Conquistas Democráticas
Otávio Mangabeira
O processo da evolução social e política da criatura humana, como da sociedade, tem sido lento e assinalado por dificuldades quase intransponíveis.
O tirano tem governado mais do que o sábio. O guerreiro tem estado à frente dos países em maior número de vezes do que o pacificador. Os ditadores dominaram mais povos do que os idealistas. E embora essas lições amargas da História, o ser humano em particular e os povos em geral não aprenderam a eleger os seus dirigentes. A grande tragédia da dominação arbitrária tem vicejado através dos tempos.
Do chefe tribal sanguinário e primitivo a um Hitler; do Faraó elegido pelos sacerdotes com poderes discricionários a um Stalin; de um Assurbanipal cruel a qualquer déspota da atualidade; dos Setenta tiranos de Atenas a Nero, Átila ou Khomeini, as civilizações vêm padecendo as injunções dolorosas da escravidão.
Impérios se levantaram em glórias de um dia, que o tempo consumiu povos se multiplicaram e erigiram tronos que se esboroaram sob o clangor de guerras vergonhosas; culturas variadas predominaram e desapareceram na voragem do suceder dos séculos silenciosos, deixando os seus vestígios em amontoados de pedras derrubadas e gastas.
Os homens escravizaram outros homens e as mulheres foram submetidas em situações de incomparável vergonha e dor sob a chibata dos dominadores sádicos, que se entregavam à lascívia e à delinquência com inominável prazer.
Os filósofos e poetas, artistas e cantores da liberdade, tentaram sensibilizar o pensamento histórico, sendo abafadas suas vozes pelo relho dilacerador ou através da morte infamante.
O fatalismo da evolução, porém, é impostergável, e apesar de todas as vicissitudes, a marcha do progresso dá-se a pouco e pouco.
Com Jesus, o Legislador Ideal, os direitos humanos foram estabelecidos e a lídima fraternidade foi apresentada na Terra como desafio para todos os seres, pagando Ele com a vida, a audácia de programar um mundo melhor e demonstrar a possibilidade de ser instaurada a democracia, nas consciências e nos corações, que avançaria para os regimes políticos e sociais.
Não obstante o Seu incomparável exemplo, os sicários da humanidade atiraram às feras, ou as fogueiras, ou à humilhação, aqueles que O seguiam e acreditavam nos valores éticos que dormem na consciência.
Vez que outra, todavia, na imensa noite medieval, surgiram os construtores da liberdade humana, que foram esmagados pelo despotismo, pela selvageria, pelo medo dos seus coevos.
Ficaram, porém, as suas sementes em luz de esperança, atiradas no rumo do futuro.
Com a ampliação dos horizontes da Terra através dos Descobrimentos e da Renascença, que reconstruiu a beleza no mundo sombrio, os filósofos ressuscitaram os ideais de liberdade que pareciam mortos e suas vozes proclamaram os direitos humanos, tendo Jean Jacque Rousseau, o Marquês de Beccaria e outros retomado corajosamente a bandeira da dignidade do ser humano, invectivando contra o crime tornado legal, o direito divino dos reis e os preconceitos que denigrem a própria criatura.
A França, anelando pela instalação da liberdade, da igualdade e da fraternidade no seu território, não pôde impedir o volumoso derramamento de sangue dos seus filhos nem a loucura do Terror, quando rolaram na guilhotina as cabeças hediondas dos fanáticos, mas também de homens e mulheres incomuns, para inscrever nas páginas da Justiça os ambicionados direitos humanos até hoje desrespeitados.
Amanhecia, porém, ali, dia novo para a humanidade.
À medida que a Ciência, a Filosofia, as Artes se libertavam do totalitarismo da Religião e da dominação dos biltres elevados à condição de governantes, as doutrinas políticas e sociais começaram a abrir espaço para a implantação dos futuros ideais democráticos.
