segunda-feira, 25 de março de 2019

Voltando

Voltando

Fernando de Lacerda


Fernando de Lacerda / Chico Xavier

Precioso é o sofrimento, na floresta humana, para rasgar alguma clareza amiga por onde a luz possa penetrar nas furnas da sombra; contudo, ainda não me refiz totalmente dos choques trazidos daí, depois de minha consagração à mediunidade, por alguns anos.

Tive a felicidade de transmitir aos meus contemporâneos as notícias de vários pensadores e literatos redivivos, incorporando-as ao Espiritismo luso-brasileiro, qual o telegrafista postado à ponta do fio estendido entre os dois mundos; entretanto, guardo ainda bem vivas as marcas do sarcasmo e da perseguição que o serviço me valeu, por parte de muitas personalidades importantes, já agora recambiadas para cá, onde não mais se dispõem ao mau gosto de escarnecer a verdade.

Não é fácil entregar certas mensagens a destinatários que se voltam contra elas.

Por mais que se identifique o portador, através de palavras e atitudes a lhe positivarem a idoneidade moral, há sempre recursos multiplicados para evasivas.

Se a tarefa mediúnica representasse um manancial de ouro e de prazeres imediatos no currículo da carne, acredito que o povo se congregaria em massa, ao ruído de foguetes e ao som festivo de filarmônicas para recebê-la. O emissário da realidade, porém, não  dispõe senão de palavras e de emoções para distribuir, apelando para realizações e louros, que quase toda a gente considera remotos ou inaceitáveis.

Raríssimas pessoas admitem a medicina preventiva. A maioria espera que a doença lhe desordene os nervos ou lhe apodreça a carne para se resolver, pondo a boca no mundo, a procurar clínicos ou cirurgiões.

Muito poucos, na atividade usual da Terra, se inclinam ao socorro da medicação religiosa.

Detidos temporariamente nas ilusões do império celular, que se desmorona no sepulcro, passam por aí distraídos, no que tange aos interesses do espírito eterno.

Na morte, sim. Exasperam-se e choram até à prostração, lastimando-se, contudo, algo tarde. Não porque alguma vez lhes faltasse – como a ninguém falta – a Compaixão Divina: a paciência do Pai é inexaurível. É que se postergam, nas circunstâncias da luta terrena e nos quadros da parentela consanguínea, as valiosas oportunidades de mais amplo serviço.

O ensejo de aprender, corrigir, restaurar e auxiliar é indefinidamente adiado.

Indispensável se torna aguardar outra época, outros meios e reajustes.

O chamado “homem prático” ainda se assemelha, em diversas tendências, aos seres rudimentares do mundo, vivamente apaixonados pelas bactérias do solo e indiferentes à claridade solar.

Por esta razão, o serviço da mediunidade, por agora, ainda não é apetecível tentame para mim.

Compreendo que é preciso amargurar-se alguém para que outrem se alegre. Curte o cascalho a provação da fealdade, mas vive na alegria de fornecer o ouro precioso. Para nutrir-se, a célula física ainda exige no mundo a existência do matadouro. O que, no entanto, me estarrece não é o sacrifício de um homem pela melhoria dos semelhante: é a indiferença das criaturas pensantes e responsáveis, diante da ternura e da renunciação dos amigos de além-mundo.

O enrijecimento e a impermeabilidade das inteligências encarnadas, com reduzidas exceções, só os podem corrigir a dedicação e o carinho dos Espíritos Superiores.

Muitas vezes aí observei a deplorável paga do bem pela ingratidão, a revolta e a vaidade a troco da humildade e da ternura.

Que sempre houve muita gente preocupada em ouvir os desencarnados não padece dúvida; mas pessoas realmente interessadas na verdade jamais encontrei, exceção feita de alguns raros amigos, considerados bonzos e loucos, quanto eu mesmo o fui.

As entidades comunicantes por meu intermédio eram admiradas, ou suportadas, sempre que lisonjeassem, confortassem ou distraíssem; mas quando tangiam as cordas da realidade no mágico instrumento da palavra, convertiam-se em demônios de mistificação ou de inconveniência.

Entre máscaras e almas, vivi perplexo e atenazado por interrogações e decepções contundentes.

Daí, talvez, a exaustão que me colheu, de súbito, em plena luta.

Meu cérebro era uma trincheira sob contínuas investidas.

De obstáculo em obstáculo, caí sobre as pedras do meu caminho, minado por intraduzível esgotamento.

Alguns companheiros verificaram, em meu drama doloroso na casa de saúde, a falência de minhas faculdades, acreditando-me desprezado pelos amigos espirituais. Na verdade, porém, os mensageiros da luz não me haviam abandonado. Quando se inutiliza o filamento frágil de uma lâmpada, assim fazendo o aposento às escuras, isso não quer dizer que a usina geradora de força houvesse deixado de existir. Os vexilários da causa de Jesus eram excessivamente bondosos para não desculparem a insignificância e a pobreza do amigo que lhes acompanhava as pegadas na romagem difícil.

