Pseudoespiritismo
Louis Neilmoris
Poderíamos dizer que há três tipos de Espiritismo, no sentido prático da configuração atual:
1. Espiritismo folclórico: o modelo místico, desenhado e propagado pela cultura popular, que desconhece a Doutrina Espírita e é corroborado pelas fantasias e condenações próprias dos opositores, que acusam os espíritas de bruxaria, satanismo, magia negra, exploração da fé alheia com o intercâmbio espiritual e leitura do futuro, charlatanismo, profetismo etc. Esse modelo está tão enraizado no meio comum que, para o leigo, é difícil desassociar Espiritismo do misticismo;
2. Espiritismo praticado: é o padrão configurado pelo modo como o Espiritismo tem sido praticado normalmente, seja baseando-se em um só adepto, seja por uma denominada instituição, seja pela prática geral, a que se chama Movimento Espírita — e que nem sempre (para não dizer nunca) representa a essência da Doutrina;
3. Espiritismo doutrinário: o autêntico modelo, que segue os fundamentos traçados pela codificação espírita.
Sendo o terceiro modelo o verdadeiro e único, doravante diremos que os demais são variantes do pseudoespiritismo — modelos falsos ou imperfeitos.
Herdeiros que somos de práticas místicas e religiosistas milenares, nós todos, em geral, que nos declaramos espíritas, estamos suscetíveis a praticar o Espiritismo mais ou menos nos moldes primitivos de outras filosofias e religiões, confundindo técnica com ritual, conceito com preconceito, lei natural com dogmas humanos etc. E nem é por malícia ou desejo deliberado de enganar alguém, mas sim por ignorância, por estarmos enganados, por não termos adquirido a capacidade de compreender o que é ser espírita.
Sobretudo no Brasil, que é originalmente uma foz fraterna onde deságuam variadas crenças e culturas, a Doutrina dos Espíritos ganhou feições fortemente religiosistas. Não pela doutrina em si, é claro, porém como uma decorrência natural do sincretismo cultural de nossa gente.
Num todo, o Espiritismo é um sistema novo em comparação com o que a humanidade conhecia. Em razão disso, obviamente ele exige uma revolucionária postura dos seus adeptos: racionalidade. Entretanto, na sua grande massa, os principiantes (ditos) espíritas abraçaram a causa kardequiana sem se desvencilharem completamente dos dogmas das crenças precedentes. Abjuraram-se os velhos rótulos, todavia não esvaziaram por completo a mente das arcaicas concepções — e sem se darem conta disso.
Beatitude, misticismo e liturgias ainda são muito presentes no (considerado) Movimento Espírita contemporâneo, desfigurando assim grande parte dos propósitos espíritas.
Os pseudoespíritas se comportam como subjulgados das casas espíritas, que foram genuinamente elaboradas para servirem de centros de estudo e pesquisa, porém que hoje assumem mais a faceta de templos e igrejas.
As atividades espíritas são comumente chamadas de trabalhos e quase nunca de estudos. Os voluntários das instituições se autodenominam trabalhadores, quase como a se intitularem eclesiásticos, cuja pretensão latente é: trabalhar, para receber a recompensa celeste.
Os estudos nas casas espíritas atuais mais parecem catecismo. Praticamente não há pesquisas, desafios, debates. De normal, se alguém pergunta demais passa a ser malvisto. Participar dos cursos doutrinários serve como que credencial, pois é uma praxe que "é preciso estudar (estar matriculado no curso ou ter posse dum diploma) para ser seareiro espírita". O reflexo disso é que não há a devida preocupação com o como se estuda.
As pessoas querem trabalhar e não exatamente praticar espiritismo. Ser trabalhador tem a conotação de ser alguém que cumpre um papel religioso, como a se pensar que, executando tarefas práticas, se consegue o ingresso para um desencarne feliz e a estadia numa colônia espiritual do nível ou superior à famosa Nosso Lar. Enfim, o trabalho voluntário no centro espírita é visto vulgarmente como um dízimo, em troca do bônus-hora descrito por André Luiz; é como um sacrifício sacramental em troca de uma graça divina.
O resultado disso tudo é encontrarmos passistas que não sabem o que é magnetismo, palestrantes que não conhecem a Doutrina, médiuns que desconhecem a mediunidade, doutrinadores que ignoram o que fazem e dirigentes que atraiçoam a causa espírita com suas variações sistemáticas.
O assistencialismo barato parece tomar conta dos eventos institucionais. O pão material parece nutrir o pensamento comum de que seja superior ao pão espiritual, a ponto de, não raro, nos depararmos com discursos inflamados pelos quais os responsáveis pelos trabalhos de assistência social se gabam de estarem atendendo não sei quantas famílias com cestas básicas mensais e distribuírem não sei quantos agasalhos aos necessitados. Sinceramente, não desdenhamos a importância desse tipo de serviço, mas perguntamos onde está o alimento espiritual — o verdadeiro libertador das consciências?
