quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Prefácio de O Livro dos Espíritos por Hermínio C. Miranda

Prefácio de O Livro dos Espíritos por Hermínio C. Miranda

Hermínio C. Miranda



1. Viagem de volta

O lançamento de uma nova tradução dos livros da Codificação enseja releituras não apenas nos textos, mas em nossas próprias ideias, mesmo porque as obras relançadas costumam trazer prefácios ou apresentações e enriquecedoras notas de rodapé. Mais importante que isso, no entanto, é a oportunidade para um respeitoso reexame na metodologia, na seriedade e na competência que Allan Kardec imprimiu ao seu trabalho.

Convidado para escrever esta reapresentação, empreendi uma viagem de volta a antigas reflexões que me levaram a retraçar os passos do Codificador na elaboração da Doutrina e como ele próprio situou-se diante dela.

Foi, aliás, com esse objetivo que escrevi em 1972 o artigo intitulado “A obra de Kardec e Kardec diante da obra”, publicado em Reformador de março daquele ano e posteriormente incluído no livro Nas Fronteiras do Além (edição FEB). Entendia eu, e ainda assim penso, que não apenas a obra do Codificador é importante, mas também as posturas que ele assumiu diante dela. Ao primeiro volume deu o título singelo e significativo de O Livro dos Espíritos, colocando-se na modesta posição de discreto organizador.

Mas não era só isso que me interessava. Eu desejava saber como ele resolvera a delicada questão de formatar uma doutrina essencialmente evolutiva atenta às imposições do processo de expansão do conhecimento, e, ao mesmo tempo, estabilizada em bases sólidas insuscetíveis de desgaste e obsolescência. Em outras palavras: o que fez ele para identificar e separar com nitidez o que teria de ser permanente, nuclear, inegociável, em contraste com a transitoriedade característica e necessária à dinâmica da evolução. Sem o que não teria reservado espaço suficiente para acomodação das imprevisíveis e imponderáveis surpresas do futuro. No seu modo de ver, a doutrina teria de estar preparada até mesmo para modificar-se naquilo em que, porventura, viesse a chocar-se com descobertas científicas e com novos aspectos da verdade.

Essa corajosa atitude me impressionou fortemente quando de minhas primeiras explorações em O Livro dos Espíritos. O que, exatamente, significava isso? – me perguntava. Entendia-se minha perplexidade porque, na visão ignara do neófito, a afirmativa me parecia algo temerária. Seria o Espiritismo um corpo amorfo e invertebrado de ideias, pronto para modificar-se ao sabor dos ventos e dos eventos?

Logo, porém, me rendi ao óbvio. Com aquela postura, Kardec evidenciava, ao mesmo tempo, seu respeito à ciência e à verdade, tanto quanto sua convicção de que permaneciam nas estruturas doutrinárias que poderíamos chamar de conceitos pétreos, entre os quais, preexistência e sobrevivência do ser à morte corporal, imortalidade, responsabilidade de cada um por seus atos, palavras e intenções. Caracteristicamente, contudo, recorre ao termo “dogma” para formular a pergunta que levou o número 171 e que assim está redigida: “Em que se fundamenta o dogma da reencarnação?” (Destaque meu).

Escreve, a seguir [Parte Segunda – Capítulo V – “Considerações sobre a pluralidade das existências”], longa dissertação assinalada com o número 222 e que assim começa: “Não é novo, dizem alguns, o dogma da reencarnação...”. E acrescenta: “Nunca dissemos ser de invenção moderna a Doutrina Espírita. Constituindo uma lei da Natureza, o Espiritismo há de ter existido desde a origem dos tempos...”.

Estamos lidando, portanto, com leis naturais, que não exigem adesão em termos de fé ou crença; tanto faz você crer como não, é desse modo que elas operam. Ninguém se reencarna porque crê ou morre porque não crê. Não há, portanto, o que temer quanto à pureza e à estabilidade das leis, elas são puras e estáveis.

Por outro lado, ao caracterizar a reencarnação como dogma, Kardec a situa no centro mesmo da realidade espiritual, componente aglutinador e ordenador do sistema de ideias elaborado a partir dos ensinamentos dos Espíritos. Se reencarnamos, somos seres preexistentes e sobreviventes, ficando sem espaço ideológico fantasias como céu, inferno, purgatório, exclusividade salvacionista, unicidade da vida e ressurreição da carne. Além disso, destaca-se a inutilidade de ritos, sacramentos, celebrações e intermediação sacerdotal entre o ser humano e Deus. Em outras palavras: a chamada “salvação” – o Cristo preferiu falar de libertação – tem de resultar de um bem-sucedido e responsável projeto pessoal de cada um de nós, independente de filiação a esta ou àquela instituição religiosa.

