Clara
Hilário Silva
I
Zeferino olhava, olhava... Tudo em derredor fazia pensar. Pensar no passado, voltar aos anos esquecidos...
Quarto penumbrento. Piso de tijolos, manchado e sujo. Cheiro de perfume e mofo.
Pia descascada a um canto. Roupas humildes dependuradas em mancebo de pés quebrados. Pequena mesa com gaveta entreaberta, mostrando grande cópia de objetos miúdos. Em mesa próxima, sobre o forro pisado, podia ver no lusco-fusco várias caixinhas de cosméticos, vidros de água de colônia, pó de arroz, escovas...
Retratos pendendo de parede defronte.
E, sob a lâmpada de poucas velas, os olhos de Zeferino pervagavam no espaço estreito, recordando, recordando...
II
Como se lembrava!...
O convite partira do dono da casa, seu velho amigo Nicão: “Vamos! Você nunca observou um fenômeno mediúnico... Vamos!”
Tentara esquivar-se, mas a insistência afetuosa vencera : "Vamos, você fará uma ideia...
Minha esposa é médium... Será interessante!”
E lá se fora pela primeira vez. E pela primeira vez ouviu a palavra de Felício, o amigo espiritual infatigável, através da jovem esposa de Nicão. Dona Clara, a médium, em seus vinte anos incompletos, era moça inteligente e afável. Incorporando a personalidade de Felício, fornecera-lhe tamanhas demonstrações da sobrevivência, além da morte, que ele não pudera resistir à verdade. E o grupo, mais unido, passou a reunir-se duas vezes por semana. União e alegria. Trabalho e fraternidade.
Fora, ali, na singela residência de Nicão, que nascera realmente o templo espírita em que ele viu a razão da própria existência.
Recordava a inauguração da sede.
A felicidade transbordava como sol.
D. Clara pedira a construção de dois aposentos anexos à parte dos fundos. “Seria a semente de um albergue maior” – dissera, sorrindo. E ali, a casa recebera os primeiros enfermos da rua. Dois quartos, em que ele e os companheiros exercitavam a caridade, ao pé dos sofredores anônimos, aplicando socorros magnéticos e lavando feridas.
Depois, quando o templo ainda não completava dois anos, Nicão desencarnou de repente.
A princípio, D. Clara sustentou-se, mas, após alguns meses de solidão, ela, que não tivera filhos, desertou da obra espiritual.
Se procuravam por ela para a reunião, estava esgotada, temia o mau tempo, ia receber um parente ou tinha dor de cabeça.
A moradia, dantes calma, dava festas inconvenientes, enchendo-se de rapazes e moças alegres.
Ele, Zeferino, e os irmãos de ideal compreenderam tudo, por fim...
III
Há quanto tempo acontecera isso?...
Respondia-lhe a memória : “vinte anos! vinte anos!...”
Quantos acontecimentos, após a fundação!
Sentado no tamborete capenga, rememorava os seus vinte e tantos anos de conhecimento espírita!...
Primeiros livros. Primeiras responsabilidades. Primeiros contatos da própria família com a Doutrina Espírita. Primeiros sintomas da própria mediunidade... O primeiro passe que administrou, em prece e lágrimas... O templo progredindo... Novos cooperadores. Novas
experiências. A compreensão melhor do povo, a família de Jesus. Lutas. Dificuldades.
Amadurecimento da fé. Certeza no “Mundo de Lá”. Gratidão aos princípios renovadores...
Mergulhando em reflexão, notou que alguém chegava... Era uma senhora de olhar desconfiado e humilde, mostrando lábios e cabelos pintados, a esconder um cigarro na
mão fincada às costas.
– O senhor acha que Clarita melhora? – perguntou.
– Quem sabe? – respondeu Zeferino – confiemos em Deus.
Mas a conversa não prosseguiu porque alguns companheiros entraram carregando velha maca.
Zeferino levantou-se.
Penetrou o quarto em que D. Clara agonizava... No corpo que a tuberculose aniquilara, só os olhos faziam lembrar a antiga Dona Clara...
Ossos pontudos punham o esqueleto à mostra.
A doente trazia a garganta sufocada pela dispneia, mas a imensa lucidez do olhar falava de seu profundo reconhecimento aos amigos.
IV
A maca, em que colocaram a enferma, atravessou várias ruas, sob a curiosidade popular.