Com o surgimento da Tecnologia e da Era Industrial as transformações no organismo social se fizeram inevitáveis e, a 15 de setembro de 1891, o Papa Leão XIII promulgou a sua Encíclica Rerum Novarum (Das coisas novas), defendendo os direitos dos operários e dos marginalizados, descobrindo os problemas sociais e apresentando soluções para os mesmos, seguida por outras como a Quadragésimo Anno, de 1931, a Pacem in terris, a Populorum Progressio e a Humanae Vitae…
Delas nasceram os Partidos democrata-cristãos que não conseguiram vencer as paixões de grupos e de interesses, às vezes inconfessáveis, dividindo-se na Alemanha, com as diferentes alas da centro-direita, da esquerda e da Renânia-Westfália; na Itália, com fragmentações; na França, com ocorrência igual; na Áustria… no Brasil, na Venezuela, com as suas ala direitista e a moderadamente esquerdista.
Todas essas dificuldades, porque o problema é a própria criatura humana que ainda não se educou para respeitar os direitos do seu próximo e sempre se oferece primazias, destaques, eleições especiais.
Enquanto o lar não se transforme em escola moralizadora e a Escola não se converta em santuário de edificação humana, o indivíduo caminhará dominado pela violência por faltar o discernimento da razão para ajudá-lo a triunfar, sem sujeitar o seu próximo.
O indivíduo vale pelas suas conquistas íntimas e não pelas expressões de arbitrariedade e dominação que alardeia e impõe aos demais.
A falência tem sido dos sistemas educacionais, resultado dos governantes ditadores que sabem ser a educação o seu adversário mais poderoso, enquanto a ignorância, que gera o temor, é o seu fâmulo especial e melhor serviçal.
Apesar de tudo, o pensamento rompe a sombra dominadora e as aspirações humanas já conseguem descortinar os valores da democracia, dos direitos de cada povo eleger o seu governante e desapeá-lo do poder, quando não mais corresponda às aspirações das massas, que passam a fruir de dignidade.
A consciência desperta para os seus direitos sabe que esses resultam dos deveres seriamente cumpridos e que a sua liberdade para onde começa a do seu próximo.
A Política, a pouco e pouco, assume a postura de ciência, substituindo a politicagem soez que ainda predomina, mas que vai sendo desmascarada, para ceder lugar a novos comportamentos respeitáveis.
Nesse sentido, os Partidos políticos compreendem que têm a missão de velar pelo povo, pela nacionalidade e não pelos interesses dos grupos que os dirigem, das coligações interessadas em cargos sem encargos, em pecúnias sem dignidade, nas negociatas que os desmoralizam, quando deveriam unir-se ou digladiar-se com elevação para a preservação das Leis e o seu cumprimento sem exceções nem privilégios, inclusive daqueles que as elaboram…
Parecem distantes esses dias, certamente. No entanto, já podem ser vislumbrados, quase antecipados, quando a crítica aberta aponta as calamidades de comportamentos de autoridades e administradores que, embora não punidos são desmascarados, passando a conviver mal com eles próprios, desde que ninguém se pode evadir da própria consciência, não obstante os disfarces nos quais se esconde.
As conquistas democráticas fazem-se a esforço, porém, adquiridas não mais se esfumam, não mais desaparecem. Todo aquele que desfruta de direitos já não se submete à peia da escravidão.
Todos os seres nasceram para ser livres, particularmente o humano. Mesmo aquele que vive escravizado por imposição política, guerreira, social, de raça ou de cor, padecendo a jugulação no poste da humilhação, poderá ter liberdade no seu pensamento, aspirando pelo momento da sua conquista de movimento independente.
O Espírito é desimpedido e o ser humano assim o é, momentaneamente no ergástulo carnal, não necessitando da algema escravagista, porque o corpo já o limita enquanto no imo ele anda pela liberdade total.