É necessário atentar para o fato de que o termo dogma não está sendo empregado nesse contexto no sentido teológico católico. Lê-se em Aurélio que dogma constitui “ponto fundamental e indiscutível de uma doutrina religiosa e, por exemplo, de qualquer doutrina ou sistema”. 

Como, no entanto, preservar, sem desvirtuá-los, os postulados doutrinários básicos e, ao mesmo tempo, permitir e até estimular a expansão do conhecimento potencial neles contidos?

Tínhamos já diante dos olhos a melancólica experiência cristã. Os ensinamentos do Cristo nunca estiveram em questão e sim o que se fez deles. Já se detectavam desvios graves, quando, entre o segundo e o terceiro séculos, o movimento gnóstico surgiu para tentar repor as coisas nos seus devidos lugares. Fracassou, como fracassariam outros impulsos restauradores: o dos cátaros no Languedoc, entre os séculos XII e XIV; o idealismo de Francisco de Assis, também no século XIII; e a Reforma Protestante, no século XVI, para citar apenas os mais importantes.

O Espiritismo retomou a tarefa no século XIX e seu êxito ou malogro dependem, como sempre, de nós. Léon Denis alerta em seu livro No Invisível, que “o Espiritismo será o que o fizerem os homens”. Atenção para a sutileza da advertência – o ilustrado continuador de Kardec distingue, neste ponto, Doutrina Espírita de Espiritismo. Ele não diz que a Doutrina será o que dela fizermos, mas que o Espiritismo, sim, estaria exposto a deturpações promovidas por nossa incúria e deformações culturais e de caráter.

Temos sobre isso o fato de que, a despeito de tudo, preservou-se a doutrina de comportamento pregada e exemplificada pelo Cristo, ao passo que as estruturas teológicas adotadas pelo Cristianismo seguiram na contramão do processo evolutivo da Humanidade em grande parte porque o novo modelo tentou isolar-se de tal modo que acabou ele próprio engessado.

A decisão foi de uma infelicidade total, porque autodestrutiva. Quando a ciência começou a revelar novos aspectos da verdade foi um desastre. O primeiro impacto de porte foi causado pelo anúncio de que o Sol é o núcleo de nosso sistema planetário e não a Terra. As implicações dessa descoberta científica foram devastadoras. Pela primeira vez via-se dramaticamente exposta a insensatez de ignorar o processo vivo e contínuo por meio do qual o ser humano se empenha na decifração progressiva dos enigmas do Universo. Qualquer corpo de ideias que a isto se oponha ou o ignore estará condenado ao malogro.

A Doutrina Espírita não corre esse risco, pois nasceu aberta para o futuro, mas é necessário que o Espiritismo se mantenha ligado ao que ocorre à nossa volta, atento à sábia advertência de Léon Denis.

Muito tenho meditado sobre tais aspectos e sobre alguns deles alinhei umas tantas reflexões. Por exemplo: Qual a leitura espiritual a ser feita do autismo? Existe espaço na Doutrina dos Espíritos para conceitos contemporâneos como o do inconsciente? Que diferença – se é que há – pode ser detectada entre Alma e Espírito? Que entendimento devemos ter do fenômeno da personalidade múltipla? O que temos a dizer sobre as experiências de quase morte? Que contribuições pode (e deve) a doutrina das vidas sucessivas oferecer à psicologia? Em que pode a realidade do perispírito influenciar a biologia, a genética, a medicina? Que sugestões tem a Doutrina dos Espíritos a oferecer à sociologia, ao ensino, à política, ao direito ou à economia?

Com essas e outras perguntas em mente, creio que sempre haverá algo significativo a aprender-se com uma análise mais atenta do roteiro percorrido pelo professor Rivail na elaboração de seus livros.

2. Os Espíritos escrevem um livro

Tudo começa, como sabemos, com O Livro dos Espíritos, por ele reservado para os postulados básicos da doutrina, com um mínimo possível de interferência pessoal, deixando a palavra com os Instrutores desencarnados.