Ainda que me fosse dado cumprir todos os deveres que a mediunidade me indicava ou impunha, sentir-me-ia efetivamente pequenino e derrotado perante a magnitude da ideia que me cabia servir.

Creia, porém, que a minha desencarnação, em dificuldades prementes, depois de haver conquistado vasta corte de amizades e relações em Portugal e no Brasil, traz-me à lembrança curiosa narrativa de um amigo, a propósito de esquecido adivinho do povo de Israel.

Ao tempo dos Juízes, apareceu um homem inteligente e prestativo nas cercanias de Jerusalém, que era procurado por centenas de pessoas todas as semanas. Sacerdotes e instrutores, políticos e negociantes, cavalheiros e damas de prol vinham ouvir-lhe a palavra inspirada e reveladora.

Tamanha era a movimentação popular, ao redor dele, que de maneira nenhuma lhe era permitido cuidar do seu interesse e sustento. Mal conseguia repousar, apenas algumas horas escassas, quando a noite adormentava os inquietos consulentes de toda parte.

E os grandes homens da raça, porque se sentissem na presença de missionários incomum, começaram a encher-lhe o nome de títulos imponentes e a enfeitar-lhe o peito com medalhas diversas. Era considerado o mensageiro de Jeová, o sucessor de Moisés, o profeta dos profetas, o emissário da verdade, o revelador do oculto, o médico infalível e o sábio protetor do povo.

Rara a semana em que solene comissão não lhe procurasse o lar, trazendo-lhe novas comendas e homenagens, papiros comovedores e honrosas felicitações.

O mago maravilhoso e incompreendido, sorridente e valoroso, definhava, incapaz de uma reação, parecendo cada vez mais pálido e abatido, até que, um dia, foi encontrado morto em seu singelo montão de palha.

Ante os clamores públicos, um médico foi chamado à pressa, a fim de verificar o acontecimento, certificando, com facilidade, que o glorioso filho de Israel morrera de fome.

Reuniu-se o conselho do Povo Escolhido, com veneráveis solenidades, e, depois de acalorados debates, concluíram os conspícuos maiorais de Jerusalém que o famoso adivinho falecera em tão deploráveis circunstâncias, em virtude de provação determinadas pelo Divino Poder.

E todos esqueceram a singular personagem, guardando a consciência tranquila, tanto quanto lhes era possível.

Não desejo com a presente história constituir-me advogado em causa própria. Cada qual principia a tarefa que lhe cabe entre os homens e termina os serviços que lhe compete, de conformidade com os seus merecimentos.

O problema do médium, no entanto, é questão fundamental no Cristianismo renascente.

Em quase toda parte há uma tendência positiva para a fiscalização ou para tomar conta da criatura que as circunstâncias apresentam por veículo de comunicação entre os dois planos. Raros medianeiros, por isso, terminaram o ministério com a galhardia e a segurança que deles se deveria esperar. Logo depois de encetada a marcha, retornam aos pontos de origem ou se perdem nos vastos espinheiros da desilusão, após tentarem a fuga do caminho reto, atendendo às sugestões das zonas inferiores.

Mas, se é justo dar onde exigimos, se é imperioso auxiliar onde somos auxiliados, se protegemos o canteiro de legumes para que estes nos não faltem à mesa, se providenciamos a devida instrução para o moço de recados que desejamos converter em colaborador do escritório, por que motivo negar a piedade e o estímulo ao companheiro que se transforma em cooperador de nossa alegria e elevação na senda do espírito?

Até que o avanço moral do Planeta possibilite equações definitivas da ciência, no terreno da sobrevivência e da intervenção das almas desencarnadas no círculo terrestre, o médium será a “cabeça de ponte” do mundo espiritual entre os homens, solicitando compreensão, solidariedade e incentivo para funcionar com a eficiência precisa.

A questão é, pois, das mais delicadas. Como será resolvida, não sei.

É assunto, porém, de imediato interesse para o ideal que esposamos e para a coletividade a que servirmos, achando-se naturalmente sob a responsabilidade dos homens encarnados, que para ele necessitam voltar olhos amigos.

Deus dá a semente e o clima, a água e o solo; quem dirige, porém, o arado e sustenta a lavoura, esse é o próprio homem, herdeiro e usufrutuário dos benefícios da Terra.

Que o Céu nos ajude a vencer as dificuldades, a fim de que a evolução permaneça baseado nas palavras do Senhor; “misericórdia quero e não sacrifício”.



Fernando de Lacerda por Chico Xavier do livro: Falando à Terra / Espíritos Diversos




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