Por fim, o cortejo parou no pátio interno do templo espírita, à porta do abrigo que Dona Clara mandara construir em outro tempo.
Senhoras acolheram-na com bondade. Vários irmãos surgiam, prestimosos.
Cícero Pontes, presidente do conselho da instituição, chamou Zeferino à parte e falou baixinho:
– Mas escute... Esta mulher aqui...
Zeferino, porém, respondeu decidido:
– Esta mulher tem que ficar aqui mesmo...
Esta mulher foi a esposa de Nicão... Você ou eu podíamos estar no lugar dele e tanto minha esposa quanto a sua podiam estar no lugar dela... Vamos dar graças a Deus de poder ajudar. Ela veio para a casa que ela própria construiu. Está no que é dela.
E, quando assim não fosse, tem mais direito ao templo do que nós, por ser mais sofredora. Jesus não veio para curar os sãos...
– Mas, mesmo na Doutrina... – tornou Pontes, reticencioso.
– Doutrina é luz de Deus, mediunidade é trabalho dos homens – replicou Zeferino, sereno.
– A cidade inteira sabe que Dona Clara errou, todos sabemos que ela abandonou os seus deveres, mas é nossa irmã e a nossa obrigação é estender-lhe os braços...
V
Alguém chegou, procurando por Zeferino e Pontes. O médico, que haviam chamado, queria conversar.
O facultativo anunciou que nada tinha a fazer.
A doente estava no fim...
A comunidade, expectante, cercava o leito.
Dona Clara, envolvida em lençóis muito brancos, denunciava extrema lucidez nos grandes olhos.
Sim, tudo em torno despertava saudade! O aposento guardava as mesmas disposições de sua escolha. As paredes cor-de-rosa. A janela ampla trazendo o ar perfumado das laranjeiras. Na mesa pequena, que ela própria comprara vinte anos antes, estavam as flores com que ela e Nicão esperavam pelos doentes...
D. Amália, uma das irmãs da primeira hora, conhecia-lhe os amigos e tudo fizera para que a enferma se sentisse à vontade.
A agonizante inteiriçou-se.
Alguém pediu a oração.
D. Amália cochichou aos ouvidos de Zeferino, informando que Dona Clara e Nicão estimavam fazer juntos a prece de Caritas, nas ocasiões difíceis.
E Zeferino, de pé e cabeça erguida, orou em voz alta:
“Deus, Nosso Pai, que tendes poder e bondade, dai força àquele que passa pela provação, dai luz àquele que procura a verdade, ponde no coração do homem a compaixão e a caridade.
Deus, dai ao viajor a estrela guia, ao aflito a consolação, ao doente, o repouso.
Pai! dai ao culpado o arrependimento, ao espírito a verdade, à criança o guia, ao órfão o pai.
Senhor, que a vossa bondade se estenda sobre tudo o que criastes.
Piedade, Senhor, para aquele que vos não conhece, esperança para aquele que sofre.
Que vossa bondade permita aos Espíritos consoladores derramarem, por toda parte, a paz, a esperança e a fé.
Deus! um raio, um,a faísca do vosso amor pode abrasar a Terra; deixai-nos beber nas fontes dessa bondade fecunda e infinita, e todas as lágrimas secarão, todas as dores se acalmarão; um só coração, um só pensamento subirá até vós, como um grito de reconhecimento e de amor.
Como Moisés, sobre a montanha, nós vos esperamos com os braços abertos, oh! poder, oh! bondade, oh! beleza, oh! perfeição, e queremos, de alguma sorte, alcançar a vossa misericórdia.
Deus, dai-nos força de ajudar o progresso, a fim de subirmos até vós! dai-nos a caridade pura, dai--nos a fé e a razão, dai-nos a simplicidade que fará das nossas almas o espelho que possa refletir a vossa imagem. Assim seja.”
Os circunstantes choravam...
Dona Clara tinha a face coberta de palidez indefinível, como se fosse clareada por diferente luz.
Pouco a pouco, o peito asserenou-se.
Todos pensavam em Nicão e decerto que o Espírito amigo e generoso estava presente, mas todos fixavam o semblante da morta, no qual se estampara fundo vinco de amargura e arrependimento, enquanto dos olhos embaciados e tristes manavam grossas lágrimas...
Hilário Silva do livro: Almas em desfile de Chico Xavier e Waldo Vieira
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