O dr. Canuto Abreu (in O Primeiro Livro dos Espíritos – “Notas do tradutor”) chama a atenção para o fato de que Kardec entendeu que a segunda edição da obra deveria “... ser considerada como trabalho novo”. Canuto concorda com a observação e a reforça, declarando que assim “deve” ser.

Para o dr. Canuto, a Terceira Revelação encerrou-se “... com o último segundo do dia 18 de abril de 1857...” “(...) Tudo quanto Allan Kardec, investido de sua nobre missão e inspirado do Alto pelo Espírito da Verdade, escreveu a partir desse derradeiro segundo, sem exceção – acrescenta (p. XXVIII) –, foi feito segundo os fundamentos lançados por ordem e sob o ditado do primeiro Livro dos Espíritos, mas de conformidade com o critério humano do Missionário”.

Vejamos, em suas próprias palavras, a avaliação conclusiva do dr. Canuto.

Portanto – diz ele (p. XX e XXI) –, “na primeira edição, está a Doutrina Espírita segundo Espíritos Superiores liderados pelo Espírito da Verdade, dada por intermédio de três médiuns ingênuos que dirigiam inconscientemente um aparelho mecânico primitivo sob as vistas do autor.

Na reimpressão de 1860, acha-se a Filosofia Espírita segundo Allan Kardec, baseada em parte na Doutrina Espírita da primeira edição e em parte no ensinamento de outros Espíritos, por meio de vários médiuns.

Na edição primitiva, temos o ensinamento espírita direto, imediato, genuíno, espontâneo, puro de origem e vivo como água de rocha, inteiramente novo ou renovado para a época, dado por Espíritos Prepostos por intermédio de médiuns inconscientes. Este ensinamento era providencial e visava estabelecer os fundamentos da verdadeira Doutrina Espírita, imune de erros e prejuízos.” (Destaque meu).

Isso não quer dizer, obviamente, que os Instrutores Espirituais tenham abandonado a tarefa logo após concluído o texto inicial no qual ficaram registrados os princípios fundamentais da Doutrina Espírita. O Codificador ficou com liberdade suficiente para dar prosseguimento à parte que lhe competia, mas, ainda e até o fim, assistido de perto pelos seus amigos invisíveis.

A etapa seguinte começa, portanto, com a elaboração da segunda edição de O Livro dos Espíritos. E o Codificador explica que razões o levaram a essa decisão e que critérios adotou no desenvolvimento de seu trabalho.

3. Mediunidade, território não mapeado

Concluída a elaboração da Doutrina Espírita e a reordenação e ampliação que lhe deu na segunda edição, Kardec dedicou-se à temática de O Livro dos Médiuns.

A mediunidade era e continuaria sendo de fundamental importância para o intercâmbio entre as duas dimensões da vida; situava-se, portanto, em condição de elevada prioridade um estudo sobre suas complexidades e enigmas.

Como de hábito, o livro contou com destacada participação das entidades em um momento em que Kardec passava a explorar território ainda não mapeado.

Em mais de uma ocasião, ele expõe sua opinião, oferece sugestões, mas adverte para a possibilidade de opções e alternativas que só o tempo seria capaz de definir com maior precisão. Uma vez mais, é necessário lembrar: ele não dogmatiza.

A mediunidade é um dos componentes do bloco central da Doutrina, mas ainda não se sabe tudo sobre seus mecanismos operacionais. A qualquer momento – até hoje é assim – ela pode surpreender com aspectos inusitados de difícil enquadramento em um rígido esquema de categorias preestabelecidas, que necessitam ser mais trabalhadas pela observação atenta e pela experiência. Isto é particularmente válido para a interação mediunidade/animismo, por exemplo.

Demonstração explícita dessa postura encontramos, entre outras passagens, no Capítulo VI, “Das manifestações visuais”, de O Livro dos Médiuns.

No “Ensaio teórico sobre as aparições”, números 101 a 110, expõe o Codificador suas reflexões e encerra o módulo com o que caracterizei em Diversidade dos carismas (Volume I, p. 278), como “... declaração de humildade digna de seu porte moral e intelectual”, ao escrever:

Longe estamos de considerar como absoluta e como a última palavra a teoria que apresentamos. Novos estudos sem dúvida a completarão, ou retificarão mais tarde; entretanto, por mais incompleta que ainda seja hoje, sempre pode auxiliar o estudioso a reconhecer a possibilidade dos fatos, por efeito das causas que nada têm de sobrenaturais.

