A derradeira mágica de Houdini
Hermínio C. Miranda
A geração que encontrou o Espiritismo já estabelecido e consolidado e, senão aceito pela sociedade como um todo, pelo menos tratado com respeito, não faz ideia da virulência da campanha desencadeada contra ele até às primeiras décadas do século vinte. Não que tenha cessado o movimento contestador, dado que, tal como nas tempestades de verão, ainda se ouve, a distância, o abafado rugido de esparsos trovões, esvaziados, contudo, da força fulminante do raio, ora desabando sobre outras cabeças. A cólera irracional está sempre em busca de motivação e objetivo para expressar-se.
Para o Espiritismo, como fenomenologia, é costume tomar-se - arbitrariamente, a meu juízo - uma data: 31 de março de 1848, marcada com as fanfarras da publicidade da época, pelos fenômenos de Hydesville, nos Estados Unidos. Já o Espiritismo como doutrina, tem historicamente, inquestionável marco: 18 de abril de 1857, - quando foi lançado em Paris, O Livro dos Espíritos, de responsabilidade do professor Rivail, que assinou o seu estudo com um pseudônimo que se tornaria mundialmente famoso: Allan Kardec.
Deixe-me o leitor explicar por que considero arbitrário o 31 de março de 1848, como marco zero do chamado espiritualismo moderno. É que a fenomenologia espírita, ou melhor, mediúnica, sempre existiu, desde que o primeiro ser humano vislumbrou contra a parede da sua caverna o vulto efêmero do primeiro fantasma. Referências a diferentes modalidades de manifestação, regulares ou episódicas, encontramos frequentemente nos mais remotos documentos históricos, dos quais a Bíblia é dos mais conspícuos exemplos.
Se, porém, os fenômenos de Hydesville nada têm de espetaculares, não há dúvida de que tenham contribuído para colocar a questão nas manchetes do florescente jornalismo da época, provocando, por via de consequência, inesperada onda de rejeição, em paralelo com inusitado movimento de curiosidade. Nem um surto maligno de peste teria suscitado tamanha reação de desespero. Era preciso liquidar logo e para sempre aquele vírus terrível que se alastrava velozmente por todo o mundo civilizado, contaminando com a alucinada crença em espíritos, mentes até então tidas e havidas como normais e sadias.
Dada a partida, foi o que se viu: cão danado, todos a ele! Todo mundo queria tomar parte ativa na vigorosa cruzada cívico-religiosa contra o inimigo comum. Eram sacerdotes das diversas denominações, cristãos ou não, jornalistas, médicos, escritores, professores e artistas, possuídos de genuína fúria contra o que parecia ser o adversário do "establishment", a distribuir ataques de toda sorte. Alguns porque acreditavam honestamente nas suas descrenças, outros porque se aquilo fosse mesmo verdadeiro, seria um Deus nos acuda de imprevisíveis consequências para os seus arrumadinhos e limitados universos de ideias pessoais. Um terceiro grupo porque via toda gente de pedra na mão a perseguir o cão e tomava parte no alarido, sem saber ao certo o que estava fazendo. Houve até quem começasse a jogar pedra e acabasse levando pedrada, porque se convenceu de que, ao contrário do que muitos pensavam, o cão nada tinha de danado. Bastava, porém, dizer que se aceitava a realidade daqueles estranhos fenômenos para se ficar exposto à execração pública. Acreditar naquilo era sinal de debilidade mental, de perturbação, de ingenuidade, de má fé ou de clara e irrecuperável burrice, quando não de declarada com pactuação com o demônio, ainda em grande voga por aqueles tempos. Os ataques vinham de todo lado, qualquer arma servia, mesmo a calúnia, a mentira deslavada ou a meia-verdade maliciosa. Alguns desses adversários ferrenhos eram leais e estavam convictos de sua verdadezinha pessoal, que não conferia com a outra que os fenômenos indicavam. Outros apelavam para as sutilezas do sofisma, pelo simples prazer do debate. Uns poucos deles eram abertamente fanáticos e não se importavam o mínimo com os processos utilizados, desde que a nefasta e incômoda realidade que os fenômenos demonstravam fosse não apenas ignorada, mas rejeitada para sempre, como lamentável equívoco.
Um dos mais obstinados adversários do Espiritismo nesse período (fins do século XIX, princípio do século XX), foi Houdini. Dos seus livros sobre o espinhoso assunto, conheço apenas A Magician among the Spirits, isto é, Um Mágico entre os Espíritos. Não se trata de mera exposição de suas ideias sobre o espiritismo, é um libelo, a despeito de suas amaciadoras declarações iniciais, nas quais se confessava prazerosamente disposto a abraçar o Espiritismo "se fosse possível comprovar suas alegações". Encerra seu breve prefácio, declarando acreditar no Além e que nenhuma bênção maior poderia ser-lhe concedida senão a "oportunidade de falar de novo com a minha santa mãe, que está à minha espera, com os braços abertos para estreitar-me junto ao seu coração, num gesto de boas-vindas, tanto quanto o fez quando eu fui admitido a esta esfera mundana".
Aliás, o livro traz no seu pórtico, a dramática declaração à sua mãe, que ele, de fato, idolatrava. "Se Deus, na sua infinita sabedoria - escreve - jamais enviou um anjo à Terra em forma humana, foi minha mãe".
Não consigo apreender, em todas as suas implicações, que motivos teria Houdini em mente ao escrever esse livro, no qual atirava todo o poso de sua fama internacional e de seu prestígio entre eminentes. personalidades da sociedade, para arrasar furiosamente o Espiritismo. Na realidade, ele não dirige seu ataque contra as estruturas doutrinárias do Espiritismo, que deveria conhecer razoavelmente bem, dado que declara ter, à época, a mais completa coleção de livros sobre o assunto. Embora não mencione nenhum autor, é de supor-se que dispusesse também de livros de Kardec, Léon Denis e outros. Sua fúria concentra-se sobre o fenômeno mediúnico ou, mais explicitamente, sobre os médiuns em geral e ele não distingue, nem faz questão de distinguir médiuns autênticos de fraudulentos, simplesmente porque todos são, para ele, refinados patifes.
Para sermos absolutamente honestos, é preciso acrescentar que, em verdade, faltou, de início, ao nascente movimento espiritualista uma estrutura doutrinária confiável, que servisse de apojo à fenomenologia que explodia por toda parte. Ainda hoje, cerca de um século depois, o espiritualismo desenvolvido em paralelo com o Espiritismo codificado por Allan Kardec, ressente-se de um bem formulado corpo doutrinário. Os que se dedicavam à profissionalização da mediunidade, nos Estados Unidos e na Europa, não se sentiram atraídos pelo estudo regular da Doutrina dos Espíritos coligida por Kardec, a partir de 1857. O interesse dessa corrente cingia-se à produção dos fenômenos, reduzidos praticamente à condição de números de palco, e, portanto, como mercadoria, ao passo que, na Codificação, a ênfase foi posta claramente nos aspectos ético-filosóficos, dos quais os fenômenos eram simples sustentação evidencial.
As singelas e, no entanto, dramáticas ocorrências mediúnicas de Hydesville provocaram verdadeira celeuma e desencadearam açodada corrida para o insólito, que começou logo, não somente a atrair muitos aventureiros dispostos a "faturar" a novidade, em grande demanda pública, mas também, a transviar médiuns autênticos, que se voltavam avidamente para a mercantilização de suas faculdades.
Foi o que aconteceu, por exemplo, às irmãs Fox, iniciadoras do movimento. Dominadas por irmã bem mais velha, as duas médiuns adolescentes embarcaram numa aventura comercial, exibindo-se por toda parte a tantos dólares por entrada, em espetáculos públicos. Como os espíritas sérios não se prestam a esse tipo de manipulação, elas ficaram entregues aos seus próprios recursos e se desmoralizaram lamentavelmente, produzindo confissões de fraude e retratações, ambas de credibilidade zero. Acabaram constituindo prato cheio para os adversários do Espiritismo.
Houdini procurou tirar proveito desse caótico estado de coisas, a fim de substanciar suas ideias, no intenso e vigoroso combate que moveu ao Espiritismo. Acresce que ele era, indisputavelmente, o maior ilusionista de seu tempo, dotado de talento insuperável para essa dificílima arte, que consiste em divertir o público com inteligentes truques e artifícios criativos e competentes, no que ele foi inimitável. Eram tão audaciosas e fantásticas suas proezas que seu amigo sir Arthur Conan Doyle escreveu-lhe, certa vez, este curto e alarmado bilhete: "Meu Houdini, pelo amor de Deus! Tenha cuidado com esses perigosos truques seus; você já os fez em quantidade suficiente. Falo porque acabo de ler sobre a morte da "Mosca Humana". Será que isso vale a pena? Sinceramente seu, A. Conan Doyle".
A "Mosca Humana" era certo Harry F. Young, que caiu do décimo andar do Hotel Martinique, em Nova York, ao exibir-se em um dos seus arriscados números.
Seja como for, Houdini emprestou todo o seu espírito a uma das mais virulentas campanhas contra o Espiritismo. Era moda então - o que, de certa forma, persiste em alguns setores culturais contemporâneos - declarar-se adversário do Espiritismo, ou ateu. Era de bom tom, elegante e inteligente proclamar abertamente total desprezo por aquela ridícula "tapeação" conhecida pelo nome de mediunidade.
A posição de Houdini é a de um mágico que se julgava muito mais qualificado para opinar sobre os fenômenos físicos da mediunidade do que os mais eminentes cientistas de seu tempo. Aliás, ele não faz segredo nenhum disso, como se lê na introdução de seu livro:
- Não considero nem Sir Arthur Conan Doyle nem Sir Oliver Lodge como juízes seguros, cuja opinião deva ser aceita neste importante e difícil assunto, em vista das perdas sofridas (de entes queridos) e seus desejos inconscientes. Se é que o desejo é o pai do pensamento, é a mãe da alucinação dos sentidos.
No entender de Houdini, a tarefa da investigação científica jamais deveria ser confiada a pessoas como Doyle, Crookes ou Lodge e sim "a homens que não se deixem envolver ou influenciar por luzes amortecidas ou estranhos e misteriosos sons; homens que usam suas faculdades racionais, dádivas de Deus, melhor que possam; homens cuja atenção não seja desviada pelo médium; homens cuja células cerebrais sejam versáteis e não superdesenvolvidas em um único sentido particular, homens que possam fixar sua atenção rigorosamente na tarefa do momento e não se deixarem levar pela vazia loquacidade diversionista do médium. Só assim teremos uma investigação real e o mundo, como um todo, se beneficiará."
Em outras palavras, era preciso gente melhor do que aqueles cientistas famosos e escritores geniais. Era preciso gente como Houdini.
Assim, a obra de Houdini, constante de quase 300 páginas, é um maciço ataque à mediunidade, especialmente a de efeitos físicos. Sua atenção volta-se, basicamente, para os Irmãos Davenport, Daniel D. Home, Henry Slade e outros médiuns famosos da época, alguns dos quais ele examinou pessoalmente. Um capítulo especial cuida de Sir Arthur Conan Doyle, sobre o qual diremos algo mais adiante.
De modo geral, pode-se afirmar que Houdini escolheu bem os médiuns sobre os quais discorre. Quase todos, incorrem na grave responsabilidade da comercialização de suas faculdades, ostensiva ou indiretamente.
As irmãs Fox acabaram em desastrosas condições, a despeito dos esforços do dr. Kane para salvar Margareth, com quem havia se casado. Ela morreu em 1895, pobre, praticamente abandonada, entregue ao alcoolismo. Tudo fora muito bem, aparentemente, enquanto conseguiam arrecadar de 100 a 150 dólares por noite, gerenciadas pela irmã mais velha.
O caso Davenport é algo complexo e não pode ser liquidado em poucas palavras. Como todo assunto processado através de acirradas controvérsias, são muitas as dificuldades de se conseguir julgamento confiável sobre eles. Houdini, como vimos, trata-os como ilusionistas e os respeita como tal, após convencer-se de que eles não tentaram passar por médiuns, dado que a palavra médium acarretava-lhe verdadeira alergia mental.
Harry Price despacha-os em sumárias palavras, dizendo que "pouco espaço precisava desperdiçar em 'médiuns' de vaudeville como os Davenport" e outros que menciona. Na opinião de Price, "escassa dúvida persiste acerca do tipo de diversão que eles exibiam como sendo algo mais de concentrada trucagem".
Lewis Spence os caracteriza como "dois médiuns americanos" que alcançaram grande fama e convenceram muita gente de suas faculdades. Arthur Conan Doyle, no capítulo a eles dedicado em sua História do Espiritismo, embora reconhecendo que eles "trabalharam em nível muito mais baixo que Home", lamenta que tenham profissionalizado "seus notáveis dons", declarando que a mediunidade de efeitos físicos, na família Davenport, começou muito cedo, em 1846, antes mesmo dos fenômenos suscitados pelas Fox, em Hydesville, muito mais bafejados, aliás, pela publicidade.
Com apoio na biografia dos dois, escrita por T. L. Nichols, Sir Arthur descreve demonstrações mediúnicas tidas por genuínas e testemunhadas por gente responsável. Recorre a transcrições da imprensa da época da estada desses médiuns na Inglaterra, destacando-se que, excepcionalmente, as reportagens foram completas e corretas. O criador de Sherlock Holmes viveu às turras com a imprensa por causa do tratamento usualmente irresponsável dado ao Espiritismo.
- É triste verificar que os Davenport, talvez os maiores médiuns do gênero que o mundo tenha visto - escreve Sir Arthur - sofressem, durante toda a vida, oposição e perseguição brutais; em muitas ocasiões, suas vidas estiveram até em perigo.
É verdade. Mas entre as enfáticas negações de Price e Houdini e a entusiástica apologia de sir Arthur, prefiro ficar com o proverbial bom senso e a elegância de Allan Kardec, que escreveu na Revue Spirite sóbria matéria acerca do delicado assunto, em outubro de 1865 e em setembro de 1866.
Referindo-se aos dois irmãos com o respeito que lhes era devido e até lamentando o incidente desagradável ocorrido na primeira apresentação pública, em Paris, quando alguém saltou no palco e os denunciou como charlatães, Kardec procura preservar a posição do Espiritismo, que nada tinha, como doutrina, a ver com aquilo, que era de estrita responsabilidade dos Davenport.
Sem muito comentário, menciona o fato de haver sido procurado por alguém, da parte dos irmãos, com a finalidade de obter dele, Kardec, apoio para os jovens apresentadores, o que, obviamente, recusou. Não podia comprometer-se com nenhum juízo antecipado, sem conhecimento de causa. Mesmo os médiuns confiáveis e integrados no movimento de então, eram tratados com sobriedade e sem publicidade.
-...sabe-se - escreve Kardec - que não nos entusiasmamos facilmente, mesmo pelas coisas que conhecemos e, com mais forte razão, pelas que não conhecemos.
