutiva, mas sim uma reação orgânica, porquanto desaparece, quando lhe cessa a causa.
Quando o indivíduo se vê sitiado, o mal nele existente se transforma em fúria, que tudo arrebenta e destrói.
A fúria enceguece, obliterando o raciocínio e anulando a vontade.
A culpa sempre irrompe após as atitudes que afligem as demais pessoas, causadas intencionalmente ou não.
De início, é um sentimento de vergonha da própria inferioridade, que cresce e se transforma.
O desabrochar do sentimento de culpa proporciona a sensação de haver perdido o respeito que inspirava a afeição, gerando desconfiança e instabilidade.
A vergonha da ação praticada produz humilhação e rejeição, empurrando para o desconforto emocional e as suspeitas infundadas, em batalha mental constante que aturde o ser.
Quando se trata de uma pessoa madura psicologicamente, desperta e procura os meios para a reparação. Porém, quando se é infantil emocionalmente, foge-se, tomado pela vergonha do erro, procurando mecanismos de autojustificação ou de autopunição, que desencadeiam o mal adormecido e faz que se converta em mágoa contra si mesmo ou contra aquele que foi o seu causador.
A falta de responsabilidade induz à acusação a outrem, por haver criado as circunstâncias que desencadearam o incidente, mesmo que não existam. É esta uma forma infantil de o infrator autojustificar-se.
O conflito predominante no ser impede-o de discernir com claridade, sendo sempre a culpa das outras pessoas, quase nunca dele próprio.
Um dia, porém, surge, em que o mal libera a consciência e a percepção racional corrige o entendimento do fato, advindo a necessidade da reparação.
Igualmente, quando se padece de insegurança e medo, a ação negativa se transforma em mecanismo de autopunição, transtornando o comportamento psicológico.
A vergonha e a culpa devem ser trabalhadas com espontaneidade, com segurança, a partir do momento em que a pessoa se considere humana, portanto, sujeita a julgamentos e atos equivocados, que pode e deve corrigir.
A descoberta do mal interior, que se disfarça com as roupagens de sentimentos variados, contribui para a sua erradicação, terapeuticamente investindo-se na saúde emocional, espiritual e comportamental.
Não se trata de um empreendimento fácil, nem rápido.
A eliminação de um condicionamento ocorre mediante o esforço de substituí-lo por outro, no caso, um que seja saudável e benfazejo.
Qualquer espaço em aberto se preenche com facilidade, ou fica vulnerável à reinstalação do hábito anterior.
A cada impulso negativo, do mal existente, deve-se aplicar uma formulação racional, tranquila, que transforma a reação agressiva ou vil em ação dignificante e paciente.
A personalidade é um abismo ainda desconhecido com mistérios complexos para serem desvendados.
No inconsciente do ser dormem milênios em que se encontram os impulsos automáticos, que a razão vem superando, mas necessitam ser decodificados, para, logo diluídos, cederem lugar às ações edificantes.
Herdando as experiências transatas, o ser humano fixou-as no consciente que, de alguma forma, passa a dirigir-lhe a conduta nesse árduo trânsito para a autoconsciência, quando poderá e saberá agir com equilíbrio, respeitando a lei de Deus e tudo realizando conforme as suas disposições.
O mal é a ausência do bem, sem dúvida, que ainda não se instalou e que contribui para agredir a vida, perturbá-la e até tentar extingui-la.
A sua existência é real, enquanto permanece afligindo e gerando a dor, que induzirá, por fim, aquele que o experimenta, a uma radical mudança de conduta.
Negar-lhe a realidade constitui perigosa forma de escamoteá-lo.
Essa natureza do eu inferior deverá ceder lugar à totalidade do eu superior.
O mal é, desse modo, um impulso inconsciente, automático, que emerge do abismo do ser, como mecanismo de sobrevivência, e lhe desata tendências perturbadoras, que se lhe encontravam jungidas.
Residindo no imo, tais tendências são psicogênicas, e os fatores externos não as produzem, sejam quais forem os estímulos que se apresentem. Esses somente serão aceitos mediante ressonância por sintonia de onda vibratória que os sincronize.
Muitas imagens perversas e vulgares da propaganda pela mídia, que a diversos perturbam, a outros, de maneira alguma sensibilizam.
Quando há, porém, o impulso latente do mal, os estímulos externos despertam-nos ou vitalizam-nos, caso já se encontrem em ação.
Na terapia para a diluição do mal, o amor exerce função essencial, por oferecer segurança àquele que se faz vítima da distonia produzida pelo instinto, auxiliando-o a educar a vontade, a corrigir a óptica pela qual observa a vida e a faz avançar na ação do bem, etapa a etapa, desde que essa mudança não se dá de chofre ou sob o encantamento do entusiasmo de um momento.
Exercícios mentais de reflexão em torno de pensamentos edificantes, análises sobre vidas abnegadas contribuem para a instalação de paisagens otimistas no ser, onde se pode respirar o bem-estar, sem os aguilhões da inveja, do egoísmo, da agressividade.
O autoexame dos atos e a vigilância na conduta igualmente facultam o clima para a preceterapia libertadora, que eleva o Espírito e o envolve em vibrações superiores que o penetram e desalgemam do mal, a fim de que possa aplicar-se ao bem, conforme a lei de Deus.
Joanna de Ângelis por Divaldo Franco do livro:
Dias Gloriosos
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