Minha análise desse testemunho é a seguinte:

É digno do maior respeito alguém como Kardec que – empenhado a fundo na elucidação de questões vitais ao entendimento dos mecanismos da vida e contando com o apoio de eminentes espíritos – se recusa a assumir postura de “dono da verdade”, mas não apenas isso, deixa aberta a questão a futuros estudos, contentando-se com a satisfação de ter dado a sua contribuição, ainda que incompleta, ao seu esclarecimento. (Diversidade dos carismas, Vol. I, p. 279)
O Livro dos Médiuns saiu em 1861.

4. Evangelho – o “Código Divino”.

Entre 1861 e 1864, ele preparou O Evangelho Segundo o Espiritismo, originariamente sob o título de l’Imitation de l’Évangile sélon le Spitisme. (Tive oportunidade, a pedido da FEB, de comparar palavra por palavra a primeira edição francesa com a tradução brasileira do texto definitivo e escrever para a edição comemorativa o comentário.) “Anotações à edição brasileira” (HCM).

Nessa obra, Kardec expunha sua opção pela moral cristã, não a do cristianismo vigente, mas a original, a do Cristo. É relevante nela a presença dos Instrutores Espirituais, mas o desenvolvimento do trabalho é seu, pessoal. Kardec estava entrando em território minado, ao defrontar-se com um bloco inteiriço de ideias tidas por insuscetíveis de qualquer espécie de discussão, muito menos de contestação e menos ainda de reformulação.

Não se tratava mais do Deus bíblico, antropomórfico, interferindo pessoalmente nos menores detalhes da vida de cada um de nós, para punir ou premiar. Em vez de tentar o incongruente – uma “definição” para a Divindade – a Doutrina dos Espíritos, em suas palavras de abertura, situava Deus como “... inteligência suprema, causa primária de todas as coisas”. Significativamente, Kardec não pergunta QUEM é Deus, mas o QUE é Deus.

É nesse momento que Kardec tem significativas escolhas a fazer. Deixa de lado o que hoje chamaríamos de biografia de Jesus – Seus atos e os milagres –, bem como o conteúdo profético de algumas passagens evangélicas e os aspectos que a Igreja tomou para montar suas estruturas dogmáticas, para se fixar no “ensino moral”, que ele caracteriza como um “código divino”, ponto pacífico em torno do qual poderiam, eventualmente, reunir-se “todos os cultos”. Isto continua verdadeiro no sentido de que qualquer corpo filosófico, científico e religioso de ideias há que levar em conta não apenas um código ético, mas a realidade espiritual como um todo.

A Igreja, porém, chegara primeiro, ocupara o território e não estava disposta a ceder o mínimo espaço a novidades que expunham cruamente suas fragilidades ideológicas e suas práticas. Pelo teor eminentemente subversivo, a doutrina das vidas sucessivas, sozinha e por si mesma, era suficiente para desestabilizar o sistema concebido como verdade absoluta e eterna.

Todo o esforço voluntário do cristão ou a ele imposto concentrava-se na tarefa de conseguir a “salvação” de sua alma, ou seja, a conquista de um céu de felicidade eterna junto de Deus, evitando a condenação irrecorrível a um inferno, igualmente eterno, de tormentos inconcebíveis.

5. O Céu e o Inferno

Tornara-se imprescindível e urgente explicitar que tipo de releitura tinha a Doutrina dos Espíritos a oferecer sobre os dogmas vigentes e por quê. E mais: o que era, realmente, a morte, que história era essa de anjos e demônios, em que consistia, afinal, o intercâmbio entre “vivos” e “mortos”, que a Igreja condenava de modo tão veemente e severo.

Essa foi a tarefa deste livro – O Céu e o Inferno.

Mais uma vez cabe a Kardec dar à obra o rumo e o formato que desejasse, mas os Instrutores acompanham o trabalho enquanto numerosas entidades trazem-lhe mediunicamente o depoimento de suas surpresas, decepções e revoltas na dimensão póstuma. Há entre elas, espíritos infelizes e sofredores em variada gradação. Há suicidas, criminosos arrependidos, rebeldes inconformados e os que relatam dolorosas experiências suscitadas pelo mecanismo de correção de rumos que a Lei Divina se vê obrigada a impor em nosso próprio interesse evolutivo e, em última palavra, visando à estabilidade da ordem cósmica. Mas há, também, testemunhos convincentes de entidades felizes e pacificadas.