Extraordinária personalidade a de Kardec! Até da polêmica criada em torno dos Davenport procura tirar proveito, ao declarar que ela oferecia "vários pontos instrutivos", que passa a examinar. Por exemplo: eram ou não eram médiuns os Davenport? Kardec não se propõe a resolver o assunto, sim ou não, como de seu hábito, porque não examinara pessoalmente o trabalho dos famosos irmãos. Apresentava, contudo, sério reparo, em razão da "pontualidade com que se produzem os fenômenos, em dias e horas certos e à vontade". O que se sabia da natureza dos Espíritos, entrava em choque com esse procedimento. A produção repetida de fenômenos desse tipo, "em princípio, deve ser considerada como de legitimidade suspeita, mesmo em caso de desinteresse". (O destaque é do original).
Extraímos desse longo estudo, um período que resume a nítida postura de Kardec, no caso:
- Não julgamos os srs. Davenport e longe de nós por em dúvida a honorabilidade deles. Mas, à parte as qualidades morais, das quais não temos nenhum motivo de suspeita, é preciso confessar que eles se apresentam em condições pouco favoráveis para creditar-se o título de médiuns, e que é ao menos uma grande leviandade que certos críticos se apressaram em os qualificar de apóstolos e sumo sacerdotes da doutrina. O objetivo de sua viagem à Europa está claramente definido nesta passagem de sua biografia.
Segue-se a transcrição de um texto que informa viajarem os Davenport sempre em companhia de certo sr. Palmer, empresário e agente de negócios, na área do que hoje se chamaria "show business".
Essa é a maneira correta, educada e competente de tratar o assunto, preservando, ao mesmo tempo, a posição do Espiritismo, como movimento e como doutrina. É até possível que os Davenport dispusessem realmente de faculdades mediúnicas, mesmo àquela altura, em que já haviam passado à condição de artistas de palco, nobre profissão, como qualquer outra igualmente honesta. Espiritismo porém é outra coisa.
Houdini chegou a conhecer pessoalmente Ira Davenport, já bastante idoso e aposentado, que lhe teria ensinado o truque da corda, ou seja, de que maneira conseguiam, ele e o irmão, soltar-se dos nós, fazer o que tinham a fazer para mistificar os fenômenos e, depois, amarrarem-se novamente.
Em carta de 19 de janeiro de 1909, a Houdini, Ira declarava:
- ...Jamais afirmamos em público nossa crença no Espiritismo, o que considerávamos não ser da conta do publico, nem apresentávamos nosso número como resultado do ilusionismo, nem, por outro lado, como Espiritismo. Deixávamos nossos amigos e adversários decifrarem por si mesmos entre si, da melhor maneira possível. (O destaque é meu).
O que se depreende desse texto, reproduzido em fac-símile no livro de Houdini, é que os Davenport não dizem que eram nem que não eram adeptos do Espiritismo. Isso, no entender deles, não era da conta do público. Que cada um formulasse suas próprias conclusões. A posição era cômoda por várias razões. Se se declarassem meros ilusionistas, subtrairiam do espetáculo muito do seu charme e mistério; se se proclamassem espíritas, teriam a hostilidade de larga parte dos espectadores e, talvez, da imprensa. Como o objetivo deles era faturar o máximo possível (tinham até empresário), que cada um ficasse com suas próprias conclusões. Como se percebe, contudo, Ira preferiu evadir o problema, sem afirmar, positivamente, sua crença no Espiritismo. Não há dúvida, porém, de que se pode perfeitamente inferir de suas palavras, que eles aceitavam os postulados básicos de sustentação da fenomenologia: "Jamais afirmamos em público nossa crença no Espiritismo", declarou. A frase é dúbia, concordamos, mas pode ser também tomada como afirmativa da adesão aos postulados espíritas.
Quanto a Dunglas Home, até investigadores severos como o Prof. Dingwall, na introdução ao livro de Podmore, considera "o enigma do século". Podmore, por sua vez, nesse mesmo livro, expõe assim sua opinião:
- Antes de proceder com a consideração das manifestações físicas, uma observação preliminar deve ser feita. Home nunca foi publicamente exposto como impostor; não há qualquer evidência aceitável de que mesmo em reuniões privadas, tenha sido apanhado usando truques.
A despeito dessa respeitável opinião, Houdini considera Home um patife, como os demais médiuns de seu tempo.
- Sua carreira - escreve Houdini -, suas várias escapadas, e a causa direta de sua morte, tudo indica que ele viveu a vida de um hipócrita da pior espécie.
Sobre a questão da morte, cabe um esclarecimento que evidencia mais uma das lamentáveis posturas de Houdini. Depois de afirmar, em nota de rodapé, que são numerosas as versões acerca da morte de Home, Houdini opta pela alternativa oferecida por outra adversária contumaz do Espiritismo, a sra. Blavatsky, segundo a qual Home teria sido vitimado por uma doença da coluna "adquirida em consequência de seu intercâmbio com os 'espíritos' (assim mesmo, entre aspas), tendo morrido como perfeita ruína física". O texto, segundo Houdini, consta de Key to Theosophy, edição de 1890.
Acontece que Home sofreu, durante muitos anos, de persistente tuberculose pulmonar, doença que transmitiu à sua primeira esposa, que disso morreu, dado que, naquele tempo, era fatal, ainda que se pudesse, sob determinadas circunstâncias, adiar o desenlace.
Houdini, sempre implacável e nem sempre verdadeiro, menciona também, o muito citado problema pessoal do poeta Robert Browning com Home. Segundo Houdini, Browning, um tanto alarmado com o interesse de sua querida Elisabeth pelo Espiritismo - o que é verdadeiro - teria agarrado a cabeça materializada de um filho que o casal jamais tivera e, em lugar da cabeça, ao acenderem-se as luzes, tinha nas mãos, "o pé descalço de Mr. Home".
Não é verdade. Temos, a propósito, o testemunho insuspeito de Frederick W. H. Myers, que examinou cuidadosamente, como de seu hábito, o assunto. A informação de Myers consta, segundo Podmore, do Journal da SPR, julho de 1889 e assim figura no livro já citado de Podmore, página 230:
- O sr. Browning explicou pessoalmente ao sr. Myers que nunca apanhou Home em fraude e que a única e definitiva evidência que poderia exibir a favor de sua opinião de que Home era um impostor baseara-se em boato de segunda mão, de que Home fora surpreendido, na Itália, fazendo certas experiências com fósforo. Nenhum testemunho foi jamais apresentado de forma a confirmar, ainda que remotamente, em primeira mão, seu alegado desmascaramento nas Tulhérias.
Em suma, os testemunhos confiáveis de pessoas dignas nos asseguram que Home jamais foi apanhado em fraude, como desejava fazer crer Houdini. A Enciclopédia Britânica, reconhecidamente severa na avaliação de tais questões, considera Home "um enigma não solucionado", o que confere com a opinião, há pouco referida, do Prof. Dingwall.
Houdini explora, ainda, no seu capitulo sobre Home, o desagradável envolvimento do médium com uma viúva rica, por nome Jane Lyon, de 75 anos de idade. Esta senhora resolveu adotar Home - que chegou a assinar Home-Lyon, por algum tempo - e dar-lhe, de presente, em sucessivas oportunidades cerca de 60 mil libras esterlinas, importância considerável para a época. Em seguida, arrependeu-se da sua generosidade e exigiu o dinheiro de volta. O caso foi parar nos tribunais e, embora nada tenha sido apurado contra Home, quanto a qualquer tipo de pressão extorcionista de sua parte, o juiz condenou-o, mesmo a despeito de depoimentos altamente favoráveis de eminentes testemunhas de defesa, segundo se lê no livro de Jean Burton:
- ...decido contra ele porque, como acho que o Espiritismo é uma burla, sinto-me no dever de considerar a queixosa como vítima de uma trapaça e não há evidência que me convença do contrário.
A sentença, portanto, era contra o Espiritismo e não contra o médium. Estranho juiz esse, que condena ao arrepio das evidências que lhe foram exibidas e como ele próprio confessa, por escrito! Mas não é o único. Mais ou menos por essa época, o juiz Millet, em Paris, julgaria de maneira semelhante o caso do fotógrafo Buguet, ao qual acoplou, indevidamente, o insuspeito Leymarie, sucessor de Kardec na direção do movimento espírita em França. Ali também, o que estava em julgamento não eram as pessoas, mas o Espiritismo, mas como não havia como botar o movimento ou a doutrina espírita na cadeia, condenou-se Buguet, Leymarie e o médium Firman, como se pode ler de O Processo dos Espíritas, edição FEB, Rio.
O caso Dunglas Home é tratado com maior amplitude em artigo de minha autoria, intitulado "Um precursor esquecido: Daniel Dunglas Home", Em Reformador, abril de 1972.
Houdini explora bem a seu gosto, a fraqueza de Home pelas joias e sua penetração nas altas rodas da sociedade da época, realizando sessões mediúnicas - que Houdini considera mero trabalho de ilusionismo desonesto - para a nobreza europeia e até para figuras eminentes, como Napoleão III, o Czar russo e outras cabeças coroadas, Houdini não hesita em passar adiante a versão do suposto episódio que Home teria feito "desmaterializar" uma joia valiosíssima de esmeraldas, que teria sido encontrada posteriormente, no bolso do casaco do médium. "Pelo menos - acrescenta com um toque evidente de irresponsabilidade - essa foi a história que me contaram". Ou seja, ouviu dizer e não se preocupa com a veracidade da notícia que passa adiante.
Quanto a Eusápia Palladino, Houdini não faz por menos, considerando-a, logo de início, como uma "italiana (que) tem a seu crédito (débito, diria eu, como profissional da contabilidade), a bem sucedida tapeação de mais filósofos e cientistas do que qualquer outro médium conhecido".
Infelizmente, Eusápia realmente foi apanhada várias vezes em fraude, o que não invalida fenômenos produzidos repetidamente sob as mais severas condições de controle, na presença de gente do melhor nível intelectual e tecnocientífico. Nem Lombroso escapa às farpas de Houdini. Cometeu, o respeitável cientista italiano, o pecado supremo de declarar honestamente que não encontrou fraude em Eusápia. É conhecido o episódio em que Lombroso assistiu, perplexo, à materialização de sua mãe. Ridículo pensar que um homem de seu gabarito pudesse ser tão grosseiramente enganado na identificação da sua própria mãe, mas é o que diz Houdini, acrescentando: "alegou-se que sua mente havia enfraquecido consideravelmente". O mesmo testemunho de incompetência por causa da idade, é atribuído, por Houdini, em nota de rodapé, a Robert Dale Owen, a Robert Hare ao Prof. Challis, a Zöllner e Weber: "estavam todos nas proximidades do fim de suas vidas, quando aderiram ao Espiritismo", comenta ele. Podmore, que já conhecemos por sua severidade e imparcialidade, prefere concluir por um julgamento em suspenso em relação a Eusápia, devido à dificuldade em demonstrar que as medidas de segurança tenham sido suficientes para prevenir a fraude. Inclina-se, porém, pela rejeição da mediunidade da Palladino. Outros, como Richet, Lombroso, Flammarion e Sir Oliver Lodge, consideram genuína a faculdade mediúnica em Eusápia.
- ...exemplos de fraudes são meros incidentes na carreira de um médium verdadeiro, cujo desempenho anterior haja demonstrado, com clareza, no mundo material, estranhas e desconhecidas forças em operação. É o que se lê em Lewis Spence, como opinião de Lombroso, Richet, Flammarion e Lodge (Verbete Paladino, Eusápia, pág.314). O problema, como em tantos outros médiuns daquele período, como as Fox, Slade, os Davenport e outros, continua sendo a lamentável comercialização de faculdades autênticas, a princípio, e, depois, fraudadas por dinheiro, a fim de manter a "clientela". Não é essa a destinação, nem a função da mediunidade.
De certa Ann O'Delia Diss Debar, da qual jamais ouvira eu falar, parece que Houdini está razoavelmente certo na sua avaliação. A ser verdadeiro tudo quanto ele informa, a mulher foi lamentável mistificadora, sempre de olho no amplo ganho financeiro e envolvida em complexas aventuras internacionais que, por mais de uma vez, lhe teriam acarretado confrontos com a polícia e a justiça. Lendo Houdini, contudo, a gente fica sem saber se a mulher dispunha realmente de alguma faculdade mediúnica e acabou apelando para a fraude ou se era simples e acabada mistificadora. A opinião final de Houdini sobre ela reduz-se a mais de uma de suas violentas investidas contra o Espiritismo:
- Ao acolher esta mulher imoral - atira ele - o Espiritismo é culpado do mais grave procedimento e demonstra, conclusivamente, não ter condições de proteger sua própria gente das vilezas e imoralidades de médiuns, mesmo condenados criminalmente pela justiça.
E mais: - A reputação de Ann O'Delia Diss Debar foi tal que ela passou à história como grande criminosa. Ela não constitui honra alguma para o Espiritismo; nem honrou a qualquer povo ou país - foi uma dessas desajustadas morais que, vez por outra, parecem vir para o mundo. Melhor seria se ela houvesse morrido ao nascer do que ter vivido e difundido tanto mal como fez.
Não encontro referência alguma a Ann O'Delia em qualquer das inúmeras obras de que disponho sobre o assunto, nem mesmo no amplo e minucioso estudo de Podmore, em dois volumes. Serve ela, porém, ao nosso querido Houdini, de munição na sua obstinada guerrilha contra o Espiritismo. Ao que podemos depreender de seu texto, basta uma pessoa declarar-se médium para ser automaticamente "acolhida pelo Espiritismo".
Henry Slade é outro alvo preferencial de Houdini. Foi dos primeiros a produzir o fenômeno da escrita direta em ardósias, modalidade que Houdini caracteriza como "mais segura e mais fácil do que as fraudes (usuais) da escrita automática (psicografia), mensagens em transe ou por meio da trombeta, bem como da prancheta".
Com o cano da sua metralhadora giratória apontado para o prof. Zöllner, Houdini aproveita para atacar o eminente astrônomo e cientista alemão, declarando que também ele se deixou envolver pelas patifarias de Slade e fez deste, herói da sua Física Transcendental. No entanto, basta ler com atenção o trabalho de Zöllner para verificar que os resultados obtidos com Slade, sob rígidas condições de controle científico, jamais poderiam ser conseguidos com truques ou ilusionismo, como o de encaixar duas argolas de diferentes madeiras, uma na outra sem quebrá-las ou cortá-las. Houdini acha que àquela altura, "não estava bem da cabeça", empenhando-se apenas na verificação experimental de uma hipótese preformulada. (Claro, todas as hipóteses são preformuladas!). Uma das teses prediletas do ilusionista era essa, de atribuir deterioração mental a qualquer cientista que desse uma palavra favorável a respeito da autenticidade dos fenômenos observados. Só eram considerados inteligentes, competentes e bons observadores, como ele, Houdini, aqueles que se obstinavam em negar sistematicamente os fenômenos pesquisados.