Até mesmo naquilo que comumente hoje é interpretado como pão espiritual, vê-se um mero exercício religiosista: reza, louvação e assistencialismo espiritual barato. O que deveria ser um encontro de um grupo de estudos, pesquisa e trabalho tem sido um culto de oblação nos idênticos padrões dos templos vulgares. De um lado, os chamados assistidos — que se comportam como os leigos das igrejas comuns; do outro, os trabalhadores espíritas — como se fossem o clero, os consagrados. Ao invés de uma sala de aula ou laboratório de pesquisa, os templos espíritas correntes têm uma planta arquitetônica que mais lembra um santuário. Atender os fieis espíritas ganhou contornos de distribuir bênçãos: o chamado atendimento fraterno nos remete ao tradicional confessionário católico; no lugar de uma exposição dinâmica, a homilia; para não sentirmos saudades da hóstia, dá-se hoje o passe e a água fluidificada… Só faltavam as orações prontas, mas não falta mais; não é raro nos depararmos com jograis, recitais mecanicamente reproduzidos, dentre os quais a velha fórmula: "Ave Maria, cheia de graça; o Senhor é convosco…".
E pensar que Kardec recomendou, certa vez, que nem do Pai Nosso fizéssemos culto! (Ver "VIAGEM ESPÍRITA" em 1862, de Allan Kardec)
De repente, ser um estudioso, pesquisador, intelectual e apreciador da filosofia espírita parece mesmo soar como alguém elitista, pretensioso, orgulhoso etc. Há verdadeiramente um corrente preconceito contra aqueles que realmente querem seguir o lado científico do Espiritismo, figurando estes entre aqueles que somente vivem da fria razão, sem sentimento e sem ação; como se ser sábio fosse antagônico a ser caridoso.
Isso equivale a ver a obra de Jesus apenas pelos fantásticos milagres (especialmente o da multiplicação dos pães) em desdém dos seus mandamentos. Ou ainda contar a biografia de Francisco Cândido Xavier apenas pelas campanhas filantrópicas, suprimindo os mais de quatrocentos livros psicografados, dentre os quais os da série "A Vida no Mundo Espiritual", pela qual o Espírito André Luiz tanto acentuou o valor do conhecimento positivo, da racionalidade e da desmistificação do pensamento humano.
E nem preciso falar do que Emmanuel pensa sobre tudo isso…
Mas não nos tornemos amargos e desestimulados por circunstâncias como essas. Ao contrário, ânimo! Lembremo-nos de que a Doutrina Espírita está no seu alvorecer e de que, salvo raríssimas exceções, os homens de hoje a estão experimentando pela primeira vez. E quando levantamos a possibilidade de Allan Kardec ter sido um tanto ingênuo ao desconsiderar a possibilidade de o Movimento Espírita se desvirtuar, na verdade, o fizemos por efeito de linguagem, porque, sem sombra de dúvidas, ele projetava sua obra tendo em vista um horizonte muito mais alargado, considerando mesmo que nestas primeiras gerações, a absorção e aplicação da doutrina passassem mesmo por tais vicissitudes.
Além disso, observemos — com felicidade — os frutos já alcançados pelo Espiritismo, especialmente no quesito do voluntarismo dos espíritas, em observância à norma da caridade, que nos diz "Daí de graça o que de graça recebeste". É mesmo louvável que tenhamos estabelecido a praxe da gratuidade dos serviços espíritas. Não podemos dizer que não haja exploração financeira dentro das casas espíritas, entretanto, em geral, as improbidades se perdem num mar de generosidade que as instituições kardecistas promovem. Se compararmos ao que vemos em outras congregações religiosas, então…
Este autor desconhece qualquer eventualidade grave, no meio da nossa seara, que envolva qualquer exploração material. Desconhece-se qualquer escândalo desse naipe envolvendo nossa doutrina. De oposto, temos referências absolutamente respeitáveis, por exemplo, Dr. Bezerra de Menezes e Chico Xavier, que efetivamente dispuseram de oportunidades para a autopromoção — tanto para benefícios materiais diversos quanto financeiros, propriamente falando — com suas obras doutrinárias e não sucumbiram a esta séria tentação. Esta é uma conquista maravilhosa do nosso ativismo doutrinário que suplanta todos os tropeços destas primeiras gerações de ativistas do Moderno Espiritualismo.
Estamos inseridos num ambiente em reforma, onde algumas coisas precisam ser desconstruídas e demolidas para dar lugar a coisas novas. Uma obra desse porte causa certos inconvenientes, naturalmente, e exige readaptações. Contudo, sabemos que a reforma tem uma razão de ser e que dela sempre colhemos benefícios, pelo que, digamos: os transtornos são temporários, mas os benefícios são duradouros.
É compreensível que durante nossa escalada haja imperfeições. Porém, não vamos nos eximir do compromisso de sermos espíritas e de contribuirmos para que o Movimento Espírita se fortaleça nos fundamentos originais da natureza espiritual, ainda que sob o peso de ter que se desconstruir, em certos pontos, rumo aos ideais da verdade, bondade, sabedoria e justiça divina.
- Para seguirmos corretamente o espiritismo, devemos submeter todas as mensagens mediúnicas ao crivo duplo de Kardec, sendo eles, a razão e a universalidade.
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