Não tinha sentido, portanto, acenar com o prêmio de um paraíso idílico para aqueles que se mantivessem fiéis aos preceitos dogmáticos e às práticas eclesiásticas. Estávamos de volta à doutrina de comportamento pregada e praticada pelo Cristo, segundo a qual cada um de nós é responsável pela construção do Reino de Deus em si mesmo.

6. A Gênese – incursões pela ciência da época

O livro seguinte seria A Gênese, no qual Kardec recapitula pontos fundamentais da Doutrina, como o da existência de Deus, o problema do mal e o papel da ciência; oferece suas reflexões sobre astronomia, espaço e matéria, bem como sobre as origens da vida. Estuda, ainda, os milagres e as predições ou profecias, aspectos que havia deixado temporariamente à margem ao elaborar O Evangelho Segundo o Espiritismo.

7. A permanência e a transitoriedade

Vejo na sequência dos livros um deliberado propósito de deixar perfeitamente caracterizados o essencial e o acessório, a permanência, de um lado e o transitório do outro, a fim de garantir às ideias nucleares da Doutrina dos Espíritos espaço próprio no qual pudessem ser preservadas na sua integridade originária, mas não imobilizadas a ponto de inibir a acomodação das verdades novas a que Kardec aludira.

Temos na Doutrina, os nossos óculos, a lente, o microscópio e o telescópio, nosso instrumento de busca, aprendizado e alargamento de fronteiras.

O Livro dos Espíritos ocupa-se do permanente, mas sem caracterizá-lo como dogma em sua conotação católica. E nem precisaria fazê-lo, pois as leis naturais não são dogmáticas, são o que são; existem.

A partir de O Livro dos Médiuns, Kardec passa a explorar áreas de conhecimento que, a seu ver, precisavam de uma leitura espírita, a fim de ampliar as fronteiras da Doutrina dos Espíritos. Isto se evidencia com clareza em títulos explícitos, como em O Evangelho Segundo o Espiritismo e em A gênese, os milagres e as predições segundo o Espiritismo. Implicitamente, porém, está nessa mesma categoria o próprio O Livro dos Médiuns, que trata da mediunidade segundo o Espiritismo, e O Céu e o Inferno como visão espírita da realidade póstuma.

Atitude semelhante adotaram seus continuadores imediatos – Gabriel Delanne, Léon Denis, Alexandre Aksakof, Ernesto Bozzano, Paul Gibier, Camille Flammarion e outros. 

A tarefa continuaria, já em nosso tempo, com a Série André Luiz, que demonstrou mais uma vez que se pode (e se deve) empreender esse tipo de exploração atualizadora e renovadora sem prejuízo para a essência da Doutrina dos Espíritos; pelo contrário, mantendo-a intacta, confirmando-a e enriquecendo-a sobremaneira.

Isso não quer dizer que devamos abandonar nas prateleiras do esquecimento obras como O Céu e o Inferno e A Gênese. Elas foram de indiscutível utilidade à época em que foram lançadas, serviram durante mais de um século e continuam sendo necessárias ao entendimento das implicações da Doutrina dos Espíritos, na sua interação com filosofias, religiões e ciência então dominantes, tanto quanto em face das que hoje prevalecem.

É de se anotar que os conhecimentos científicos e a tecnologia gerada no bojo deles evoluíram consideravelmente no decorrer do século e meio que nos separam do lançamento do livro básico da Codificação, mas a abordagem materialista prevalece, talvez até agravada, ainda que numerosos e destacados cientistas venham progressivamente assumindo posturas mais abertas para a realidade espiritual, ou, no mínimo, menos reservadas.

É bom que se navegue pelos textos nos quais Kardec enfrentou esse problema a seu tempo. Os argumentos com os quais analisa as estruturas teológicas e as práticas religiosas, as posições materialistas continuam válidos e dignos de atenção, pela simples razão de que, século e meio depois, temos gente ainda falando em céu, inferno, salvação, ressurreição, unicidade da vida e dogmas, como se fossem intocáveis verdades eternas. Gente que ainda não tomou conhecimento, não se convenceu ou rejeita e até combate a realidade espiritual na qual estamos todos inseridos.

Portanto, nada envelheceu nem se tornou obsoleto na Doutrina dos Espíritos. Reiteramos: ela não se fundamenta em especulações teóricas e sim em leis naturais. Se alguma correção ou modificação tiver de ser feita em aspectos subsidiários e complementares, que se faça, sem temores quanto à sua integridade. Kardec deixou-a preparada para tal eventualidade.