Outra tese habitual de Houdini era a de que todos esses fenômenos ele poderia reproduzir com os recursos de sua profissão. Disso não há como duvidar. Um bom profissional de mágica, como ele, poderia, com relativa facilidade, produzir a ilusão de fenômenos autênticos, da mesma forma que um competente falsário é capaz de produzir dinheiro de qualquer nação, quase tão bom quanto o verdadeiro. É preciso lembrar, contudo, que para haver a imitação ou a falsificação é preciso que haja a coisa imitada ou genuína. A nota falsa, porém, jamais invalidou a boa. Ao contrário, é a boa que serve de padrão para avaliar se a outra é verdadeira ou apenas artificiosa imitação, por mais genuína que pareça.
Com o objetivo de demonstrar seu ponto de vista pessoal sobre isto, Houdini montou pequeno número de palco e se deixou fotografar no momento em que, por cima da cabeça de sua mulher Beatrice, troca com um ajudante, que se mostra por trás dela, parcialmente oculto por uma cortina, lousas previamente manipuladas. Claro que aquele é um processo de produzir fraudulentamente o fenômeno da escrita direta sobre ardósia. É possível até imaginar outros meios visando ao mesmo efeito. Resta, contudo, uma pergunta: Era assim que Slade produzia o fenômeno? A resposta é Não! Mas isso não importa a Houdini e a outros "pesquisadores" da mesma mentalidade. O importante era mostrar como produzir, por ilusionismo, fenômenos - legítimos ou não - de efeito físico.
Outra pergunta cabe aqui, com idêntica propriedade: teria Slade, alguma vez, fraudado? É possível, porque também ele incorreu no grave equívoco de profissionalizar sua mediunidade que foi autêntica, a princípio, e que, a despeito de possíveis fraudes ocasionais, continuou legítima, não apenas quanto ao fenômeno da escrita direta em ardósia, como o demonstrou o eminente prof. Zöllner.
O insuspeito Podmore, que preferia recusar um fenômeno autêntico a admitir, como legítimo, um fraudado, diz coisa bem diferente de Slade, a quem ele estudou pessoalmente e sob condições que o levaram a concluir o seguinte:
- O autor (Podmore) fez urna visita a Slade no princípio de setembro deste ano (1876) e ficou profundamente impressionado com o seu desempenho.
Cita, ainda, outros cientistas mencionados pelo prof. Barratt, em documento lido perante a Bristish Association, que "foram incapazes de explicar o que haviam presenciado junto de Slade".
Mas a fúria demolidora dos adversários do Espiritismo não conhecia limites nem conveniências. Encontramos em Podmore o relato do incidente que levou Slade à justiça e do qual Houdini faz grande espalhafato no seu livro.
A 15 de setembro de 1876, o prof. Ray Lankester visitou Slade, em companhia do dr. Donkin, para observarem o fenômeno da escrita direta em ardósia. De visita anterior, ele saíra convicto de que Slade escrevera com sua própria mão as mensagens que apareciam nas lousas e, por isso, resolveu testar sua hipótese. No momento em que a ardósia estava sob o tampo da mesa, como de hábito, para que o fenômeno se produzisse, ele arrancou-a da mão de Slade e verificou que a lousa já estava escrita. No seu entender, demonstrada estava a fraude. Achava ele que, recolhendo a ardósia antes de que Slade tivesse tido a oportunidade de escrever fraudulentamente, a pedra deveria estar limpa.
Ao relatar o episódio, Podmore admite, contudo, que os espíritas não deixavam de ter razão ao rejeitar a demonstração, considerando-a inconclusiva. Lembra, ademais, o eminente pesquisador inglês que os melhores testes feitos com Slade comprovaram suas faculdades quando as lousas permaneciam à vista de todos os presentes, com a face, onde apareciam as mensagens, voltada para baixo e, às vezes, até sem que Slade as tocasse. Inventou-se outra "hipótese", igualmente desmentida: a de que Slade usava as unhas mais compridas para que lhe fosse possível segurar sobe elas uma partícula de ardósia, que funcionaria como lápis. Isto não explicaria os fenômenos a que alude Podmore, quando Slade nem tocava as lousas ou as mantinha de face para baixo. O importante, contudo, é que as unhas do médium eram "tão curtas que lhe seria impossível prender ali um fragmento de lápis, conforme sugeriu o prof. Lankester". É o que diz Podmore, cuja autoridade está acima de qualquer suspeita.
Seja como for, o valente professor levou ocaso à justiça, exigindo punição exemplar para Slade "pelo uso ilegal de habilidades destinadas a enganar certas pessoas". Slade foi interrogado durante vários dias e, finalmente, condenado a três meses de prisão, com trabalhos forçados. Seu advogado apelou, e ele deixou o país para livrar-se da constrangedora situação, que o deixou literalmente arrasado.
O prof. Lankester insistiu e obteve nova intimação, desta vez mais correta do ponto de vista jurídico, dado que a primeira fora redigida em termos tecnicamente inaceitáveis ao tribunal, do que se valeu o advogado de defesa para livrar Slade, pelo menos temporariamente. Este, contudo, já abandonara a Inglaterra para nunca mais retornar, dado que ali era considerado perigoso vigarista.
Em longo relato feito especificamente para Houdini - transcrito no livro, naturalmente - um jornalista aposentado por nome Remigius Weiss (não era parente de Houdini), narra seu encontro com Slade, do qual havia jeitosamente conquistado a confiança, a fim de armar-lhe uma cilada, pois também ele já havia decidido que Slade era um patife fazendo-se passar por médium.
A experiência foi realizada a 4 de novembro de 1882. A técnica de Weiss era, praticamente a mesma de Houdini, ou seja, demonstrar como Slade poderia ter praticado a fraude, em vez de tentar apurar se ele a praticou ou não. Weiss colocou alguns comparsas seus a observarem experiência através de buracos no painel da sala, nas portas, no assoalho e no teto. Lá pelas tantas, Weiss armou seu escândalo, revelando todo o esquema da suposta patifaria. Ou o aturdido Slade assinava prontamente uma confissão de fraude, ou Weiss o poria na cadeia. Diz o jornalista que Slade assinou o papel, cujo texto reproduz, não, porém no original em fac símile. Houdini, por sua vez, não declara ter visto o documento original, nem se conferiu a alegada assinatura de Slade, se é que o papel existia mesmo e estava assinado. É tudo na base do "ouvir dizer", em contraste com inúmeros fenômenos autênticos produzidos por Slade, não apenas os de escrita direta em ardósias, como relata o prof. Zöllner, cuja autoridade científica e probidade jamais foram questionadas.
O próximo assunto de Houdini é a fotografia mediúnica, na qual aparecem imagens mais ou menos nítidas de seres desencarnados, o que, evidentemente, nem passa pela sua cabeça admitir. Para ele, são todos esses fotógrafos refinados patifes, a explorar a credulidade alheia. Além de William H. Mumler, ele discorre sobre o fotógrafo francês Edouard Buguet, em torno do qual girou o famoso "Processo dos Espíritas", em Paris, para o bojo do qual foi arrastado Pierre-Gaetan Leymarie, continuador de Allan Kardec na administração da Sociedade.
Podmore declara-se impressionado pelo testemunho de gente que confirmou a legitimidade das fotos e se refere à escandalosa parcialidade do juiz francês, que decidiu pela condenação de Leymarie, Buguet e Firman. Era fácil, naquele tempo, botar médiuns e militantes espíritas na cadeia.
Houdini insiste em dizer que "as possibilidades de serem aqueles efeitos produzidos por meios naturais (ficaram) provadas" no tribunal. Claro! Quem ignora que uma imagem fotográfica pode ser produzida por dupla exposição ou outro qualquer artifício técnico, por um profissional experimentado? O que não foi apurado, contudo, é como produzir tais imagens sem truques, sem manipulações ilusionistas ou dupla exposição das chapas, conforme ficou suficientemente demonstrado no rumoroso "Processo dos Espíritas", um dos raros casos - pelo menos que eu conheça - em que as pessoas que o tribunal tinha por objetivo "proteger" das supostas fraudes de Buguet, eram precisamente as que depuseram, consistente e unanimemente, a favor do fotógrafo, confirmando, sob juramento, que as fotos eram autênticas e não havia como fraudá-las nas condições sob as quais foram conseguidas, mesmo porque vários daqueles "mortos" sequer deixaram retratos seus, em vida...
Segue-se, no livro de Houdini, o capitulo dedicado ao seu ex-amigo Sir Arthur Conan Doyle, em quem o autor não reconhece competência suficiente para julgar a autenticidade dos fenômenos sobre os quais discorre em suas obras. Segundo Houdini, Doyle teria de ser considerado suspeito por causa do seu envolvimento emocional na questão, a partir da morte de seu filho, e, acima de tudo, pela sua imperdoável adesão ao Espiritismo. E mais ainda: por haver empenhado todo o seu talento e seu prestígio social e literário na corajosa difusão de suas convicções. Houdini jamais lhe perdoaria isso. Como não podia acusá-lo de debilidade mental ou de desonestidade, optou pela alegação de que Sir Arthur se deixara levar pela emoção paterna, em sacrifício de suas faculdades de observação. Inaceitáveis acusações essas; quando pensamos que estão sendo dirigidas a um médico e brilhantíssimo escritor, criador de Sherlock Holmes, o protótipo universal do policial arguto, gênio da observação minuciosa e da dedução lógica, a deslindar complexos enigmas criminais e que encantaram não apenas a Inglaterra daquele tempo, mas o mundo todo, até hoje.
É nesse capítulo, ademais, que Houdini declara não movê-lo nenhum "desejo de desacreditar o Espiritismo". Todo o seu livro, contudo, é veemente demonstração dessa obstinada disposição sua. Mesmo assim, não hesita em afirmar, como se lê à página 152:
- Eu estava decidido a abraçar o Espiritismo se houvesse qualquer evidência suficientemente forte para abater as dúvidas que se apinharam em meu cérebro durante os passados trinta anos.
Temos amplas razões para por em quarentena a sinceridade do eminente mágico nesse ponto, como em outro, alhures, onde ele declara acreditar na possibilidade do mundo póstumo. Tanto é assim que, quando, afinal, conseguiu transmitir do Além a sua mensagem, declarou honestamente que nem ele e nem Beatrice, a esposa, achavam possível a sobrevivência.
Em carta de 19 de novembro de 1922, Sir Arthur Conan Doyle manifesta, com sua costumeira dignidade e elegância, seu desagrado ao comportamento de Houdini. Após declarar que não era seu propósito "esgrimir com um amigo em público", preferiu a carta pessoal para dizer-lhe que se sentia magoado com a atitude sempre hostil de Houdini em relação ao Espiritismo.
- Você tem todo o direito no mundo de manter sua própria opinião - opina o famoso Sir Arthur - mas quando você diz não dispor de evidência acerca da sobrevivência, afirma o que não posso conciliar com o que você testemunhou com seus próprios olhos. Conheço, por muitos exemplos, a pureza da mediunidade de minha mulher e vi aquela mensagem que você recebeu e que efeito produziu sobre você, na ocasião.
Lembra, a seguir, que o próprio Houdini escrevera, então, e espontaneamente, o nome Powell, amigo de Doyle, recentemente falecido, o que Houdini dissera nada ter a ver com mediunidade. Tratava-se, segundo ele, de outro Powell, cujo nome ele escrevera em perfeito estado de lucidez. (Voltaremos a este episódio mais adiante).
Sir Arthur estava, aliás, convicto de que Houdini dispunha de excelentes faculdades e que era devido a elas, em grande parte, que conseguia realizar suas inconcebíveis proezas de palco. Nisto, a propósito, não esteve só. Outros também assim pensavam, mas Houdini negou sistematicamente essa possibilidade. Dava-lhe calafrios, por certo, pensar que alguém o punha no mesmo nível dos detestáveis e trapaceiros médiuns que ele tanto combatia.
Em resposta à carta de Conan Doyle, acima transcrita, em parte, Houdini escreveu-lhe, em 15 de dezembro do mesmo ano, 1922, entre outras coisas, o seguinte:
- Eu estava sinceramente de acordo e simpaticamente inclinado, naquela sessão, mas a carta (mensagem) foi inteiramente escrita em inglês e a minha santa mãe não sabia ler, escrever ou falar a língua inglesa. Não cuidei de discutir o assunto naquela oportunidade por causa da minha emoção ao tentar sentir a presença de minha mãe, se e que tal coisa fosse possível, conservando-me em silêncio até que, passado o tempo, pudesse eu tirar daquilo a dedução apropriada.
Doyle afirmava, na carta de 19 de novembro, que lhe estava remetendo um exemplar de seu último livro, mas que aquela seria sua "última palavra sobre o assunto". Elegantemente, contudo, deixava a porta aberta ao relacionamento pessoal que havia entre ambos, pois não faltavam, no seu entender, "muitos outros assuntos sobre os quais poderiam manter amistosa conversação".
Não foi a última palavra. É que se formara, posteriormente, uma comissão, das muitas que então foram constituídas, para examinar, mais uma vez, os fenômenos mediúnicos. Chamava-se esta Impartial Committee... ou seja, Comité Imparcial. Ao ler a notícia, na imprensa, Sir Arthur não conteve sua indignação e escreveu a Houdini, em 19 de janeiro de 1923, para perguntar-lhe como poderia ser imparcial uma comissão que incluía Houdini, inimigo declarado do Espiritismo e que mantinha postura pública e notória de hostilidade aberta em relação ao objeto sob exame.
Ao referir-se aos Irmãos Davenport, no seu conhecido livro História do Espiritismo, Sir Arthur usou de linguagem firme e clara, como de seu costume:
- ...Houdini alegou que Davenport admitia que seus resultados eram conseguidos naturalmente, mas Houdini, de fato, encheu tanto de erros seu livro A Magician amnong the Spirits e mostrou tanto preconceito em relação a todo o assunto, que o seu depoimento não tem valor. A carta que exibe não lhe dá razão. Uma declaração posterior, citada como tendo sido feita por Ira Davenport, é, demonstravelmente falsa.
Em suma, era uma guerra. E Sir Arthur jamais se recusou a tomar armas publicamente em favor de suas ideias e jogar todo o seu prestígio e talento na defesa das causas que adotava.
- Nunca - escreveu ele, segundo citação de Houdini - deixo um jornalista escapar impune (nos seus ataques ao Espiritismo) se é que posso fazê-lo.
Não menos negativa é a postura de Houdini em relação à Marthe Béraud, conhecida nos meios científicos de então como Eva C., médium de materializações, que Richet considera, n0 seu famoso Traité de Metapsichique, um dos "médiuns muito poderosos" surgidos entre 1885 e 1920. Pouco adiante, ainda no "Tratado", ele declara que Stanislava Tomczyk, Marche Béraud (Eva C.) e Miss Goligher, "abriram para a metapsíquica objetiva, inesperadas perspectivas".