A conquista da democracia é individual, que se irradia e conquista o grupo social, um dia se estabelecendo na sociedade, cujos governantes compreenderão a necessidade de instituir Leis de educação e de instrução, garantindo os direitos de todos sem qualquer tipo de preconceito. ampliando as áreas da filantropia e solidariedade, com o objetivo de diminuir as carências dos cidadãos, cuja miséria os coloca em situação de inferioridade.
O direito de igualdade é predominante em um Estado democrático, que faculta a natural tendência para o referendum e todas as iniciativas legisladoras.
No Estado democrático, a tirania de um indivíduo ou de um grupo não viceja porque o povo é o responsável pelo seu governo, com direito a ser governante também, desde que possua as condições exigíveis para a investidura.
Mas é o ser humano em si mesmo que merece todo o apoio e incentivo, auxílio e dignificação, a fim de que se conscientize da sua destinação histórica para a felicidade, jamais para a escravidão ou a subserviência.
A todos os homens e mulheres de bem, que conhecem o Evangelho e a sua Mensagem, ou mesmo àqueles que, embora não conhecendo as propostas de Jesus a respeito do Seu Reino e Sua Justiça, compreendem que a felicidade resulta da conduta digna que cada qual se propõe, cabe a tarefa luminosa de apressar esses dias, para que seja lograda a conquista democrática dos direitos humanos, e as sombras do horror, que são filhas prediletas das ditaduras, das hegemonias ignominiosas dos políticos hediondos e dominadores impenitentes, desapareçam da Terra, dando lugar a um mundo novo de paz, no qual todos tenham liberdade e fruam das condições essenciais para serem felizes.
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Otávio Mangabeira – Luzes do Alvorecer – Cap. 8 – Conquistas Democráticas / Revista “Presença Espírita” - Ano XXIII – Nº 197- Nov/Dez 96 – Salvador-BA (mensagem psicografada por Divaldo Franco em Salvador, no Centro Espírita Caminho da Redenção em 02/10/1996).
Octávio Mangabeira (Octávio Cavalcanti Mangabeira), engenheiro civil, jornalista, professor, político, diplomata, orador e ensaísta, nasceu em Salvador, BA, em 27 de agosto de 1886, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 29 de novembro de 1960.
Quarto ocupante da Cadeira 23 da Academia Brasileira de Letras, eleito em 25 de setembro de 1930, na sucessão de Alfredo Pujol e recebido pelo Acadêmico Afonso Celso em 1º de setembro de 1934.
Fez os estudos primários e secundários na cidade natal e formou-se em Engenharia pela Escola Politécnica, hoje Universidade da Bahia. A sua ação desdobrou-se em múltiplos cargos: engenheiro encarregado da inspeção dos trabalhos do porto da Bahia e professor de Astronomia da Escola Politécnica da Bahia (1907-1911); membro do Conselho Municipal de Salvador (1908-1912); eleito deputado federal em inúmeras legislaturas, de 1912 a 1926. Vice-presidente da Câmara dos Deputados em 1926, foi convidado pelo presidente Washington Luís para gerir a pasta das Relações Exteriores.
Com a vitória da Revolução desencadeada no país em 1930, Octávio Mangabeira foi exilado, passando a residir nos Estados Unidos, onde muito trabalhou para manter-se. Anistiado, regressou ao Brasil em 1945, passando a pertencer a um novo partido que surgia: União Democrática Nacional. Pela legenda desse partido, foi de novo eleito para a Câmara Federal, em 1946, pelo Estado da Bahia.
Em 1947, foi eleito governador do Estado da Bahia, tendo realizado um dos períodos governamentais mais calmos daquele Estado, efetivando ampla série de obras na capital e no interior. Permaneceu no Palácio da Aclamação até o fim do seu quatriênio, por isso ficou sem mandato popular de 1950 a 1954.
Eleito senador em 1958, já aos 72 anos, vindo a falecer durante o mandato.Academia Brasileira de Letras – 29/07/2016.
Otavio Mangabeira por Divaldo Franco do livro:
Luzes do Alvorecer / Espíritos diversos
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