terça-feira, 12 de março de 2019

O bom ladrão

O bom ladrão

Humberto de Campos



Alguns dias antes da prisão do Mestre, os discípulos, nas suas discussões naturais, comentavam o problema da fé, com o desejo desordenado de quantos se atiram aos assuntos graves da vida, tentando, apressadamente, forçar uma solução.

— Como será essa virtude? De que modo conservá-la-emos intacta no coração? — inquiria Levi, com atormentado pensamento. Tenho a convicção de que somente o homem culto pode conhecer toda a extensão de seus benefícios.

— Não tanto assim — aventava Tiago, seu irmão —, acredito que basta a nossa vontade, para que a confiança em Deus esteja viva em nós.

— Mas a fé será virtude para os que apenas desejam? — perguntava um dos filhos de Zebedeu.

A um canto, como distante daqueles duelos da palavra, Jesus parecia meditar. Em dado instante, solicitado ao esclarecimento, respondeu com suavidade:

— A fé pertence, sobretudo, aos que trabalham e confiam. Tê-la no coração é estar sempre pronto para Deus. Não importam a saúde ou a enfermidade do corpo, não têm significação os infortúnios ou os sucessos felizes da vida material. A alma fiel trabalha confiante nos desígnios do Pai, que pode dar os bens, retirá-los e restituí-los em tempo oportuno, e caminha sempre com serenidade e amor, por todas as sendas pelas quais a mão generosa do Senhor a queira conduzir.

— Mas, Mestre — redarguiu Levi, em respeitosa atitude —, como discernir a vontade de Deus, naquilo que nos acontece? Tenho observado grande número de criaturas criminosas que atribuem à Providência os seus feitos delituosos e uma legião de pessoas inertes que classificam a preguiça como fatalidade divina.

— A vontade de Deus, além da que conhecemos através de sua lei e de seus profetas, através do conselho sábio e das inclinações naturais para o bem, é também a que se manifesta, a cada instante da vida, misturando a alegria com as amarguras, concedendo a doçura ou retirando-a, para que a criatura possa colher a experiência luminosa no caminho mais espinhoso. Ter fé, portanto, é ser fiel a essa vontade, em todas as circunstâncias, executando o bem que ela nos determina e seguindo-lhe o roteiro sagrado, nas menores sinuosidades da estrada que nos compete percorrer.

— Entretanto — observou Tomé —, creio que essa qualidade excepcional deve ser atributo do espírito mais cultivado, porque o homem ignorante não poderá cogitar da aquisição de semelhante patrimônio.

O Mestre fitou o apóstolo com amor e esclareceu:

— Todo homem de fé será, agora ou mais tarde, o irmão dileto da sabedoria e do sentimento; porém, essa qualidade será sempre a do filho leal ao Pai que está nos Céus.

O discípulo sorriu e obtemperou:

— Todavia, quem possuirá no mundo lealdade perfeita como essa?

— Ninguém pode julgar em absoluto — disse o Cristo com bondade —, a não ser o critério definitivo de Deus; mas, se essa conquista da alma não é comum às criaturas de conhecimento parco ou de posição vulgar, é bem possível que a encontremos no peito exausto dos mais infelizes ou desclassificados do mundo.

O apóstolo sorriu desapontado, no seu cepticismo de homem prático. Dentro em pouco, a pequena comunidade se dispersava, à aproximação do manto escuro da noite.

Na hora sombria da cruz, disfarçado com vestes diferentes, Tomé acompanhou, passo a passo, o corajoso Messias.

Estranhas reflexões surgiam-lhe no espírito. Sua razão de homem do mundo não lhe proporcionava elementos para a compreensão da verdade toda. Onde estava aquele Deus amoroso e bom, sobre quem repousavam as suas esperanças? Seu amor possuiria apenas uma cruz para oferecer ao filho dileto? Por que motivo não se rasgavam os horizontes, para que as legiões dos anjos salvassem do crime da multidão inconsciente e furiosa o Mestre amado? Que Providência era aquela que se não manifestava no momento oportuno? Durante três anos consecutivos haviam acreditado que Deus guardava todo o poder sobre o mundo; não conseguia, pois, explicar como tolerava aquele espetáculo sangrento de ser o seu enviado, amorável e carinhoso, conduzido para o madeiro infamante, sob impropérios e pedradas. O prêmio do Cristo era então aquele monte da desolação, reservado aos criminosos?

Ansioso, o discípulo contemplou aquelas mãos que haviam semeado o bem e o amor, agora agarradas à cruz como duas flores ensanguentadas. A fronte aureolada de espinhos era uma nota irônica na sua figura sublime e respeitável. Seu peito tremia, ofegante, seus ombros deveriam estar pisados e doloridos. Valera a pena haver distribuído, entre os homens, tantas graças do Céu? O malfeitor que assaltava o próximo era, agora, a seu ver, o dono de mais duradouras compensações.