8. Para concluir

Você que me leu até aqui tem todo o direito de perguntar: “Mas, afinal, o que você quer dizer com as coisas que está dizendo?”.

A revisitação aos textos básicos colhidos e elaborados por Allan Kardec e ao roteiro que ele seguiu para ordenar os ensinamentos de seus Amigos Espirituais nos oferece oportunidade para alinhar alguns tópicos merecedores de mais amplas meditações.

Vamos colocá-los em ordem.

Primeiro – A Doutrina que se depreende daqueles ensinamentos é lúcida, competente e de uma paradoxal simplicidade a despeito de suas amplas e profundas implicações.

As ideias nucleares nela contidas não resultam de especulações teóricas meramente intelectuais mais ou menos ociosas; são expressão textual de leis naturais, não impostas e nem colocadas como objeto de fé ou crença – são, pura e simplesmente, realidades cósmicas. É bom lembrar a esta altura que Paulo entendia a Fé como antecipação do conhecimento (Epístola aos Hebreus, 11:1.). Também recomendou que nos ocupássemos das coisas invisíveis, que são eternas, e não das passageiras coisas visíveis (2 Cor 4:18.). Estava certo o grande pensador cristão do primeiro século. Há, na verdade, a fé que crê e a que sabe. Como lembrou Kardec, a Fé tem que passar pelo teste da racionalidade, diante da qual nada tem a perder; ao contrário, tem tudo a ganhar em confiabilidade e convicção.

Segundo – “... a Doutrina – escreveu Kardec, em A Gênese, cap. I, número 13 – não foi ditada completa, nem imposta à crença cega...” (Itálicos no original). (Allan Kardec, A gênese, os milagres e as predições segundo o Espiritismo, tradução de Albertina Escudeiro Sêco, da 4ª edição, 1868, Edições - CELD, Rio de Janeiro, 2003). Se assim fosse, estaria em contradição consigo mesma, de vez que a evolução é de sua própria essência. Sempre haverá, portanto, em torno dela, regiões pouco exploradas e até ignoradas à espera de estudo. É necessário, sim, preservar a pureza doutrinária, mas não sufocá-la em uma redoma que lhe retire o oxigênio do qual necessita para interagir com o que se passa à sua volta. Ela é o nosso instrumento de trabalho, de aferição e de busca. É até possível que o Cristo estaria falando disso quando ensinou que era Caminho, Verdade e Vida. De fato, o estudo das Leis Divinas é caminho e roteiro para se chegar à Verdade e é com a Verdade que chegaremos ao melhor entendimento da vida. “Conhecereis a Verdade – disse Ele –, e a Verdade vos libertará.”

A dicotomia permanência e transitoriedade impõe um desafio que necessita ser definido com clareza, a fim de ficar bem resolvida em nós a posição a ser assumida. As leis são definitivas, acabadas, irretocáveis, insuscetíveis de modificação ou aperfeiçoamento; o conhecimento, não – ele é móvel, progressivo, crescente e sujeito à obsolescência em alguns de seus aspectos, a fim de que se possa renovar e expandir-se. Tais diretrizes foram claramente explicitadas pelas entidades instrutoras quando anunciaram a Kardec que ele teria de voltar em nova existência para dar continuidade ao seu trabalho. Voltar para que se viesse apenas para repetir o que já dissera?

Não há o que temer, portanto, pela Doutrina Espírita em si mesma e nos seus fundamentos – eles são puros e estáveis. Deve-se temer, sim, pelo que se fizer de equivocado a partir de tais conhecimentos. Os conteúdos doutrinários encontram-se preservados no texto de O Livro dos Espíritos, que, ao contrário dos escritos evangélicos primitivos, espalharam-se em milhões de exemplares em numerosas línguas vivas.

Terceiro – Falávamos há pouco de áreas ainda não suficientemente exploradas ou até desconhecidas. Uma delas está na interação Espiritismo e Ciência. A Doutrina tende a uma aceitação cada vez mais ampla por parte daqueles que costumam considerar seus postulados como simples objeto de fé, crença, descrença, dúvida ou rejeição. Mantêm-se estes na expectativa de pronunciamentos decisivos que a Ciência como um todo ainda não está resolvida a proclamar, ainda que crescente número de cientistas e pesquisadores já se tenham declarado convencidos da realidade espiritual subjacente. A Doutrina, por sua vez, tem relevantes contribuições a oferecer à Ciência, sempre interessada em abrir novos caminhos.