Houdini não viu nada disso. Da sua sessão com Eva C. ficaram duas conclusões: 1º) sua experiência de vários anos no palco convencia-o de que aquilo era apenas um ato de ilusionismo; 2º) que o ectoplasma era uma substância nojenta. Chega a declarar que ignora por que o "Todo Poderoso permitia emanações de substâncias tão horríveis, repugnantes e viscosas do corpo humano".
Sintomaticamente, contudo, não explica como teria Eva C. produzido seus supostos números de ilusionismo, ao mesmo tempo em que admite, com sua reconhecida veemência a realidade do ectoplasma. Pode achá-lo "nojento", mas não nega sua existência...
No capítulo seguinte, sobre o que considera "subprodutos do Espiritismo", alinha alguns exemplos de charlatanismo mais grosseiro, para atribuir toda a responsabilidade de tais patifarias ao Espiritismo. Não foi esquecida, sequer, a velha e surrada tese, naquele tempo mais difundida, de que o Espiritismo era uma "fábrica de loucos". Muito típico de quem ataca sem base para dizer o que diz, Houdini informa que "um especialista de elevada reputação em doenças mentais, de Birmingham (Quem?) emitiu um alerta, em 1922, (Em que publicação?), citando numerosos casos (Quais e quantos?) de loucura, resultantes dos "ensinamentos espíritas" (sic). Já não são mais os fenômenos ou a prática mediúnica os causadores da suposta loucura, mas os ensinamentos... Outro anônimo doutor inglês, segundo Houdini, estimava que o número de tais casos subia a um milhão! Sendo "fato estabelecido" que a razão humana desmoronava-se sob a "excitante pressão do Espiritismo".
Embora afirmando alhures, no livro, sua boa vontade ante o Espiritismo, que, de forma alguma, queria demolir e que estava até disposto a aceitar, o excelente mágico encerra este capítulo com a seguinte estocada:
- O Espiritismo não passa de uma embriaguez mental, embriaguez de palavras, de sentimentos e de crenças sugestionadas. A embriaguez de qualquer natureza, transformada em hábito é prejudicial ao corpo, mas a embriaguez de mente é sempre fatal a mente. Está proibido o álcool, está proibido o uso de drogas, mas não dispomos de leis para prevenir esses sanguessugas humanos de extraírem de suas vítimas a razão e o bom senso até o último fragmento. Isso deveria ter um fim. Uma intensificação das denúncias e dos processos, após investigação racional, deveria ser suficiente para justificar, ou melhor, para exigir uma legislação destinada a promover a extinção de um culto erigido sobre falsas pretensões, exígua evidência de oitiva, e no absurdo de aceitar-se uma ilusão de ótica como fato.
Sua sugestão para os tais comitês de investigação, verdadeira caçada inquisitorial às bruxas, seria a de que todos eles deveriam contar com a presença de um "bem sucedido e respeitável ilusionista", dado que os cientistas não estavam suficientemente preparados para a tarefa, em vista da ingenuidade ou de debilidade mental por eles demonstradas. É a cópia exata dos procedimentos inquisitoriais, nos quais se substituiria o sacerdote pelo mágico, como "técnico do assunto".
Achava o autor dessa proposta medieval que havia sido "provado inquestionavelmente, repetidas vezes, que esses sábios têm sido frequentemente vítimas de médiuns fraudulentos, algumas vezes, conscientemente", ou seja, desonestamente. Sir William Crookes, por exemplo, teria sido um deles, por causa de "sua deficiência em métodos racionais de descobrir a verdade". Meu Deus! Sem esse gênio provavelmente ainda não teríamos hoje a televisão! Foi com os alegados "métodos deficientes" que ele descobriu o estado radiante da matéria e inventou o tubo que leva o seu nome, e que tenho diante de mim, ao escrever isto no computador, além de inúmeras outras façanhas científicas que valeram o reconhecimento universal e o título nobiliárquico, com o qual a coroa britânica o distinguiu, com inteira e aplaudida justiça.
É dele, contudo, que Houdini declara "não ter a menor de sua capacidade de dúvida" de ter sido tapeado pelos médiuns que testou. Isso por causa da "fraqueza e da insegurança de julgamento como pesquisador".
Sir Oliver Lodge? Outro pateta consumado, sem capacidade nem condições para observar aquilo que se passava à sua volta, quando à mercê de falsos médiuns, e todos para Houdini, eram falsos. Verdadeiros super-homens, estes últimos, capazes de tapearem cientistas desse nível. As pesquisas de Sir Oliver eram, no dizer de Houdini, "típicas de todas as demais levadas a efeito por cientistas e sábios que haviam aceitado o Espiritismo como fato ou como religião".
Em outras palavras, somente servia o testemunho daqueles que desmentiam os fatos ou rejeitavam sumariamente o Espiritismo. Os que aceitavam tais aspectos seriam pobres e ridículos tolos, digno de pena, não importa quão impressionantes fossem seus currículos e quão respeitáveis cada um deles, perante a comunidade científica internacional e a opinião pública.
Quanto aos médiuns, em geral - não os que fraudavam a mediunidade, porque, no seu entender, todos o faziam - ele não deixava por menos: eram "human vultures", ou seja, abutres humanos.
Em verdade, era "um insulto comparar aos abutres tais seres humanos, mas não há, a meu ver, outra comparação adequada".
Para apanhar tais vigaristas nas suas fraudes, somente um bom mágico como Houdini.
O autor volta ao tema no capítulo final de seu livro, para insistir na sua tese habitual de que não há fenômeno que não possa ser imitado por um bom ilusionista. Com vantagem para este, dado que "muitos dos efeitos produzidos pelos médiuns são impulsivos, espasmódicos, realizados ali, na hora, inspirados ou promovidos pelas circunstâncias e que não podem ser reproduzidos".
Houdini parece não perceber, ao escrever essa enormidade, que o argumento oferecido por ele funciona contra a sua própria tese. Precisamente porque os fenômenos de efeito físico autenticamente mediúnicos não podem ser produzidos à vontade do médium, ou dos circunstantes, a qualquer momento, em qualquer ambiente, sob qualquer circunstância, é que demonstram uma realidade que não a dos ilusionistas por mais competentes que sejam estes.
Há, contudo, um ponto delicado de que ele precisa cuidar no seu libelo. É que o mágico francês Robert Houdin, a quem Houdini tanto admirou que lhe adotou o nome adaptado, andou promovendo pesquisas sobre o Espiritismo e acabou convencido da verdade dos fatos mediúnicos. Houdini não lhe perdoaria essa. Estudou meticulosamente a vida e as atividades de Houdin e escreveu sobre ele um livro igualmente demolidor, intitulado The Unmasking of Robert Houdin, (O Desmascaramento de Robert Houdin), com o objetivo de demonstrar que o famoso ilusionista "não era competente como investigador das alegações dos espíritas", esquecido de que sempre defendera, como vimos, a posição de que as comissões de investigação sobre tais fenômenos deveriam contar invariavelmente, com um "bem sucedido e respeitável ilusionista". Quem, melhor do que Robert Houdin, reconhecido mestre da difícil arte, preencheria tais especificações?
Nesse livro odiento, Houdini escreveu um capítulo inteiro dedicado ao que chamou ignorância do eminente mestre e colega francês, não tanto como investigador, mas em relação à própria técnica da prestidigitação, na qual Houdin foi reconhecido internacionalmente como o melhor de seu tempo, além de autor de livros especializados.
Mesmo admitindo, como o faz páginas adiante, que, afinal de contas, os mágicos também podem ser enganados, dado que "não são imunes" a isso, Houdini considera que:
- É ridículo para qualquer mágico dizer que o trabalho que presencia não é produzido por comparsaria ou prestidigitação porque ele não é capaz de resolver o problema.
E mais, "mesmo um ilusionista eminente como Robert Houdin, pode equivocar-se quando se trata de sondar as alegadas manifestações do médium profissional". Com o que coloca esses médiuns, talvez sem o ter percebido, como criaturas super humanas, capaz, não apenas de enganarem cientistas e sábios do gabarito de Crookes, Lodge, Barret, Conan Doyle e outros, como também um gênio do ilusionismo como Robert Houdin.
Como convencer Houdini de que nem todos os médiuns eram refinados patifes? De que maneira demonstrar-lhe que havia pessoas em condições de produzir fenômenos mediúnicos autênticos? E que, por incrível que pudesse parecer, mesmo médium que, às vezes, trapaceavam, eram capazes de realizar proezas genuínas como a sra. Palladino?
Em sua História do Espiritismo, Sir Arthur Conan Doyle informa que o famoso mágico Howard Thurston, persistiu, numa sessão, depois da desistência de outros pesquisadores, aborrecidos com algumas óbvias fraudes de Eusápia e, daí por diante, obteve o que Sir Arthur caracteriza como "autêntica materialização". Diria Houdini, diante disso, que, uma vez afastados os demais observadores ficou fácil enganar Thurston, mesmo sendo este excelente representante da privilegiada categoria dos mágicos.
Alguém observou, também não sei se naquela mesma oportunidade, que, enquanto censurava Eusápia por estar tentando fraudar, "outro objeto, bastante afastado dela, moveu-se ao longo da mesa".
Nas palavras finais, a título de conclusão, Houdini reitera sua postura, nada convincente, aliás, nos seguintes termos:
- Tenho dito muitas vezes que estou disposto a acreditar, desejo acreditar e acreditarei, se os espíritos puderem exibir qualquer prova bastante substancial...
Mas, o que seria "prova substancial" para Houdini? Por outro lado, estariam os espíritos dispostos a promover um espetáculo particular somente para convencer Houdini da realidade espiritual? Enquanto isso não acontecia, portanto, continuava ele convicto de que tudo quanto vira a respeito fora insuficiente para "suportar os ardentes raios da investigação" que ele despachava sobre médiuns e pesquisadores.
E conclui:
- Não cabe a nós provar que os médiuns são desonestos, cabe a eles provarem que são honestos. Não é o que pensam os juristas, que ensinam que "o ônus da prova cabe a quem acusa" e, no caso, Houdini é o implacável promotor a deblaterar contra todos aqueles que se atrevessem a dizer ou fazer qualquer coisa que pudesse ser interpretada como apoio a realidade espiritual.
Tão ocupado manteve-se Houdini com sua cruzada cívica contra o Espiritismo que a gente fica no direito de admirar-se de que lhe tenha sobrado tempo para a sua atividade de magico profissional. Em 1926, por exemplo, o deputado americano Sol Bloom, eleito pelo estado de Nova Iorque, apresentou à câmara em Washington, um projeto de lei com a qual pretendia tornar ilegal o exercício de qualquer atividade remunerada tida por divinatória, como "ler a sorte" desfazer encantamentos ou fazê-los, unir ou separar pessoas, etc. A pena seria multa de 250 dólares, no máximo, conjugada com seis meses de prisão.
O projeto não chegou a ser submetido a votação, por entender a comissão que as leis existentes eram suficientes para coibir os abusos visados pelo deputado Bloom. O que tornou memorável a discussão do projeto, contudo, foi o desfile das várias personalidades, convidadas para depor perante a comissão, seja para pleitear a sua rejeição, seja cm apoio ao projeto. Ali estiveram médiuns. videntes. astrólogos, crentes e descrentes de vários matizes. Pouca dúvida teríamos em apontar Harry Houdini como a "vedete" do debate. Ele depôs em 26 de fevereiro, bem como a 18, 20 e 21 de maio. (Estava, aliás, a curta distância, no tempo, de sua morte, de vez que morreria a 31 de outubro daquele mesmo ano, aos 53 anos de idade).
Entre outras "amenidades", declarou ele à comissão que havia "somente dois tipos de médiuns: os degenerados mentais, que deveriam estar sob tratamento e de deliberadamente trapaceiros e fraudulentos".
Para demonstrar a sua tese produziu para a comissão alguns de seus números de palco, realizando "fenômenos" de escrita em ardósia, e de voz direta por meio da trombeta. A certa altura, enquanto depunha determinada pessoa, ele jogou dramaticamente sobre a mesa do presidente da comissão, 10 mil Dólares em dinheiro vivo, que oferecia a qualquer médium presente que produzisse um fenômeno que ele, Houdini, não conseguisse reproduzir por meio de truques.
Nesse mesmo ano de 1926, entre 29 de novembro e 11 de dezembro, realizou-se um simpósio convocado pelo prof. Carl Murchinson, na Universidade de Clark, Worcester, estado de Massachusetts.
Os debatedores foram classificados em quatro categorias distintas: 1) os que estavam "convencidos da multiplicidade dos fenômenos psíquicos" (Sir Oliver Lodge, Sir Arthur Conan Doyle, Frederick Bligh Bond, dr. L. R. Crandon (marido da médium Margery), Mary Austin e Margareth Deland), 2) os que se sentiam "convictos da raridade dos genuínos fenômenos" (prof. MacDougall, prof. Hans Driesch, dr. Walter Prince e o prof. F.C. Schiller), 3)"os que ainda não estavam convencidos" (dr. John Coover e dr. Gardner Murphy), e, finalmente, 4) os que rejeitavam as alegações de que tais fenômenos pudessem ocorrer (prof. Joseph Jastrow e Harry Houdini).
Entendo que o nome de Houdini apareça na lista dos debatedores tendo em vista a antecedência com que tais eventos são programados e distribuídos os convites para participação, dado que, ao iniciarem-se os trabalhos, em 29 de novembro, o genial ilusionista estava morto há quase um mês.
Como costuma acontecer em tais oportunidades, o simpósio foi inconclusivo, no sentido de que se tornou impraticável obter um consenso entre os participantes, mantendo cada grupo sua postura específica. Harry Price informa que o relatório publicado sobre a temática do simpósio, sob o título The case for and against psychical belief, é digno de ser lido. Faz, porém, clara ressalva ao declarar:
- Acho que o padrão científico do documento foi rebaixado pela impressão de alguns capítulos do livro de Houdini A Magician among the Spirits, coleção de truques mediúnicos, a maioria dos quais nenhum médium fora do hospício ousaria empregar.
O médium americano Arthur Ford declara, em seu livro autobiográfico, acreditar na honestidade de Houdini, ainda que o veja interessado na onda publicitária que sua campanha contra o Espiritismo lhe rendia. - No inicio da década de 20 - opina Ford - ele jogou todo o peso da sua reputação como mágico na declaração de que todos os médiuns eram falsos e que ele era capuz de produzir qualquer truque, de qualquer médium.
Mas quem era, precisamente, Harry Houdini?