Tomé se sentia como que afogado. Desejou encontrar algum dos companheiros para trocar impressões, entretanto, não viu um só deles. Procurou observar se os beneficiados pelo Messias assistiam ao seu martírio humilhante, na hora final, lembrando de que ainda na véspera se mostravam tão reconhecidos e felizes com a sua santa presença. A ninguém encontrou. Aqueles leprosos que haviam recuperado o dom precioso da saúde, os cegos que conseguiram rever o quadro caricioso da vida, os aleijados que haviam cantado hosanas à cura de seus corpos defeituosos, estavam agora ausentes, fugiam ao testemunho. Valera a pena praticar o bem? O apóstolo, mergulhado em dolorosos e sombrios pensamentos, deixava absorver-se em estranhas interrogações.

Reparou que em torno da cruz estrugiam gargalhadas que reportavam ironias. O Mestre, contudo, guardava no semblante uma serenidade inexcedível. De vez em quando, seu olhar se alongava por sobre a multidão, como querendo descobrir um rosto amigo.

Sob as vociferações da turba amotinada, a Tomé parecia-lhe escutar ainda o ruído inolvidável dos cravos do suplício. Enquanto as lanças e os vitupérios se cruzavam nos ares, fixou os dois malfeitores que a justiça do mundo havia condenado à pena última. 

Aproximou-se da cruz e notou que o Messias punha nele os olhos amorosos, como nos tempos mais tranquilos. Viu que um suor empastado de sangue lhe corria do rosto venerável, misturando-se com o vermelho das chagas vivas e dolorosas. Com aquele olhar inesquecível, Jesus lhe mostrou as úlceras abertas, como o sinal do sacrifício. Penosa emoção dominou a alma sensível do discípulo. Olhos enevoados de pranto, recordou os dias radiosos do Tiberíades.

As cenas mais singelas do apostolado ressurgiam ante a sua imaginação. Subitamente, lembrou-se da tarde em que haviam comentado o problema da fé, parecendo-lhe ouvir ainda as elucidações do Mestre, com respeito à perfeita lealdade a Deus. Reflexões instantâneas lhe empolgaram o coração. Quem teria sido mais fiel ao Pai do que Jesus? Entretanto, a sua recompensa era a cruz do martírio! Absorto em singulares pensamentos, o apóstolo observou que o Messias lançava agora os olhos enternecidos sobre um dos ladrões, que o fixava afetuosamente.

Nesse instante, percebeu que a voz débil do celerado se elevava para o Mestre, em tom de profunda sinceridade:

— Senhor! — disse ele, ofegante — lembra-te de mim, quando entrares no teu Reino!…

O discípulo reparou que Jesus lhe endereçava, então, o olhar caricioso, ao mesmo tempo que aos seus ouvidos chegavam os ecos de sua palavra suave e esclarecedora:

— Vês, Tomé? Quando todos os homens da lei não me compreenderam e quando os meus próprios discípulos me abandonaram, eis que encontro a confiança leal no peito de um ladrão!…

Inquieto, o discípulo meditou na lição recebida e, horas a fio, contemplou o espetáculo doloroso, até ao momento em que o Mestre foi retirado da cruz da derradeira agonia. Começava, então, a compreender a essência profunda de seus ensinos imortais.

Como se o seu Espírito fora transportado ao cume de alto monte, pareceu-lhe observar daí a pesada marcha humana. Viu conspícuos homens da lei, sobraçando os livros divinos; doutores enfatuados de orgulho passavam eretos; exibindo os mais complicados raciocínios. Homens de convicções sólidas integravam o quadro, entremostrando a fisionomia satisfeita. Mulheres vaidosas ou fanáticas lá iam, igualmente, revelando seus títulos diletos. Em seguida, vinham os diretamente beneficiados pelo Mestre Divino. Era a legião dos que se haviam levantado da miséria física e das ruínas morais. Eram os leprosos de Jerusalém, os cegos de Cafarnaum,  os doentes de Sídon, os seguidores aparentemente mais sinceros, ao lado dos próprios discípulos que desfilavam, envergonhados, e se dispersavam, indecisos, na hora extrema.

Possuído de viva emoção, Tomé se pôs a chorar intimamente. Foi então que presumiu escutar uns passos delicados e quase imperceptíveis. Sem poder explicar o que se dava, julgou divisar, a seu lado, a inolvidável figura do Mestre, que lhe colocou as mãos leves e amigas sobre a fronte atormentada, repetindo-lhe ao coração as palavras que lhe havia endereçado da cruz:

— Vês, Tomé? Quando todos os homens da lei não me compreenderam e os próprios discípulos me abandonaram, eis que encontro a confiança leal no peito de um ladrão!…


Humberto de Campos por Chico Xavier do livro: Boa Nova



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