A experiência de Catarino
Humberto de Campos
No inicio dos trabalhos psíquicos, presididos por Catarino Boaventura, surgiu certa entidade revelando singular carinho e trazendo cooperação interessante, que imprimia novo estímulo à tela viva de cada reunião. Fez-se conhecer pelo nome de Aquiles, que nenhum dos componentes do círculo conseguiu identificar. No entanto, apesar do anonimato, criou um vasto ambiente de simpatia, não pela cultura notável, mas pelo préstimo ativo que demonstrava. Impressionado o grupo, em vista das intervenções espetaculares, não houve mais ensejo para o estudo metódico da Doutrina.
Debalde o verdadeiro orientador espiritual exortou os companheiros, no sentido de renovarem sentimentos à luz do Evangelho do Cristo. Ninguém dava ouvidos à solicitação insistente. Em vão movimentou-se o mentor dedicado, provocando a vinda de irmãos esclarecidos, no propósito de modificar a situação. A assembléia não se interessava pelos aspectos elevados, que a nova fé lhe oferecia. Livros edificantes, jornais bem orientados, revistas educativas, eram relegados a plano secundário, como inúteis. A amizade de Aquiles representava a nota essencial do agrupamento. Todos os componentes da sessão costumeira recorriam aos seus bons ofícios, qual se fora ele um semideus.
A entidade prestativa não disseminava maus conselhos, nem menosprezava os princípios nobres da vida; contudo, subtraía aos amigos invigilantes a oportunidade de caminharem por si mesmos.
Participava de todos os negócios materiais dos companheiros. Opinava em casos particulares e problemas íntimos. Chamavam-lhe guia e diretor infalível.
Via-se, porém, que Catarino Boaventura assumira grande responsabilidade na situação algo confusa, porquanto, na qualidade de orientador encarnado, perdia-se frequentemente em questões e perguntas ociosas.
Os legítimos instrutores, em semelhante regime de leviandade doentia, aliada a forte preguiça mental, afastaram-se discretamente, pouco a pouco.
E Aquiles, parecendo menino bondoso e desajuizado, espécie de criadito diligente e humilde, continuou prestante aos trabalhos de qualquer natureza. Fortemente ligado a Catarino, por vigorosos laços magnéticos, não se sabia qual dos dois era mais leviano, no capítulo sagrado da responsabilidade individual.
Na residência dos Boaventuras, não se tentava solução de problema algum sem audiência do colaborador invisível.
O chefe da família jamais se cansava de interrogações e consultas. Frequentemente repetiam-se entendimentos deste jaez:
– Meu irmão, que nos diz relativamente ao meu projeto de sociedade comercial com o Morais e Silva?
– Referes-te ao projeto da fábrica de doces? – indagava o Espírito, demonstrando bondade fraternal.
– Isso mesmo.
– Espera. Estudarei detidamente o assunto.
Dai a minutos, regressava Aquiles informando:
– É inconveniente o negócio. Morais e Silva não é homem de boas intenções. Não possui capital suficiente e pretende lançar empréstimo fraudulento em casa bancária. Aceitar-lhe a companhia constituirá erro grave.
Catarino não fazia valer as razões nobres da vida, que mandam alijar intrigas e esclarecer intrigantes, no mecanismo das relações usuais, e, olhos vivazes, agradecia:
– Ainda bem, Aquiles, que tive tua cooperação desinteressada. Obrigado, amigo. Amanhã tomarei providências indispensáveis, compelindo o malandro a desembaraçar o caminho.
No dia imediato, desfaziam-se os projetos, sem motivos justos. O quadro das oportunidades de trabalho surgia diariamente, mas o comunicante, instado pelo companheiro, destacava sempre as dificuldades e impedimentos. Se observava pessoas, comentava-lhes os defeitos; se examinava situações, expunha as zonas vulneráveis.
– Que me ordenas hoje, irmão? – perguntava Aquiles, zeloso.
– Faço questão que te fixes no caso, trazendo informes detalhados e francos.
Queres conhecer os obstáculos existentes?
– Sim, preciso me mostres o lado obscuro, a fim de agir em confiança perfeita.
E, em todas as situações, obedecia o emissário, cegamente.
O menor problema era considerado com esse critério de relevo à sombra, com esquecimento das probabilidades de luz.
Enquanto passava o tempo, cresciam as demonstrações de preguiça mental. Aquiles parecia alimentar-se dos fluidos magnéticos de Catarino, e este, a seu turno, revelava-se cada vez mais dependente do companheiro espiritual. E tão enredada ficou a família Boaventura, no temor das pessoas e situações, que o dono da casa foi compelido a colocar-se em modesta condição de representante de várias instituições comerciais, para que não faltasse o pão cotidiano.
Todas as noites, porém, reunia-se o grupinho, reincidindo o dirigente da sessão nas perguntas invariáveis.
– Aquiles, concordas comigo relativamente à viagem de amanhã?
– Perfeitamente – respondia incorporado à médium –, aquele bairro é futuroso e rico. Visitei-o ontem à noite, conforme determinaste, e posso dizer que o volume de negócios é dos mais promissores.
Catarino agradecia, solícito, e, feita a viagem inicial, recomeçava na sessão imediata:
– Terminando as atividades atuais, tenciono visitar a cidade a que nos referimos a semana passada.
Desejaria, meu irmão, que trouxesses informações exatas, para saber se serei bem ou mal sucedido.
Aquiles prometia esforçar-se e, vindo a noite, opinava:
Não convém tentar o plano formulado. A cidade é pequena e pobre, o jogo dos interesses ali predominantes não oferece oportunidades lucrativas. A população vive de produtos agrícolas, mas, dada a incerteza da colheita, vários estabelecimentos comerciais se aproximam da falência.