Seu nome real era Ehrich Weiss. O nome Houdini, sob o qual se tornou famoso, resultou de homenagem sua ao grande mágico francês Robert Houdin, aliás, outro pseudônimo, dado que seu nome verdadeiro era Jean Eugène Robert (1805-1871), contra quem Houdini apontaria também, sua temível metralhadora giratória, como tivemos oportunidade de observar, ainda há pouco, neste estudo.
Filho de um rabino emigrado da Hungria, Houdini nasceu em Apleton, Wisconsin, nos Estados Unidos, a 6 de abril de 1874. Muito jovem ainda, começou como trapezista, mas foi como mágico que se tornaria internacionalmente famoso. São unânimes os depoimentos de seus contemporâneos quanto às suas fantásticas habilidades.
- Era capaz de se livrar de algemas de qualquer tipo ou invenção, em qualquer parte do mundo - lembra Arthur Ford. Era capaz de bater, na sua própria especialidade, até mergulhadores de Fiji, em busca de moedas. Produziu truques subaquáticos que deixavam perplexa a classe médica pela extensão de tempo em que podia reter a respiração. Escapava de caixas de madeira construídas, no palco, por carpinteiros locais. Perante auditórios estupefatos, fazia desaparecer um elefante (não um coelho) e entrava por uma parede de tijolos a dentro. Era exatamente o que dizia de si próprio: o maior mágico de seu tempo.
Um de seus números, lemos na Britânica, consistia em deixar-se prender algemado. dentro de uma caixa de madeira que, em seguida, era fechada a chave, amarrada por cordas, sobrecarregadas de pesos e atirada, pelo convés de um barco, à água, na qual tudo submergia rapidamente. Momentos depois, Houdini surgia vivo e são, à tona, completamente solto de toda aquela parafernália.
Também conseguia libertar-se de uma camisa de força, suspenso de cabeça para baixo, a uma altura de 20 metros do solo.
Casou-se aos 20 anos de idade, cm Wilhelmina Rahner, e, em segundas núpcias, com Beatrice Houdini, fiel assistente nos seus fantásticos números de exibição. Um filme feito sobre sua legendária existência mostra as dificuldades que esse casamento proporcionaria a Houdini, colocando-o na desconfortável posição de filho e de marido devotadíssimos e amorosos, sem que as duas mais importantes pessoas da sua vida sentimental conseguissem viver em paz. A sra. Weiss mantinha-se fiel ao judaísmo e a nora permaneceu cristã. Foi impraticável a conciliação entre ambas, para desespero de Houdini. Esse difícil relacionamento acarretaria importantes repercussões posteriores, como ainda veremos.
Com o mesmo empenho e vigor que punha na criação e apresentação de suas incríveis façanhas, Houdini aplicou-se à tarefa de demolir a credibilidade do fenômeno mediúnico, o que, evidentemente, não conseguiu, a despeito da cerrada argumentação em dois dos seus livros: Miracle Mongers and Their Methods, de 1920 e o já citado e ora estudado A Magician among the Spirits, de 1924, além da obra sobre Robert Houdin, na qual pretendeu não apenas atacar seu antigo mestre e modelo profissional, mas também como um tolo que se deixara iludir pelas artimanhas dos médiuns e se convertera ao Espiritismo. Caracteristicamente, esse livro teve como título The Unmasking of Robert Houdin, ou seja O Desmascaramento de Robert Houdin.
Will Goldston, um dos grandes ilusionistas profissionais da Europa e autor de vários livros sobre sua especialidade, afirmou, durante a controvérsia de Harry Price com Maskelyne, que a campanha de Houdini contra os médiuns em particular e contra o Espiritismo em geral era "uma grande montagem publicitária", pois ele também era crente. Encontro a afirmativa de Goldston em Nandor Fodor, mas tenho minhas dúvidas a respeito. Não da intenção publicitária, que também Ford alega, mas de que Houdini tenha acreditado na realidade espiritual. Pelo menos não é isso que se depreende da atenta leitura do livro de Houdini.
Seja como for, também Harry Price, segundo o dr. Fodor, informa, em seu livro sobre Rudi Schneider, ter uma carta na qual Houdini declarava autêntica uma foto em que aparece a imagem do falecido prof. James Hyslop, obtida por processos mediúnicos.
J. Hewat Mackenzie, por sua vez, diz em sua obra Spirit Intercourse (Comunicação espiritual), que era precisamente porque dispunha de faculdades mediúnicas que Houdini conseguia desfazer-se de toda a instrumentação inibidora a que se submetia nos seus números de palco. Segundo esse autor, Houdini desmaterializava-se e se rematerializava do lado de fora de algemas, caixas e cordas que o prendiam dentro ou fora d'água. Claro que Houdini tratou de ridicularizar tais suposições, mas a crença de que ele era dotado de certas faculdades foi veiculada por outros autores, como Cambell Holmes, em Facts of Psychic Science (Fatos da Ciência Psíquica). Sir Arthur Conan Doyle, amigo pessoal de Houdini, pensava de maneira semelhante, como vimos. Nandor Fodor lembra as sessenta páginas que Sir Arthur escreveu em seu livro The Edge of the Unknown (No Limiar do Desconhecido), de 1930, para expor sua convicção de que Houdini era um médium que se fazia passar por ilusionista.
Bem a propósito, cabe encaixar aqui detalhes de uma informação já referida alhures, neste papel.
Quando Sir Arthur e Lady Doyle visitaram os Estados Unidos, estiveram por vários dias, num hotel de Atlantic City, com Beatrice e Harry Houdini. Num desses dias - o relato é de Houdini -, Lady Doyle, que desenvolvera sua mediunidade, recebeu uma comunicação da sra. Weiss, mãe de Houdini.
Mesmo reconhecendo-se profundamente emocionado, o mágico não admitiu a autenticidade da mensagem, como vimos.
Eram duas as razões, uma secreta e outra revelada. Aguardava ele, do espírito de sua mãe, uma palavra-chave, que não veio. Esta a primeira razão. Quanto à outra, achava ele que sua mãe jamais poderia ter transmitido uma mensagem em inglês, que ela não conhecera suficientemente, a despeito de ter vivido nos Estados Unidos cerca de 50 anos. Houdini demonstra ignorar ou rejeitar o preceito doutrinário e experimental de que a linguagem dos espíritos é o pensamento, como reiteradamente ensinado por Allan Kardec e os Instrutores da Codificação.
Percebe-se no texto da mensagem, a euforia do espirito da sra. Weiss ante a realidade da sobrevivência, na qual jamais acreditou, e que desejava, agora, a todo custo, assegurar ao seu obstinado e querido filho, ainda na carne. Contém, ainda, a interessante observação de que Houdini deveria, ele próprio, tentar a psicografia, que se costuma, designar em inglês pela expressão "automatic writing", escrita automática. Seria necessário fazer, sobre este aspecto, algumas observações corretivas, dado que, psicografia não é a mesma coisa que escrita automática. O assunto, contudo, foge ao objeto específico deste estudo, razão pela qual remeto o leitor, porventura interessado, ao meu livro Diversidade dos Carismas, Editora Arte e Cultura 1991.
Seja como for, a mensagem era um dramático esforço da mãe desencarnada em levar a convicção da realidade espiritual ao teimoso filho ainda "vivo". Ela identificava claramente nele, recursos mediúnicos suficientes e necessários à tarefa da psicografia. Em outras palavras, ela também acreditava na mediunidade de Houdini, ou melhor, do seu querido Ehrich... Se ele tivesse conseguido superar suas próprias resistências para dar esse passo, pelo menos tentando a experiência, e, finalmente, recebendo, ele próprio, comunicações de sua mãe, não haveria mais como duvidar.
Isso teria mudado completamente sua postura perante a questão. Teria compreendido, afinal, que havia médiuns autênticos e honestos, em legitimo contato e intercâmbio com os habitantes do mundo invisível. E que esses médiuns não estavam a disputar com ele os aplausos do público frequentador de espetáculos de ilusionismo. Estavam, sim, a serviço de causa nobre e transcendente, com todo o respeito pela fascinante profissão dos mágicos, dos quais Houdini era, indisputavelmente, dos maiores, talvez o melhor de sua época.
Ainda lhe restava tempo para essa correção de rumo, enquanto na carne. Mais tarde, já no mundo póstumo, enfrentaria dificuldades inesperadas (para ele) ao tentar transmitir o seu testemunho aos que ficaram, a começar nela sua querida Beatrice, com a qual combinara um esquema secreto, código, cujas chaves somente os dois conheciam. Foram tantas sua impertinências e tão obstinada a sua arrogância, que Sir Arthur Coram Doyle acabou rompendo com ele, queixoso de sua duplicidade e de suas posturas preconceituosas e agressivas em relação ao Espiritismo.
Tanto Ford como o dr. Nandor Fodor apontam o caso da conhecida médium Margery, como aquele do qual Houdini saiu desacreditado. Margery era esposa do dr. L. R. G. Crandon. que durante dezesseis anos foi professor de cirurgia na Universidade de Harvard. As faculdades mediúnicas de sua esposa foram testadas com o rigor necessário por gente da maior competência, que sabia o que estava fazendo. Ao investir centra ela, Houdini deu-se mal, segundo aqueles dois autores.
- As denúncias que ele (Houdini) divulgou pelos Estados Unidos a fora - escreve o dr. Fodor - não foram apoiadas em provas substantivas.
Quanto a mim, me confesso despreparado para opinar sobre este caso específico, dado que também li testemunhos que põem em xeque a mediunidade da sra. Crandon. É difícil distinguir naquela guerra de palavras e de depoimentos o certo do errado, o genuíno do falso. Aliás, sempre foi esse mesmo o proposito dos habituais demolidores, ou seja, estabelecer a confusão e a dúvida para dificultar a identificação da verdade, a fim de separar o joio do trigo.
Devo dizer que a atenta e desapaixonada leitura dos relatos acerca de Houdini nos deixa realmente a impressão de ter sido ele dotado das faculdades mediúnicas acentuadas que, às vezes, pareciam explodir em fenômenos insólitos que até a ele surpreendiam.
Vemos, por exemplo, no texto do dr. Fodor. que. em carta datada de 5 de janeiro de 1925, Houdini declara a Harry Price que uma fotografia de Walter, falecido irmão da sra. Crandon. aparecera inexplicavelmente entre as ardósias com as quais, ele, Houdini, experimentava. Teria sido um fenômeno de transporte ou materialização promovido por Walter com apoio na mediunidade de Houdini? Era pelo menos esse tipo de trabalho que Walter costumava realizar com grande competência e desembaço.
Encontro, ainda, no seu livro, o relato de estranhíssimo fenômeno que nem ele mesmo, Houdini, considerou mera coincidência. A coisa ocorreu em dia festivo. quando uma chuva inoportuna começou a cair abundantemente, invalidando toda a programação preparada para o ar livre.
Consciente da fama de Houdini como mágico, uma criança, pediu a ele que fizesse parar a chuva. Na brincadeira, mas fingindo-se sério, Houdini olhou para o céu, fez alguns gestos cabalísticos e a chuva parou na hora.
Não faltou, entre os presentes, quem dissesse que aquilo fora mera coincidência, dado que a chuva teria cessado, mesmo sem a mágica. Ele voltou a contemplar o céu, repetiu os gestos teatrais e, em poucos momentos, o céu claro e límpido de há pouco, armou-se novamente e voltou a despejar água sobre a terra. Quando lhe pediram para estancar o aguaceiro outra vez, Houdini achou que não convinha arriscar sua reputação e a chuva prosseguiu, estragando a festa.
Pelo menos dessa vez, o próprio mágico ficou perplexo com a sua proeza. E o confessa honestamente...
Como se pode observar, a campanha de Houdini contra os médiuns se resumia na tese de que eram todos eles charlatães que produziam os supostos fenômenos por meios naturais, em contraste com os que ele consideraria sobrenaturais, ou recorrendo a truques de variada natureza.
Por questão de justiça, é preciso dizer que Houdini não foi o primeiro ilusionista a sustentar essa postura, e, certamente, não seria o último. Lemos no longo e competente texto preparado sobre o assunto para a Enciclopédia Britânica, verbete Conjuring, edição 1963, que em antigos templos egípcios, gregos e romanos, os sacerdotes recorriam a processos semelhantes para produzir a ilusória manifestação visível de seus deuses ou vozes supostamente partidas das diversas divindades. Não parece, contudo, haver conexão entre as mágicas dos templos e a dos prestidigitadores de antanho. As motivações eram diferentes. A pessoa que assiste a um espetáculo de ilusionismo sempre sabe, desde remotas eras, que está diante de um artista que se propõe a divertir sua plateia, realizando, coisas aparentemente impossíveis.
Seja como for, a Britânica admite que os próprios termos mais usados em inglês, para designar a atividade ("conjuring" e "magic"), estão fortemente impregnados de uma associação com espíritos e feitiçaria. Ainda hoje o verbo to conjure, geralmente seguido da preposição up, significa evocar espíritos, tanto quanto conjuring é o termo utilizado para caracterizar o ilusionismo e conjurer, o profissional que o exerce.
Pouco adiante, o erudito verbete informa que 80% do sucesso no desempenho do mágico depende do bom uso que de souber fazer da psicologia, restando 10% para sua habilidade manual e 10% para a utilização de equipamentos auxiliares específicos.
Não disponho de conhecimento suficiente do assunto para contestar ou confirmar tais estimativas: confesso, contudo, que me surpreende essa precisão matemática na determinação dos índices, bem como, a ser exata a avaliação, taxa tão elevada para o fator psicológico e tão baixa para a destreza manual. Isto porque, na própria terminologia do oficio, ficou muito marcada a presença do fator habilidade, o que se pode demonstrar em termos como prestidigitação (presteza dos dedos). ou sleight of hand (destreza de mão), leggerdeman, do francês Légéreté de main, com o mesmo sentido de ligeireza de mão.
Não há dúvida, porém, de que muita gente inescrupulosa haja intentado tirar proveito da situação, fazendo-se passar por médium, quando era apenas ilusionista. Que até médiuns se tenham utilizado do processo, também é admissível, como parece ter ocorrido no caso Davenport, especialmente quando começaram a atrair grande clientela disposta a pagar pelos seus serviços. Se nenhuma outra razão tivesse Kardec para condenar a mediunidade remunerada, bastaria essa, dado que o ilusionismo como meio de vida é profissão como outra qualquer, tão digna como as demais praticadas com honestidade, ao passo que o prestidigitador que deseja fazer-se passar por médium, está sendo desonesto e irresponsável na manipulação interesseira de aspectos muito sérios da vida, tanto quanto o médium que recorre a trapaças ou truques para competir com os ilusionistas genuínos.
Não é pois, de admirar-se que alguns profissionais da magia tenham reagido ao que poderia ser considerada invasão de seus territórios, sempre que pessoas inescrupulosas, nem mágicos nem médiuns autênticos, tenham resolvido competir com eles, na disputa de um público que proporciona tanto aplauso como remuneração.
