O servo não é mais que o senhor
João Marcus
(Pseudônimo de Hermínio C. Miranda)
Aproximava-se o fim da jornada terrena. Chegara a hora das despedidas e das últimas recomendações. Por algum tempo ainda o veriam e depois... seria a separação. Teriam compreendido bem os ensinamentos e os exemplos de todos aqueles anos de peregrinação? Teriam entendido as lições imortais do amor? Estariam em condições de divulgar por toda parte a palavra e as doces expectativas do Reino de Deus?
Talvez ainda não, mas ele não podia esperar mais, porque sua hora chegava rápida. Pareciam crianças grandes, sempre acostumadas a se voltarem para o Mestre e perguntar o que fazer e o que dizer. Nos momentos finais da última reunião ainda pareciam desarvorados e inseguros.
— Senhor, diz Felipe, mostra-nos o Pai e isso nos bastará.
— Tanto tempo estou convosco e ainda não me conheces, Felipe? O que viu a mim, viu ao Pai. Como é que dizes: Mostra-nos o Pai? Não acreditas que eu estou no Pai e o Pai está em mim?
Mais tarde, depois que houvesse partido, como agiriam se ainda agora queriam a prova impossível da visão de Deus? Tinha ainda muito que dizer e ensinar, mas chegara o termo da tarefa e, mesmo que prorrogasse a permanência entre eles por alguns séculos à frente, nem assim poderia dizer-lhes tudo quanto era necessário. Só mais tarde, muito mais tarde na escala humana, daria mais uma parcela da Verdade eterna que liberta. Por enquanto, a lição tinha que ser primária, vazada em imagens e expressões singelas, quase infantis. Era preciso dramatizar sua mensagem, traduzi-la em ação que estivesse ao alcance da compreensão dos seus amados. Por algum tempo seriam eles os depositários da sua mensagem. Era preciso conservá-la intacta, viva e atuante. Os riscos eram muitos e certamente ele seguiria os passos de cada um, mesmo oculto nas dobras invisíveis do Infinito. Estaria presente neles, amorosamente. Mas era preciso deixar-lhes os sinais da sua passagem, as lembranças dos seus ensinos, a certeza da sua compreensão, a segurança do seu afeto. Que seriam fiéis depositários da verdade, não tinha dúvidas, mas teriam alcançado toda a extensão do legado e as responsabilidades que sua guarda envolvia? No futuro, muitos os perseguiriam e os atormentariam, porque haviam sido discípulos seus, mas muitos outros haveriam de atirar-se aos seus pés pelas mesmas razões. Aqueles homens rudes conviveram com o Mestre maior que descera de inacessíveis regiões do mundo espiritual. Haviam estudado a lição do amor diretamente de seus lábios e aprendido as lições da vida diretamente de seu exemplo. Estariam livres do orgulho? Escapariam ao doce e perigoso cântico da vaidade? Quando alguém lhes chegasse aos pés e lhes dissesse:
— Abençoado sejas porque teus olhos contemplaram o Mestre Imortal. Ensina-nos como ele te ensinou, porque tu também és Mestre.
Sim, havia o risco, porque eram humanos também, e muito humanos, profundamente humanos. Por isso mesmo os escolhera. Como, porém, implantar-lhes no espírito para sempre a lição eterna da humildade? A palavra não bastava, porque a palavra se esquece no momento seguinte e ele não estaria mais presente para repeti-la.
Enquanto isso, a última ceia prosseguia e sobre eles pairava uma indefinível angústia e a intuição de uma saudade que ainda não era. Foi quando ele se levantou, sem nada dizer. Tomou uma toalha e prendeu-a em torno do corpo. Que pretenderia? É certo que todos o olhavam e se entreolhavam. Em seguida, tomou uma bacia e se curvou para lavar os pés de seus amigos.
Pedro, estupefato, recusava-se terminantemente a consentir que o seu Mestre, dobrado sobre o chão como um escravo qualquer, lavasse os pés empoeirados e rudes de rude pescador.