– Agradeço-te, amado guia – falava o diretor da reunião extremamente sensibilizado –, encontro em ti meu apoio diário.
E não satisfeito com a incúria própria, Catarino fazia ativa propaganda dos méritos de Aquiles. Nunca mais se referiu aos mentores sábios que costumavam cooperar nas reuniões doutro tempo, trazendo exortações sérias e estímulos preciosos ao estudo das grandes leis da vida.
Preferia o mensageiro que lhe obedecia às ordens caprichosas. Afeiçoados, vizinhos e conhecidos vinham pressurosos associar-se-lhe à atitude negativa. Aquiles atendia as mais estranhas consultas, tornando-se respeitado qual figura miraculosa.
Mas, com o correr inflexível do tempo, Catarino Boaventura acabou entregando o corpo à terra.
Qual não foi, porém, a surpresa que teve, quando, ao entrar em contacto direto com o plano espiritual, divisou lado a lado o comunicante das sessões terrestres!
Uma figura comum, sem qualquer expressão notável que o tornasse digno de veneração. O antigo diretor da reunião estava perplexo. Na cegueira espiritual em que se envolvera no mundo, presumia no amigo obediente qualidades excepcionais de condutor. Aquiles, todavia, aproximou-se humildemente e perguntou:
– Ainda bem que te encontro, meu velho amigo!
Quais são as tuas ordens, agora?
– Ordens? – indagou Catarino, aterrado – pois não és nosso guia e orientador?
– Não tanto assim – explicou o interpelado –, designaram-me para cooperar em tuas atividades na Terra e, desde então, trabalhando exclusivamente a teu mando, não tenho outra preocupação senão obedecer-te.
– Não te encontras, acaso, em permanente comunicação com aqueles que te designaram? – perguntou o recém-desencarnado ansioso de auxílios novos.
– Fui ajudar-te, comprometendo-me a não cessar o intercâmbio com esse amigo generoso que me acolheu e proporcionou trabalho nas tuas reuniões – esclareceu o cooperador humilde –, no entanto, davas-me tantas preocupações e tantos encargos sobre pessoas, negócios, vilas e bairros diferentes, que, quando tentei receber novas instruções, não mais achei o caminho. Sentindo-me só, tratei de unir-me mais e mais contigo e acreditei dever esperar-te, já que me prendeste tanto em tua própria senda.
Catarino experimentou a surpresa angustiosa de quem encontra o fundo do abismo.
Somente aí, compreendeu que os ignorantes não permanecem exclusivamente na Terra e que o pobre Aquiles não passava de servo confiante da indolência que lhe assinalara a última experiência terrestre.
Movimentando-se tardiamente, inclinou o companheiro a meditar na gravidade da situarão e, à maneira de bandeirantes da sombra, puseram-se a caminho, das trevas para a luz. A jornada penosa realizava-se à custa de lágrimas e desenganos. Quanto tempo durou a procura de uma voz abençoada que lhes ensinasse a saída do labirinto imprevisto? Não poderiam responder.
Chegou, todavia, o momento em que Boaventura sentiu a presença de generoso amigo ao lado de ambos.
Bradou o reconhecimento que lhe vibrava no coração, quis ajoelhar, oscular os pés do mensageiro que lhes vinha ao encontro. Não pôde, contudo, fixar o emissário, mas a voz que os cercava ergueu-se brandamente e fez-se ouvir com emoção:
– Catarino, Jesus nunca desampara os que se propõem firmemente à retificação.
Reconheces, agora, que a vida em todo plano da Natureza pede esforço, trabalho, compreensão.
Como pudeste acreditar que Deus ligasse a esfera visível à invisível, na Terra, tão-só para subtrair o homem aos problemas e labores necessários? Cada dia, no mundo, levava-te ao coração abundante celeiro de oportunidades que nunca soubeste aproveitar.
Aprendeste que os desencarnados são igualmente trabalhadores e nem sempre são missionários iluminados e redimidos. Quando a Providência permitiu que se encontrassem os irmãos de uma e outra esfera, não foi para estabelecer inércia e sim desenvolver, mais intensamente, a cooperação, a fraternidade e o espírito de serviço. Uns e outros são portadores de necessidades e problemas próprios, que a diligência e o amor recíprocos podem resolver. Entretanto, transformaste o pobre Aquiles em muleta dos teus aleijões mentais. Fugiste aos problemas, abandonaste o trabalho, renunciaste às possibilidades que o Senhor do Universo depositou em teus caminhos!...
Calando-se a voz por momentos, Boaventura implorou, afogado em pranto:
– Dai-me um guia por amor de Deus!...
– Um guia? – perguntou o mentor invisível para quê? De que modo caminharás neste plano, se não quiseste aprender a caminhar nas estradas do Globo?
Não posso atender-te agora ao desejo; todavia, Jesus não te deixará ao desamparo...
Vamos, segue-me! Regressarás à Terra para aprender que desencarnados e encarnados têm realizações que precisam efetuar conjuntamente. Não desdenhes o desenvolvimento das faculdades próprias! Vamos, Catarino, e não esqueças nunca que a dificuldade, a luta, o obstáculo e o sofrimento são guias preciosos que ninguém poderá dispensar na marcha para Deus.
E Boaventura, de mãos dadas com Aquiles, por sua vez perplexo, seguiu, cambaleando, a grande luz que rompia as sombras, voltando ao mesmo lugar donde viera, a fim de recomeçar a lição da vida.
Humberto de Campos por Chico Xavier do Livro: Reportagens de Além-Túmulo
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