O registro dessa rivalidade mais que secular documenta desafios de parte a parte, ou seja, tanto de médiuns ou pesquisadores que convidam mágicos a reproduzirem determinados fenômenos mediúnicos, como mágicos que se declaram, como Houdini, dispostos a duplicar, por ilusionismo, fenômenos autênticos de mediunidade. Ainda há pouco vimos que Houdini jogou 10 mil dólares sobre a mesa do presidente da Comissão legislativa, em Washington, para substanciar seu desafio a qualquer médium presente, que fosse capaz de realizar um fenômeno que ele, Houdini, não conseguisse reproduzir com seus truques e recursos profissionais.
O médium responsável não deve e não precisa aceitar tais desafios, em primeiro lugar porque ele não é dono dos espíritos para obrigá-los a fazerem mágica a pedido, com tempo e local predeterminados. Ademais, se é médium legítimo, empenhado em tarefa digna, só deve conta de seus atos às leis divinas, que tudo regulam e colocam as responsabilidades exatamente onde e com quem devem ficar.
De outro lado, mágicos também, alguns até bastante arrogantes nas suas bravatas, recusaram com frequência, ofertas nesse sentido. Alguns que aceitaram tais desafios não conseguiram convencer às comissões julgadoras de que se tenham desempenhado a contento. Esteve neste caso o mágico J. N. Maskelyne, ao qual o arcediago Colley ofereceu 1.000 libras esterlinas - quantia respeitável de dinheiro - se ele conseguisse duplicar os fenômenos de materialização produzidos pelo médium Monck, aliás, ex-ministro da Igreja Batista Inglesa.
Francis W. Monck é um dos casos documentados de espantosa mediunidade, comprovada por vários pesquisadores do melhor gabarito, e, que, no entanto, parece ter produzido também fenômenos fraudulentos.
Harry Price igualmente desafiou Noel Maskelyne a reproduzir, por meio de truques, qualquer fenômeno mediúnico realizado por Rudi Schneider. O valor oferecido foi de 250 libras, mas o mágico teve o bom senso de recusar o desafio, talvez porque Price fosse mágico amador, capaz de flagrar seu "colega" em alguma espécie de manipulação duvidosa. Ou, quem sabe, entendeu que era muito trabalho e risco para tão pouco dinheiro.
Vem a propósito incluir aqui o episódio ocorrido com Howard Thurston e Arthur Ford. Thurston, sobre quem já dissemos algo neste trabalho, era mágico e competente, e Ford, médium ainda incipiente e anônimo. Talvez por excesso, de confiança em si mesmo e/ou estimulado pelo maciço ataque de Houdini, seu colega, à classe dos médiuns em geral, Thurston andou bravateando que havia desmascarado mais de 300 médiuns, aí pela altura do ano 1927. E mais, que o Espiritismo havia sido a causa mais frequente de lares desfeitos do que os botequins e que ele possuía um boneco de borracha com o qual poderia reproduzir qualquer fenômeno mediúnico.
Ford resolveu "comprar a briga". Propôs ao jornal que publicara a reportagem, o New York World, contestar as declarações do mágico, mas o jornal recusou sua oferta. A United Press, contudo, aceitou, em principio, o desafio de Ford, desde que este conseguisse montar um bom assunto jornalístico, dado que o negócio aí é vender jornal.
Frontalmente desafiado, Thurston resolveu explicar através dos seus amigos, que a reportagem fora um exagero do pessoal incumbido da sua publicidade, mas, a essa altura, a imprensa já farejava uma boa história e exigiu dele um encontro público com Ford, marcado para o Carnegie Hall, em Nova Iorque.
No dia aprazado, a casa estava a transbordar de gente. Ford começou dizendo que não pediria a Thurston que citasse nominalmente todos os 300 médiuns que ele declarara ter desmascarado, bastavam-lhe dia e local do evento, bem como nomes e endereços de 25 médiuns desmascarados, tudo isso acompanhado das respectivas provas. Thurston mencionou três médiuns, todos eles já falecidos, e, portanto, em perfeita segurança, ao abrigo de investigações indiscretas. Não se pode dizer, contudo, que não lhes citou o "endereço"...
Ford prosseguiu pedindo a identificação de 25 famílias desfeitas por causa do Espiritismo. O mágico não tinha nomes a citar.
Era ver-se que Thurston se mostrava em crescente estado de ansiedade, à medida que se aproximavam da última solicitação. Ford pediu-lhe, afinal, que pusesse em ação o tal boneco de borracha inflável e que o fizesse caminhar até ele, Ford, e lhe dissesse o nome real de seu pai.
O fracasso foi arrasador para o mágico e a imprensa o noticiou devidamente. Thurston voltou a justificar-se com o exagero do seu empresário e agente de publicidade, interessado em tirar proveito da técnica utilizada por Houdini em se promover à custa dos médiuns.
Era a vez de Ford esperar que a ira de Thurston desabasse em cima dele, mas aconteceu coisa inteiramente inesperada. Quatro anos depois da desastrada "performance" no Carnegie Hall, Thurston promovia seu habitual espetáculo de ilusionismo num teatro, em Detroit, quando Arthur Ford foi assistir ao "show". A certa altura - é Ford mesmo quem conta - Thurston apresentou um de seus conhecidos números tidos por "mediúnicos". Consultando o programa, Ford observou, surpreso, a seguinte ressalva: "Isto é um truque para divertir o espectador e NÃO um ataque à crença religiosa de quem quer que seja". Bom sinal aquele, pensou Ford.
Surpresa maior lhe estava, ainda, reservada. Ao concluir a apresentação do seu número de palco, Thurston pediu que as luzes focalizassem Arthur Ford na plateia e declarou elegantemente:
- O que acabei de fazer é apenas um truque, mas aí, no auditório, está um homem em quem acredito firmemente ser capaz de comunicar-se com os vossos amados mortos.
Encerrou convidando Ford a comparecer ao seu camarim, após o espetáculo e lá contou ao perplexo médium que, àquela altura do confronto no Carnegie Hall, pouco sabia ou nada, de fenômenos mediúnicos. Estava, porém, decidido a ir a forra sobre Ford, e, por isso, mergulhou fundo no estudo do problema, tomando, inclusive, a iniciativa de procurar muitos médiuns, a fim de formar seu próprio juízo acerca da questão. Não havia mais como duvidar, ao cabo de tal investigação: ele conseguira comprovações irrefutáveis da sobrevivência do ser e se inscrevera como membro da SPR americana (Sociedade de Pesquisas Psíquicas).
Em suma tornaram-se excelentes amigos e até sessões mediúnicas Ford frequentou em casa de Thurston.
É o que os americanos costumam chamar de uma "pretty story", uma bonita estorinha, com um simpático e comovente "happy end".
Bem, mas precisamos voltar ao nosso Houdini para relatar dramáticos eventos, nos quais o mesmo Arthur Ford desempenhou papel relevante.
Foi nessa época, ou, mais precisamente, na noite de 8 de fevereiro de 1928, em sessão com alguns amigos, na qual Ford funcionava como médium, que começou a desenrolar-se a longa sequência do caso Houdini, que tanto daria que falar.
A mediunidade de Arthur Ford operava pelo sistema conhecido nos Estados Unidos e na Inglaterra. como o dos controles, segundo o qual um espírito mais experimentado assume, junto ao médium, a tarefa de controlador das manifestações, que passam como que obrigatoriamente por ele. No caso de Ford, seu controle era um espírito que se identificava como Fletcher. Numa das suas primeiras manifestações, dissera ter sido um garoto que vivera do lado canadense, em frente ao lugarejo em que Ford vivera, do lado americano. A informação foi conferida com a família de Fletcher, à qual Ford escrevera, com as reservas naturais, pedidas pelo espírito, dado que sua gente continuava católica praticante e ele não desejava criar-lhes problemas e inquietações.
Pois bem, naquela noite de 8 de fevereiro, Fletcher declarou estar presente uma senhora, desconhecida dele, que se mostrava ansiosa por transmitir uma comunicação ao grupo.
- Ela me diz - informou Fletcher, por intermédio de Ford - ser a mãe de Harry Weiss, conhecido como Houdini. Foi o seguinte o teor da comunicação, tal como anotou, na hora, uma amiga de Ford, por nome Francis Fast:
- Por muitos anos - declarou a sra. Weiss espírito - meu filho aguardou uma palavra que me cabia enviar-lhe daqui. Ele sempre disse que, se fosse possível recebê-la, ele acreditaria. Condições ora surgidas na família, tornam necessário para mim enviar a palavra, para que ele possa transmitir a sua mulher o código combinado com ela. Se a família agir e acordo com a palavra-código, ele estará liberado para falar por si mesmo. A minha palavra é "FORGIVE" (Perdoa). Ponha-a em letras maiúsculas e entre aspas. A mulher dele conhecia a palavra e ninguém mais no mundo sabia dela. Perguntem a ela se a palavra que tenho tentado transmitir não é "FORGIVE". Inúmeras vezes tentei dizê-la a ele. Agora que ele está aqui comigo, tenho condições de enviá-la. Dou-a a vocês esta noite. Beatrice Houdini confirmará a verdade disto.
Despertado do transe e informado do teor da mensagem, Ford não se mostrou muito interessado no caso. Tinha suas mágoas de Houdini, por causa da terrível pressão que ele exercera sobre os médiuns durante anos a fio.
- Considerava-o um maravilhoso mágico - depõe Ford, em seu livro. - Era dotado, no entanto, de mente intolerante e de colossal convencimento.
Os amigos presentes, contudo, achavam que ele devia entrar em contato com a sra. Houdini, viúva desde 1926, como vimos. Ford acabou concordando. Levou pessoalmente o texto da mensagem da sra. Weiss à sua nora. Beatrice Houdini mostrou-se estupefata e declarou publicamente ser aquela "a única comunicação recebida, entre milhares de outras, até aquela data, que continha a singular e secreta palavra-chave conhecida apenas de Houdini, sua mãe e eu".
Em carta a Ford, cujo texto é transcrito no livro deste, ela confirma isso, acrescentando que, realmente, a palavra FORGIVE era a que Houdini havia esperado em vão, durante toda a sua vida, depois da morte da mãe.
Infelizmente, prossegue ela, a palavra secreta chegara muito tarde. Se tivesse vindo antes, teria mudado completamente a vida de seu marido. Apenas estranhava um aspecto, que ela própria reconhecia irrelevante, o de que a sra. Weiss chamara Houdini de Harry Weiss em vez de Ehrich, como costumava fazer. Quanto ao mais, estava tudo em ordem.
Ford esclarece ainda, que a mensagem não cuidava apenas da transmissão da palavra FORGIVE, mas abordava aspectos de "natureza íntima da família" que, obviamente, ele não se sentia autorizado a revelar. Creio legítimo supor que esse delicado aspecto tenha sido o difícil relacionamento da sra. Weiss, em vida, com a nora, por causa de divergência de caráter religioso que, à época, fora considerado insuperável.
É oportuno destacar, nestes comentários, que, segundo o texto mediúnico ditado pela sra. Weiss através de Fletcher/Ford, antes de prosseguir com o que fora planejado, Houdini precisava ter resolvidas umas tantas preliminares que, aliás, somente poderiam ser cumpridas com auxílio e participação do espirito de sua mãe, como ele próprio iria confirmar em comunicação posterior. Era preciso que, antes, a sra. Weiss também cumprisse o dever de perdoar sua nora, com a qual considerara impraticável entender- se, simplesmente porque a moça era cristã e ela queria uma esposa judia para o filho. Somente depois dessa demonstração de humildade penitente, estaria desatado o nó inicial e Houdini liberado para prosseguir na realização da parte que lhe tocava. Mesmo assim, ainda ficava todo o esquema na dependência da reação de Beatrice. "Se a família agir de acordo com a palavra-chave - ditara a sra. Weiss - ele estará liberado para falar por si mesmo". O que significa dizer que Beatrice também precisava demonstrar seu perdão em relação à sogra, sem o que Houdini continuaria inibido. Em outras palavras, tinha de começar tudo a partir do poder mágico e libertador do perdão. Isto explicava quanto era importante em todo o contexto essa única palavra-chave: FORGIVE.
Ao retirar-se, após haver ditado sua primeira mensagem, a sra. Weiss comentara com Fletcher que "uma vez transmitida aquela comunicação, estaria aberto o canal para a outra".
Esta outra, a que ela se releria, constituía o núcleo central do pacto que Houdini fizera, em vida, com a esposa, no sentido de que, se essa história de sobrevivência fosse mesmo realidade, ele enviaria um recado claro nesse sentido, utilizando-se do código secreto que somente os dois conheciam e que fora empregado nos números de palco que junto apresentavam. Como Houdini sempre fora noticia e fizera as coisas com certo espalhafato publicitário, o episódio do pacto fora amplamente divulgado na imprensa da época. Por isso, em cerca de dois anos decorridos após sua morte, foram muitas as mensagens supostamente vindas dele, em várias partes do mundo. Todas elas foram rejeitadas pela viúva, que não encontrava nelas as chaves secretas do código, segundo combinação feita com o marido.
Mesmo depois de aberto o caminho, como dissera a sra. Weiss, na sua comunicação, vários meses decorreram até que alguma coisa nesse sentido começasse a acontecer. Nem ninguém no grupo que frequentava as reuniões promovidas por Ford estava nisso particularmente interessado. Pareciam entender que, se a coisa tivesse de vir, precisaria ser espontânea.
Finalmente, em novembro de 1928, uma palavra solta, sem maiores explicações, foi passada ao grupo em que Ford trabalhava como médium. Nem ele, nem as demais pessoas reunidas naquela noite, haviam conhecido Houdini pessoalmente.
Ford declara que a transmissão da mensagem toda precisou de oito sessões diferentes, durante um espaço de dois meses e meio, sem que houvesse alguém ali particularmente interessado em contatar o espirito de Houdini ou o da mãe dele. Os pequenos fragmentos em que a comunicação como um todo foi dividida, eram encaixados no decorrer dos trabalhos normais do grupo. Fletcher, o controle de Ford, decidira anunciar as palavras relacionadas com o código, qualquer que fosse o assunto que, no momento, estivesse sendo tratado. Certa noite, ele interrompeu subitamente o que vinha dizendo e declarou:
- A primeira palavra é ROSABELLE e vai destravar as demais.
Uma quinzena depois, ele acrescentou outra palavra: NOW (agora), que, aliás, não figurava no código, parecendo ser apenas o sinal de que chegara o momento de transmitir toda a mensagem codificada. Numa terceira sessão, dias depois, novamente se apresenta a sra. Weiss e transmite a Fletcher o termo LOOK (veja), com a informação de que era a palavra que ocupava a sexta posição no código. Em sessões subsequentes, mais quatro palavras foram transmitidas, pelo mesmo processo homeopático: uma repetição de ROSABELLE e três novas: ANSWER (responda), PRAY (ore) e TELL (diga).