— Senhor, lavar tu meus pés?
— O que faço — respondeu Jesus — não entenderás agora, só mais tarde.
— Jamais me lavarás os pés.
— Se não me deixas lavá-los, não terás parte comigo.
Isso também não; nunca! Lavasse, então, não apenas os pés, mas também as mãos e a cabeça.
Não era, porém, porque estivessem sujos.
— O que se lavou não necessita lavar-se; está limpo — disse ainda Jesus. — E vós outros estais limpos, ainda que nem todos...
E nesse diálogo prossegue a tocante cerimônia. Talvez pensassem que seria aquilo um novo ritual que Jesus desejasse ensinar-lhes. Qual seria, porém, o sentido profundo da cena inesquecível?
Terminada a cerimônia, Jesus retomou o manto que tirara para o trabalho e voltou ao seu lugar à mesa. Só então fez ver o sentido do seu gesto.
— Compreendeis o que acabo de fazer convosco? Vós me chamais de “Mestre” e “Senhor” e dizeis bem, porque o sou. Pois se eu, o Senhor e o Mestre, lavei os vossos pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Dei-vos um exemplo, para que também vós façais como fiz convosco. Em verdade, em verdade vos digo, o servo não é mais que o senhor nem o enviado mais do que aquele que o envia.
A lição imortal da humildade foi narrada por uma testemunha ocular, pois consta do capítulo 13 do Evangelho de João. Muito falamos de humildade e muito ouvimos falar dela, ao longo desses dezenove séculos, mas quantas vezes separamos um minuto do nosso tempo atribulado para, no recolhimento silencioso, visualizar aquela cena comovente de um Espírito como não há outro neste planeta, curvado ao chão, lavando e enxugando os pés de seus discípulos simplesmente para imprimir-lhes para sempre na memória o preceito da humildade.
Teriam aprendido a lição? Certamente que sim. Mais tarde, escrevendo aos seus amigos ao longe diria Pedro:
— De igual maneira, jovens, sede submissos aos mais velhos; revesti-vos todos de humildade em vossas mútuas relações, pois “Deus resiste aos orgulhosos e concede sua graça aos humildes”.
A lição é sutil porque humildade não é sinônimo de subserviência, de bajulação, de servilismo. O Cristo de Deus, ajoelhado ao chão lavando os pés de seus amigos não servil nem bajulador — é humilde, porque a grandeza dispensa o orgulho. O orgulho só existe quando queremos ser o que não somos. Nossas posições — humanas ou espirituais — podem parecer desniveladas às vezes, mas parecer é diferente de ser. O Espírito que se assinou Irmã Rosália, escreveu em mensagem coligida por Kardec, em 1860, esta observação:
- Encontrei aqui (no mundo espiritual) um dos pobres da Terra, a quem, por felicidade, eu pudera auxiliar algumas vezes, e ao qual, a meu turno, tenho agora que implorar auxílio (“O Evangelho segundo o Espiritismo”, cap. 13).
Se por um momento de invigilância nos sentirmos maiores ou melhores do que o irmão ao lado, é bom lembrar depressa que o servo não é mais do que o senhor. E aquele a quem hoje atiramos uma distraída moeda, poderá ser amanhã aquele que vai vos estender a mão para nos tirar das sombras que nos envolverem.
João Marcus
Nota explicativa: - Hermínio C. Miranda também assinava seus artigos como João Marcus e H.C.M. Este expediente foi sugerido pelo editor da Revista Reformador para que pudessem ser publicados mais artigos dele em uma mesma revista.
Texto publicado na Revista Reformador em Abril de 1974, posteriormente incluído no livro: - "Candeias na noite escura", uma compilação com os melhores artigos de Hermínio na revista Reformador assinadas sob o pseudônimo de João Marcus.
- Para seguirmos corretamente o espiritismo, devemos submeter todas as mensagens mediúnicas ao crivo duplo de Kardec, sendo eles, a razão e a universalidade.
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