sábado, 23 de maio de 2020

Parábola

Parábola

Paulo Cesar Fructuoso



Certo homem, ouvindo pela primeira vez a Prece de Cáritas, sentiu-se tomado por profunda emoção e decidiu, desde então, dedicar-se ao estudo sistematizado do Espiritismo em suas três vertentes: a Científica, a Filosófica e a Religiosa. Em pouco tempo organizou um grupo de pessoas afinadas com seus propósitos, e juntos fundaram um Centro, no qual colocariam em prática o que pudessem aprender em teoria. Cada sessão era aberta com a Prece de Cáritas, que em boa parte dirige suas rogativas ao próximo dizendo: 
“Daí ao viajor a estrela-guia; ao aflito, a consolação; ao doente, o repouso; ao culpado, o arrependimento [...].”
Com a evolução do grupo e suas sessões regulares cada vez mais concorridas, o "fundador" resolveu se aprofundar, buscando alcançar as materializações dos espíritos de luz, o que seria o corolário da organização por ele criada e presidida. 

Reunindo os recursos necessários, construiu um confortável santuário, dotado de cabines mediúnicas, um pequeno auditório semicircular em frente a elas, com um grupo de leitos ao centro destinados a receber enfermos que seriam atendidos por médicos do espaço, os quais certamente ali se corporificariam. 

Sensitivos com potencialidade mediúnica para efeitos físicos foram cuidadosamente educados e desenvolvidos, mas, apesar de todos os esforços e esmeros nada acontecia durante os encontros destinados aos tão aguardados fenômenos. 

Tantas foram suas preces e súplicas, buscando respostas ao enigmático silêncio, que as inteligências invisíveis que acompanhavam seu trabalho laborioso, desde o início resolveram atender às suas rogativas, mostrando-lhe as causas do insucesso.  

Desdobrado do corpo físico, seu espírito foi transportado durante o sono reparador da noite até seu amado santuário, onde terrível surpresa o aguardava. O ambiente fora tomado por um bando de entidades baderneiras e debochadas, que vociferavam e dançavam, entregando-se a práticas obscenas, deixando o irmão Presidente estarrecido e desolado. Ele corria de um lado para o outro, na tentativa inútil de expulsar os invasores que mais alto gargalhavam diante de seus esforços insanos, insensíveis até mesmo à invocação do nome do próprio Cristo. 

Ao perceber a derrocada, deixou-se encostar abatido em um dos cantos da sala. Quanto mais contemplava aquele espetáculo, mais acabrunhado e desiludido se deixava transparecer, até que em determinado momento um espírito de triste figura dele se aproximou, indagando em tom provocativo: 
- O que tens, homem? Por que não vens se divertir conosco neste ambiente tão agradável?
 Mantendo-se cabisbaixo, o pobre irmão respondeu: 
- Porque erigi esse santuário objetivando a prática da caridade, e vejo que vocês o transformaram em um antro de perdição. 
A resposta não se fez esperar. Após estridente gargalhada, o espírito descaído arguiu: 
- Mas o que querias? Se estamos aqui é porque tu e teus companheiros nos trouxeram. 
- Como seria isto possível? 
Redarguiu indignado o nosso amigo.
- Sempre que aqui nos reunimos permanecemos em preces, imbuídos dos mais elevados sentimentos. Este templo foi erguido com grande sacrifício para receber espíritos de luz materializados, que possam com seu conhecimento ajudar os enfermos que nos procuram. Jamais traríamos espíritos de baixa estirpe para cá.
 Em um misto de ódio e sarcasmo, o interlocutor trevoso perguntou:
- Baixa estirpe? Nós? Quantas vezes nesta semana te indispusestes com tua companheira no próprio lar? Quantas vezes te irritastes no ambiente de trabalho, nestes últimos dias, com teus colegas de trabalho? Quantos foram os momentos de indiferença e desprezo aos abandonados da sorte que cruzaram o teu caminho a mendigar nas ruas? Quantos pensamentos impudicos e desejos inconfessáveis se assenhorearam da tua mente nas noites e dias recentes? Pois saibas que cada vez que esses sentimentos conosco afinados vibram em seus espíritos, somos magnetizados às tuas auras porque o semelhante atrai o semelhante. Sempre quisemos aqui penetrar, mas sem a tua ajuda e dos teus colaboradores isto nos seria impossível. 
O obsessor falava com a desenvoltura de alguém com conhecimento técnico do assunto. Demonstrava familiaridade com as fraquezas do contendor, delas se utilizando para mais abatê-lo moralmente. Poderia ser enquadrado em muitos adjetivos desabonadores, menos o de ignorante. Sabia exatamente o que queria e como consegui-lo, e implacável prosseguiu: 
- Temos o direito de aqui estar para observar o comportamento teu e de todos. Buscamos a vindita justa das terríveis perseguições que sofremos no passado. Nem as poderosas defesas fluídicas em torno desta casa, erguidas pelos teus amigos do nosso plano, ligados à natureza e que se denominam pretos velhos, caboclos e índios, impedem a nossa entrada, porque, quando aqui chegas tomado pelos maus pensamentos, crateras se abrem à tua passagem e por ela penetramos imantados à tua aura e às dos outros. 
Cada frase era como uma vergastada em plena face do infeliz irmão, pois reconhecia no íntimo representarem a pura verdade. Enfraquecido, sentiu acentuar-se o abatimento até quedar-se de joelhos ao chão do santuário. Em pranto convulsivo. Parecia ter sido ferido de morte, tamanha a expressão de sofrimento que exibia no semblante. 

Nesse momento, como se um raio de luz lhe iluminasse a fronte, lembrou-se de sua amada Prece de Cáritas e, em profunda demonstração de humildade, modificando o tempo verbal e a pessoa das frases, orou dizendo: 
- Deus, meu Pai, vós que sois todo poder e bondade, daí a mim a força porque sou eu que estou em provação. Daí a mim a luz, porque sou eu quem procura a verdade. Ponde no meu coração a compaixão e a caridade, porque essas virtudes nele ainda não penetraram. Dai-me o consolo porque eu sou um aflito. Concedei-me um momento de repouso porque eu estou doente. Dai-me o arrependimento porque sou um culpado e a verdade porque sou um espírito. Dai-me um guia porque não passo de uma criança, e um pai porque eu estou órfão. 
E, reunindo as últimas e derradeiras forças de um coração combalido, porém orvalhado em lágrimas sacrossantas, salutares e purificadoras, ele exclamou: 
- Senhor, tende piedade do meu espírito, porque, apesar dos estudos, das leituras, das convicções, das constatações, dos testemunhos, das preces e das obras, eu ainda não vos conheço. 
À medida que as frases eram ditas, luzes de tonalidades estranhas espocavam no ambiente, aterrorizando as falanges das sombras, que debandavam em terrível algaravia, não sem antes lançar ao ar impropérios e promessas de vingança. 

Aos poucos o salão se serenou, restando tão somente o nosso irmão adormecido, envolto sob uma tênue claridade safirina vinda do alto, Deus sabe de onde. Foi então carinhosamente transportado de volta ao seu veículo físico por seus protetores espirituais. 

Quem sabe, a partir daquele dia, viesse ele a ingressar na estrada que o levasse, no futuro, a reunir as condições necessárias à materialização dos “espíritos de luz”.

Paulo Cesar Fructuoso do livro:
A face oculta da medicina - Cap. XXIX

Veja na íntegra em Vídeo: 

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