Houdini estava aprendendo a ser paciente e a submeter-se à disciplina de um grupo mediúnico, cuja prioridade estava posta nos próprios estudos e tarefas.
Na última reunião da série, Fletcher confessa sua dificuldade com a transmissão do complexo código e comenta:
- O homem (Houdini) me diz que transmitirá, em francês, as cinco palavras seguintes que explicam estas.
A coisa parecia cada vez mais confusa. Se estivesse do lado de cá da vida, Houdini trataria logo de questionar, para arrasar com a sua costumeira virulência, todo o procedimento, que não fazia até aquele ponto, o menor sentido. Do lado de cá, contudo, a visão teria de ser, necessariamente, diversa. Quando, afinal, conseguiu manifestar-se diretamente, Houdini falou de suas dificuldades, declarando que trabalhou durante três meses para conseguir transmitir as palavras e que nada daquilo teria sido possível sem a ajuda de sua mãe, que parecia mais lúcida do que ele.
- TELL é a última palavra! - informou Fletcher, certa noite. Você tem agora dez palavras. Examine-as detidamente. Foi uma dificuldade transmiti-las. Mas, segundo ele (Houdini) em altas vozes, elas estão certas!
E não era mesmo para enfrentar tais dificuldades? Não fora ele o mágico de fama internacional que tudo fizera para desmoralizar o processo mesmo da comunicação mediúnica e demolir para sempre a ideia da sobrevivência do espirito? E não dissera que não aceitava a mensagem recebida por Lady Doyle porque sua mãe não falava inglês e, que, portanto, não poderia ser a autora do texto? Estava agora enfrentando obstáculos quase intransponíveis simplesmente para transmitir dez palavras que ele próprio escolhera e botara em sequência especial, de modo a servirem de código de comunicação com a esposa. Se ele, Houdini, estivesse do lado de cá e Beatrice, como espírito, tentasse transmitir-lhe as palavras, ele diria logo: "Não aceito isso! Como iria Beatrice encontrar a menor dificuldade em me dizer dez palavras tão conhecidas de nós ambos? Esses médiuns são mesmo uns patifes e trapaceiros!"
De fato, muita gente não se dá conta da verdade transparente e irrefutável contida no dizer dos Instrutores da Codificação de que "a linguagem dos espíritos é o pensamento." Atenção: pensamento, não palavra.
Em meu livro Diversidade dos Carismas estudamos as dificuldades de um espírito para dizer que se chamava Drake.
Como o pato macho se chama, em inglês, drake, ele sempre se mostrava com um pato, para indicar o que queria dizer. Ou, pelo menos, era assim que os médiuns videntes o percebiam. Era a sua maneira de "dizer", projetando o seu pensamento na imagem do pato. Mas, os médiuns vários deles, não conseguiam captar corretamente esse pensamento, objetivado na figura de um pato. Por que aquilo? - perguntavam-se. Ele gostava de pato assado? Era caçador de patos? Ou criador? Ou vendia aves? Nada disso, o homem é que se chamara Drake...
Com toda a sua fantástica capacidade para criar truques, como iria Houdini-Espírito fazer uma mágica que levasse Fletcher (e Ford) a captar uma palavra como ANSWER (responda), ou LOOK (veja). O leitor já se imaginou numa situação dessas, na qual não pode falar e tem de usar a mímica ou outro recurso qualquer para se fazer entendido, "dizendo" o que deseja? Lembro-me de um programa com esse tema, nos Estados Unidos, nos idos de 50, baseado na comicidade do desesperado esforço dos convidados, geralmente atores e atrizes profissionais, para transmitirem o que tinham em mente (pensamento) sem a utilização da palavra.
Era esse, agora, o drama de Houdini. Por isso levou meses a lutar aflitivamente com uma dezena de palavras conhecidas e que nada tinham de extraordinárias ou singulares. Provavelmente não seria nada difícil a Fletcher, experimentado controle de Ford, captar-lhe o pensamento e transmiti-lo aos membros do grupo, através do médium, mas a gente fica no direito de supor que ele o fez de propósito, a fim de deixar o manifestante experimentar pessoalmente as dificuldades do processo que tanto combatera.
Bem, vencida essa dura etapa, da qual Fletcher se queixa, Houdini-Espírito parece ter dominado, afinal, o procedimento necessário ao intercâmbio com os "vivos" e pediu a Fletcher para dizer em seu nome, um texto, palavra por palavra, enquanto uma pessoa presente à reunião, escrevia. Até a hora exata do evento foi anotada: 9 horas e 23 minutos da noite.
- Um homem que diz chamar-se Houdini - dizia por Fletcher - mas cujo nome real é Ehrich Weiss, está aqui e deseja enviar à sua esposa Beatrice Houdini, o código de dez palavras que ele prometeu enviar-lhe se fosse possível comunicar-se. Diz ele que vocês deverão levar esta mensagem a ela e, em aceitando-a, deseja que ela dê sequência ao plano, conforme combinado antes da morte dele. Este é o código, conforme combinado antes da morte. Eis o código: ROSABELLE** ANSWER**TELL**PRAY**ANSWER**LOOK****TELL**ANSWER**TELL.
E prosseguia: "Ele deseja esta mensagem assinada a tinta por todos os presentes. Diz que o código somente é conhecido dele e de sua esposa, e que ninguém na terra senão esses dois, o conhece. Diz ele que, sob tal aspecto, não há perigo e que ela deverá tornar isso público. A notícia deve partir dela. Vocês são apenas instrumentos. Ele diz que quando isso ocorrer, haverá verdadeira tempestade, e que muitos tentarão destruí-la e ela será acusada de tudo quanto não for bom, mas ela é bastante honesta para cumprir sua parte do pacto, insistentemente revigorado antes da morte dele. Diz ele: Eu sei que ela se sentirá feliz, porque nenhum de nós dois acreditava ser isto possível" (O destaque é meu).
Observamos a dificuldade do processo e as extremas cautelas que Houdini toma, prevendo os problemas que a mensagem iria suscitar entre os "vivos". Ele sabia do problema. Não fora mestre consumado em criar esse mesmo tipo de contestação, enquanto esteve encarnado?
- O marido dela - continua Fletcher - diz que, ao reconhecer esta mensagem, ela deverá marcar logo um encontro com este instrumento (Ford) para que eu, Fletcher, fale com ela. Após ele repetir-lhe pessoalmente esta mensagem, ela deverá responder , com o código, que será apenas entendido por ela e ele (Houdini). O código que ela irá citar será suplementar a este e os dois juntos explicarão a palavra que resume tudo isto e essa palavra será a mensagem que ele deseja enviar-lhe. Ele se recusa a dizer essa palavra até que ela a transmita a ele.
A coisa continuava, pois, um tanto nebulosa e enigmática, a não ser, obviamente, para os dois, Houdini e Beatrice. Pelo que se depreende, havia uma parte, no procedimento, reservada a ela, e ele nada queria adiantar a respeito.
No dia seguinte a essa memorável sessão, deu-se, afinal, o esperado confronto. Foram portadores da mensagem o sr. Fast e o sr. John W. Stafford, da direção da revista "The Scientific American", ambos estranhos à sra. Houdini, como, aliás, os demais membros do grupo de Arthur Ford.
Beatrice Houdini estava de repouso num sofá, ao recebê-los. Sofrera uma queda, na semana anterior. Ao terminar a leitura do relato, visivelmente emocionada, deixou cair o papel e disse: "Está certo!" Permaneceu por alguns momentos em silêncio e, em seguida, perguntou: "Ele disse Rosabelle?" Os portadores da mensagem o confirmaram. E ela: "Meus Deus! E o que mais disse ele?" Os emissários repetiram-lhe toda a história, confirmando-a.
A sessão mediúnica pedida por Fletcher foi marcada para o dia seguinte, ainda em casa de Beatrice. Compareceram, além do médium Ford, três membros do grupo, um representante da imprensa e duas pessoas amigas pessoais dela, e de sua inteira confiança.
Logo que Ford entrou em transe, Fletcher anunciou a presença de Houdini, ou melhor, "daquele mesmo homem que viera na outra noite". A pedido do espírito, Fletcher saudou Beatrice Houdini, repetiu para ela as palavras do famoso código e pediu:
- Ele deseja que você diga se elas estão certas ou não.
- Sim, estão certas - respondeu Beatrice.
- Ele sorri - prossegue Fletcher, sempre através de Ford - e diz "Obrigado. Agora você pode prosseguir". Ele pede para você tirar a sua aliança e dizer-lhes o que significa Rosabelle.
A sra. Houdini retirou a mão esquerda de sob a coberta, removeu o anel e cantou em voz baixa uma pequena estrofe, que assim dizia:
"Rosabelle, sweet Rosabelle,
I love you more than I can tell;
O'er me you cast a spell.
I love you, my Rosabelle!"
Amo-a mais do que poderia dizer
Você me fez um encantamento
Amo-a, minha Rosabelle!)"
O leitor pode achar que não é uma grande canção e que os versos são pobres e banais, no que estaríamos de pleno acordo. É preciso imaginar, porém, a emoção daquele momento, em que o casal, temporariamente separado, em diferentes planos da vida, se reencontra através das barreiras da "morte" e relembra a musiquinha que ela cantou quando fizeram juntos o primeiro "show", muitos anos antes.
Como costumo dizer, as grandes demonstrações de sobrevivência do espírito são usualmente construídas em cima do trivial, quase sempre mais convincente para as pessoas envolvidas do que os feitos espetaculares: um apelido, uma palavra aparentemente sem sentido, uma sutil referência, que só o destinatário poderá entender, um gesto conhecido, um cacoete, uma lembrança fugaz do passado...
A próxima etapa do plano seria a da frase secreta, em francês, aludida numa das misteriosas comunicações anteriores e que ninguém, no grupo, entendera. Fletcher disse que Houdini-Espírito fazia o gesto de quem puxa uma cortina. Os circunstantes não estavam compreendendo o que se passava naquele momento, a não ser Beatrice, que falou emocionada:
- Je tire le rideau comme ça - disse ela. (Eu puxo a cortina, desta maneira).
Satisfeito com o bom andamento do encontro, Houdini passou a explicar o complexo mecanismo do código secreto. Vale a pena examiná-lo, ainda que sumariamente.
- As nove palavras, além de Rosabelle - começou ele, sempre através de Fletcher/Ford - produzem uma palavra do nosso código. A segunda palavra em nosso código era ANSWER. B é a segunda letra do alfabeto e, portanto a palavra ANSWER significa B. A quinta palavra no código é TELL e a quinta letra do alfabeto é E.. A décima segunda letra do alfabeto é L e, para chegar ao número doze, temos de usar a primeira e a segunda palavra do código.
Nessas condições, o código foi todo explicitado perante o grupo, na presença de Beatrice Houdini, até à conclusão final, que se resumia no seguinte:
- A mensagem que desejo enviar à minha esposa é: ROSABELLE BELIEVE! (Rosabelle, acredite!).
Nesse ponto Fletcher interpelou diretamente a senhora Houdini: "Está certo isso?" "Sim", disse ela, com indisfarçável emoção.
- Diga ao mundo inteiro - prosseguiu Houdini, através de Fletcher - que Harry Houdini ainda vive e o provará mil vezes mais.
Não perdera, pois, o hábito de ser um tanto espalhafatoso, desejando que o mundo todo tomasse conhecimento de sua sobrevivência. Não seria tão fácil como ele imaginava. E ele estava bem consciente das suas responsabilidades na questão e de quantos ele influenciara, com seu prestígio e seus livros, para que a grande mensagem da continuidade da vida fosse rejeitada ou mantida sob severa suspeição. Talvez por isso, as palavras seguintes tenham soado como espécie de confissão penitente:
- Fui perfeitamente honesto e sincero quando tentei refutar a sobrevivência, mas não recorri a truques para provar meu ponto de vista, pela simples razão de que eu não acreditava na veracidade da comunicabilidade. Não fiz, porém, mais do que me pareceu justificável. Sou sincero agora ao enviar esta mensagem, em vista de meu desejo de desfazer aquilo. Diga a todos aqueles que, por causa do meu equívoco, perderam sua fé, que se agarrem de novo à esperança e vivam convictos de que a vida continua. Essa é a minha mensagem ao mundo, por intermédio de minha esposa e deste instrumento.
Beatrice Houdini cumpriu a sua parte no pacto, proclamando verdadeira a mensagem recebida de seu falecido marido. Tal como ele previra, desabou sobre ela um temporal de injúrias e ataques irracionais, que Ford classifica como "do ridículo ao maldoso". Enquanto Houdini, em vida, combateu vigorosamente a ideia da sobrevivência do ser, não lhe faltaram aplausos; agora que vinha, como espírito, trazer o recado consolador de que a vida continua do outro lado, passava a ser mais uma vítima dos mistificadores, entre os quais se incluía, sua própria esposa. Acusaram-na até de haver passado o segredo do código a alguém e que esta pessoa, como sempre não identificada, o transmitira a Arthur Ford. Não há dúvida de que esta é uma das acusações que Ford chamaria de ridícula. Se toda a expectativa girava em torno do segredo do código, para que iria Beatrice enganar deliberadamente a si mesma, revelando a chave do enigma do qual dependia a eventual identificação de Houdini como espírito? Disseram outros que ela havia traído o marido que, em vida, tanto difundira sua convicção de que todos os médiuns eram uns refinados trapaceiros.
Ela, porém, manteve-se firme e digna na sua postura. "Era o que ele queria que eu fizesse - comentou - e é o que estou fazendo."
Certos da virulência da campanha de descrédito e das controvérsias que tudo aquilo iria suscitar, as pessoas envolvidas no episódio cuidaram de se precaver e documentar, como, aliás, o próprio Houdini recomendara nas suas mensagens. No dia seguinte ao da sessão, durante a qual ficou desvendado o enigma do código secreto, a sra. Houdini assinou um documento, em papel timbrado, de uso pessoal de Houdini, no qual declarava o que se segue:
- A despeito de qualquer alegação em sentido contrário, desejo declarar que a mensagem, em sua totalidade e na sequência combinada, a mim transmitida por Arthur Ford, é a mensagem correta pré-arranjada entre o sr. Houdini e eu.
Esse texto que Ford reproduz em fac simile no seu livro, está datado de 9 de janeiro de 1929, em Nova Iorque, e vem testemunhado por Harry R. Zander, representante da United Press, pela sra. Minnie Chester, amiga de muitos anos, de Beatrice Houdini, e John W. Sttaford, coeditor da prestigiosa publicação "The Scientific American".
Claro que a campanha difamatória assestou preferencialmente suas baterias sobre Arthur Ford. Houve tentativas de extorsão e desmoralização. Alguém assumiu a identidade dele para dar uma entrevista, publicada por um tabloide, e depois desmentida, sob promessa de livrar-se o falso Ford de uma ação criminal. Houve quem propusesse ação judicial contra a Liga espírita de Nova Iorque acusando Ford de estar mancomunado com a sra. Houdini e com a imprensa.
Arthur Ford, aliás, tinha até o direito de pleitear as elevadas somas em dinheiro colocadas à disposição de quem deslindasse o código secreto de Houdini, mas não quis cogitar disso.
Ao encerrar o relato, um capítulo inteiro de seu livro, tem uma palavra de simpatia em relação a Houdini, supondo que o competente mágico, agora como espírito desencarnado, estivesse a ajudá-lo, do lado de lá da vida, de vez que ele, Ford, ganhara "enorme publicidade" com a divulgação do episódio.
- Talvez - conclui o médium-escritor - ele desejasse prestar suas homenagens ao fato de que meu número fora apresentado não enquanto eu estava algemado, mas profundamente adormecido.
Os obstinados opositores da ideia da sobrevivência do ser insistem ainda hoje em contestar a realidade da comunicação póstuma de Houdini, rejeitando o testemunho escrito da única pessoa em condições de se pronunciar corretamente sobre o fato, a sra. Beatrice Houdini, viúva do famoso mágico e que com ele partilhava o segredo do complexo código.
- Houdini e sua esposa - lê-se na Enciclopédia Britânica -concordaram em realizar uma experiência com o Espiritismo: o primeiro a morrer deveria comunicar-se com o sobrevivente. Houdini morreu em Detroit, Mic., em 31 de outubro de 1926; sua viúva declarou, antes de morrer, em 1943, fracassada a experiência.
Com o devido e merecido respeito pela Britânica, que deve ter baseado sua informação em alguma fonte que considerou confiável, é difícil aceitar essa afirmativa. O livro de Ford, com o documento da sra. Houdini, em fac 1968, foi publicado em embora o "copyright" esteja datado de de 1958. Seja como for, o livro foi escrito 15 anos após a morte da sra. Houdini, em 1943. O leitor não é informado de onde, como e em que circunstâncias teria ela declarado o fracasso da experiência, após haver atestado a sua autenticidade em documento subscrito na presença de testemunhas absolutamente idôneas, como a sra. Minnie Chestar, sua amiga pessoal de longos anos.
E, afinal de contas, porque toda essa paixão desatada? Que mensagem era essa tão obstinadamente combatida? Que perigo específico representava ela para a sociedade? Que ameaças traria em seu bojo? Qual a razão de todo aquele esforço em destruí-la? Continha, porventura, algum ataque a princípios éticos? Punha em risco as estruturas sociais, religiosas e políticas da época? Nada disso. Dizia apenas que o ser humano sobrevive à morte do corpo físico!
Um dia, quando se examinar tudo isso retrospectivamente, o historiador do futuro estará coberto de razões se fizer o juízo de que foi um período obscurantista e insensato, este que ainda estamos vivendo.
Creio oportuno oferecer, de minha parte, algumas considerações finais, para recapitular, resumir e concluir este pequeno estudo.
A obstinação de Houdini contra os médiuns em geral, autênticos ou não - e, para ele, não os havia autênticos - levou-o a extremas consequências. Em alguns casos, como no da sra. Crandon, esposa do dr. Crandon, ele se deu mal, como informa o dr. Nandor Fodor. Médiuns reconhecidamente genuínos, nada ou muito pouco mereceram sua atenção, a não ser para atacar. É o caso de Dunglas Home, sobre o qual temos testemunho unânime de quem o conheceu e estudou os fenômenos por ele produzidos. Houdini prefere atacá-lo pelo lado fraco ou seja, seu fascínio pelas joias e pela alta roda internacional da época, bem como pelo lamentável caso Lyon, cuja sentença condenatória é uma incongruência jurídica no dizer do próprio juiz que prolatou.
É claro, porém, que havia figuras controvertidas nessa época, como os Irmãos Davenport. Henry Slade. e outro que produziu, sob rígidos controles, inquestionáveis fenômenos mediúnicos. É possível que tenha criado fraudes e truques outros, porque também comercializou suas exibições públicas. O saldo de sua atuação, contudo, é altamente positivo, no julgamento da documentação sobre ele existente.
O problema é que quando se descobriu que a mediunidade de efeitos físicos estava dando dinheiro, muita gente assumiu, sem o menor constrangimento e preparo, a condição de médium. Havia um público ávido de fenomenologia inusitada, também despreparado doutrinariamente e disposto a pagar pelos serviços dos médiuns, falsos ou legítimos, sem saber ou poder distinguir uns dos outros. O resultado foi desastroso, como era de prever-se.
Entre os muitos que se deixaram levar por tudo isso, movidos por uma obstinada atitude preconceituosa, podemos contar com Houdini, que arrastou consigo outros tantos, nessa postura irracional.
Esse é, portanto, o homem que, chegado ao mundo espiritual, desejava mandar a sua mensagem, tal como combinado com a querida Beatrice. Acabou conseguindo, utilizando-se das faculdades de um dos detestados "abutres humanos", mas, assim como ele próprio não teria acreditado, se estivesse do lado de cá da vida, os que se formaram pela sua escola, leram seus livros e ouviram seus testemunhos contra o Espiritismo, também rejeitaram sua demonstração póstuma, por maior que fosse de seu desejo de que ela fosse proclamada por todo o mundo, como a espetacular mensagem da época, ou seja, a de que o grande Houdini continuava vivo depois da "morte". Por isso, a despeito do depoimento escrito e testemunhado da sra. Beatrice Houdini, o que consta oficialmente é que falhou o famoso teste montado em cima do código secreto vigente entre ele e a esposa. Tudo isso, aliás, muito coerente com as teses prediletas que Houdini defendera bravamente enquanto viveu aqui, ainda que incoerente com a realidade espiritual que ele próprio testemunhara e que estava agora vivendo. Foi como se não tivesse dado certo a sua derradeira mágica, a mais importante da sua vida...
A despeito de tudo quanto pudemos observar neste estudo, não sejamos exageradamente severos com Houdini. Ele parecia honestamente convencido da patifaria dos que se apresentavam como médiuns. E eram muitos os que, de fato, trapaceavam. Seu erro básico esteve em não prestar mais atenção e observar com maior dose de humildade, aos médiuns legítimos, que sempre os houve. Talvez, até, movido, pelo seu orgulho profissional de ilusionista famoso e competente, não, pudesse ter aceitado como fenômeno insólito aquilo que era capaz de reproduzir com seus recursos de prestidigitador. Quando a manifestação mediúnica vinha através de pessoas, cuja idoneidade ele não teria o mínimo direito de questionar, como Lady Doyle, viu-se forçado a arranjar outra desculpa para a sua rejeição, a de que sua falecida mãe não falara nem escrevera inglês na vida.
Para colocar a questão dentro de uma equilibrada perspectiva, que nos leve, não propriamente a justificar a obstinação de Houdini no combate ao Espiritismo, mas a entender sua posição, creio necessário lembrar dois aspectos relevantes:
1) - Certos fenômenos físicos autênticos apresentados por médiuns da época e ainda hoje, não são, necessariamente, manifestações de espíritos desencarnados e sim fenômenos anímicos. Podem ser considerados nessa categoria, a movimentação de pequenos objetos ou de mesinhas e, como no caso da Palladino e de Slade, bem como alguns fenômenos ocorridos com Dunglas Home. Estão nessa classificação as manifestações reproduzidas por Nina Kulagina, na União Soviética, que se colocam, segundo a terminologia parapsicológica, como efeitos ou fenômenos psikappa. Nem aqui, contudo, podemos dogmatizar, declarando enfaticamente que os fenômenos decorrem de pura manifestação anímica, dado que podem ocorrer com algum conteúdo mediúnico, desde que detectado neles qualquer componente em que seja identificada a presença de um espírito desencarnado. A atitude dogmática não é boa conselheira neste campo especifico da pesquisa psíquica, como, aliás, em nenhum outro. Quero dizer com isto que, embora possamos prescindir da chamada "hipótese espírita", como muitos desejariam, não deve ser, sumária e radicalmente excluída, nos fenômenos de efeito físico, a possibilidade de eventuais interferências de espíritos desencarnados, além da óbvia participação do encarnado, que constituiria, por assim dizer, o "epicentro", como nas manifestações de "poltergeist". Em outras palavras, os fenômenos mediúnicos não podem deixar de ter um componente anímico, de vez que é da própria essência deles fluírem através dos recursos do ser encarnado, que funciona como sensitivo capaz de exteriorizar energias próprias que desencadeiam determinadas manifestações sensorialmente perceptíveis. Nos fenômenos de efeito físico, tal componente é necessariamente, mais relevante, podendo alcançar o limite extremo de 100% de participação do sensitivo, ponto em que se caracteriza o fenômeno anímico puro. Desde, porém, que algum espírito desencarnado serviu-se do fenômeno para manifestar-se ou transmitir alguma mensagem, ainda que velada e não verbalizada, identifica-se a manifestação mediúnica.
É justo, pois, admitir que pelo menos alguns dos fenômenos examinados por Houdini, pessoalmente ou através de livros e relatórios especializados, sejam da categoria anímica, isto é, promovidos pelo espírito encarnado do sensitivo. Tais casos dispensariam, em tese, a participação ativa de espíritos desencarnados.
As pessoas razoavelmente instruídas sobre essa fenomenologia sabem que o animismo puro não exclui, porém a realidade espiritual e nem a mediunidade, antes as confirma, ao informar que o espírito tanto pode atuar enquanto acoplado a um corpo físico quanto em estado de liberdade, após a morte corporal. Mas isto ele não estava preparado para admitir.
Com o que passamos ao segundo aspecto dos dois há pouco mencionados.
2) - Todos nós carregamos no íntimo insofismável realidade: a de que é muito difícil aceitar conceitos, verdadeiros ou não, que se oponham às nossas estratificadas convicções pessoais. Quem iria convencer aos senhores cardeais do século XVII que Galileu estava certo na sua teimosa afirmativa de que o sol era o centro do nosso sistema e não a Terra? Pois não estavam todos vendo, com seus próprios olhos, que o sol "nasce" de um lado e se põe de outro, girando em torno do nosso planeta? Sensação mais ou menos semelhante pode experimentar o leitor reencamacionista, como eu, ao ler um texto que pretenda convencê-lo exatamente do oposto, ou seja, de que a reencarnação é uma lamentável tolice. Isto quer dizer que argumentos contrários às nossas posturas precisam ser seguros, irrespondíveis e convincentes para nos fazerem mudar radicalmente de modo pensar, em aspectos de há muito consolidados em nossa estrutura cultural. A propósito, convém lembrar que o próprio Kardec confessa honestamente suas dificuldades iniciais com a doutrina da reencarnação, que os espíritos lhe estavam passando. Parecia-lhe isso corpo estranho ao seu pensamento. Os espíritos não se importaram muito com a sua oposição inicial, mesmo porque sabiam não ser ele um negador obstinado, disposto a rejeitar sumariamente aquilo que não estivesse de acordo com seus pontos de vista pessoais. Por fim, ele se convenceu. O conceito era lógico, racional, inteligente e explicava aspectos da vida que, de outra forma, permaneceriam incompreensíveis e contraditórios.
Essa atitude de humildade intelectual, que leva as pessoas amadurecidas a se renderem ante evidência irrecusável, é atributo indispensável àquele que busca a verdade, onde quer que ela esteja, seja ela qual for, ainda ao custo de desarrumar toda a caprichada arquitetura das convicções pessoais. Faltou isso a Houdini.
O que nos autoriza uma conclusão, a de que o combate sem tréguas ao Espiritismo pode ter resultado, em Houdini, de invencível orgulho. De um lado, o orgulho profissional de brilhante, mas vaidoso mágico que via nos médiuns, rivais e competidores a desafiarem sua competência naquele campo de atividade; de outro, o orgulho de não querer admitir uma realidade que punha por terra, em cacos, toda a sua arrogância de agnóstico. Parece ter sido inconcebível para ele chegar um dia a ter de confessar-se vencido pela evidência da realidade espiritual, que tanto combateu. No seu entender, cientistas e pensadores que aderissem aos postulados espiritas eram irrecuperáveis débeis mentais. Mesmo Robert Houdin, objeto de sua maior admiração e respeito caiu do pedestal e acabou vitimado pela sua obstinação contra o Espiritismo, simplesmente porque admitira a possibilidade de serem autênticos os fenômenos que testemunhou e sobre os quais teve a coragem moral de pronunciar-se.
Ainda bem que a vida não é só este curto espaço de tempo entre berço e túmulo e que, além de continuar, repete-se em outras passagens pela terra. De que outra maneira iríamos corrigir, cm nós, deformações filosóficas e de comportamento?
Houdini não escaparia à regra: ele também sobreviveu à morte corporal, assumindo a condição de espírito desencarnado. Tinha agora pela frente a tarefa pessoal e intransferível de refazer o que tentara demolir, mesmo porque desfazer está além de nossas possibilidades. Não podemos ir ao passado para mudá-lo. Temos de trabalhar com o futuro, ou seja, com este momento que está precisamente agora, passando por nós (ou nós passando por ele, como o quer J. W. Dunne). É com este fugidio, mas multiplicado fragmento de tempo, que vamos reconstruir a nós mesmos e, por conseguinte, o universo em que vivemos.
Não é difícil imaginar que, em sua próxima existência na carne, Houdini renascido, aceite a incumbência da mediunidade para repor nos seus devidos lugares as coisas que sua obstinação negativista desarrumou, tanto na sua cabeça como na de muita gente.
Que Deus o abençoe e o ajude nas suas tarefas retificadoras.
BURTON, Jean - Heyday of a Wizard, George G. Harrap, 1984, Londres.DOYLE, Arthur Conan - História do Espiritismo, Trad. Júlio Abreu Filho, Pensamento, 1960, S. Paulo.FODOR, Nandor - Encyclopaedia of Psychic Science, Citadel Press, 1966, Secacus, N.JFORD, Arthur - Nothing so Strange, Paperback Library, 1968, New York.HOUDINI, Harry - A Magician Among the Spirits, Harper & Brothers, 1924, New York e Londres.MIRANDA, Hermínio C. - "Um precursor esquecido: Daniel Dunglas Home". Reformador, abril de 1972, FEB. O Processo dos Espíritas, FEB, 1976, Rio.PODMORE, Frank - Mediuns of the 19th. Century, University Books, New Hyde Park, New York.PRICE, Harry - Fifty Years of Psychical Research, Longmans, 1939, New York.REVISTA ESPÍRITA - Trad. Júlio Abreu Filho, Edicel. S. Paulo RICHET, Charles - Traité de Metapsychique, Félix Alcan, 1923, Paris.SPENCE, Lewis - An Encyclopaedia of Occultism, University Books, 1960, New Hyde Park, New York.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe aqui seu comentário, sugestão, etc...