Podemos alinhar alguns deles. As ciências de radical psi, por exemplo – psicologia, psiquiatria, psicanálise –, necessitam de criativos e fecundos inputs já instalados na Doutrina, como existência, preexistência e sobrevivência do ser à morte corporal e, por conseguinte, reencarnação.

Em idênticas condições de expectativa estão os ramos do conhecimento que trabalham com o ser biológico como a genética, em busca de melhor entendimento de funções e disfunções orgânicas e mentais. É inegável a falta que faz neste vetor científico o conceito de perispírito na sua função de organizador e administrador do corpo físico no processo da interação Espírito e matéria, bem como na continuidade da vida após a morte.

Ao escrever isto, testemunhamos o grande debate em torno do projeto genoma que conseguiu, afinal, mapear o sistema genético. Persiste, no entanto, a grande questão: o que fazer desse novo conhecimento? Será o gene apenas uma espécie de software bioquímico regido por combinações aleatórias? Não teria, porventura, um componente psíquico, ou melhor, espiritual? Como vão parar na programação genética comandos cármicos que suscitam, por exemplo, marcas de nascença que se reportam a vidas anteriores? Como se combinam ou descombinam em uns tantos de nós para, eventualmente, disparar um processo canceroso, uma deficiência cardiovascular, uma alergia ou coisas ainda mais complexas como o autismo, a síndrome de Down, a genialidade ou a idiotia? Que impulsos determinam que o material nutritivo recebido da mãe produz, a partir de um ovo fecundado, um corpo físico com cada célula em seu lugar, com suas estruturas e funções específicas e ordenadas em uma afinada (ou desafinada) orquestração? Será apenas um jogo bioquímico de acasos? Como é que o corpo “sabe” que com aquela matéria-prima tem de construir células nervosas, sanguíneas, ósseas ou musculares? E depois de pronto o corpo, como ele se desenvolve, mantém-se e se renova em um contínuo processo de troca com o ambiente em que vive?

E mais: demonstrada como está a sobrevivência do ser à morte corporal – por mais que ainda se relute em aceitá-la – como explicar a continuidade do pensamento e da vida se o cérebro físico se desintegra?

Preservar a Doutrina dos Espíritos é, decididamente, nosso compromisso. O Espiritismo está apoiado nela e seus postulados fundamentais estão documentados em O Livro dos Espíritos. Temos nela um instrumento de busca, aprendizado e alargamento de fronteiras, não uma finalidade em si mesma.

O que desejamos ou pretendemos, afinal, fazer do Espiritismo?

Essa é uma das perguntas que a nós mesmos podemos e devemos formular, em um momento como este, em que somos solicitados a uma releitura de Kardec.

Afinal de contas, se ele tivesse preferido limitar-se ao lançamento da Doutrina dos Espíritos e permanecer dentro dela sem dar mais um único passo, só teríamos hoje a primeira edição de O Livro dos Espíritos para que fizéssemos dele o que entendêssemos e desentendêssemos.

A física não se deteve nas formulações de Aristóteles ou Demócrito, nem a astronomia parou em Kepler, Copérnico ou Galileu, por mais inovadoras e até revolucionárias que fossem para a época em que foram concebidas. E não terá chegado ao fim de seu caminho evolutivo com Einstein e a física quântica.

Mesmo depois de ultrapassados esses limites, em futuro que ainda não somos capazes de imaginar, continuarão válidos os fundamentos da realidade espiritual compactados em O Livro dos Espíritos.

Kardec estava certo em caracterizá-los como expressões das leis naturais e teve o bom senso de deixar bem claro que nada de novo estava sendo inventado para compor o corpo doutrinário que lhe foi confiado. As leis naturais contidas na física ou na astronomia foram confirmadas; o que nelas não se enquadrava eram suposições e hipóteses e foi superado.

A essência do conhecimento sobre a realidade espiritual está à nossa disposição nas estruturas doutrinárias, mas temos de entender que a busca em torno desses preceitos nucleares não termina com aquela etapa de trabalho; ao contrário, começa ali.

Foi o que ele, Kardec, fez do Espiritismo, como também o fizeram seus continuadores imediatos – Denis, Delanne, Aksakof, Bozzano, Geley – e outros tantos que a estes sucederam ao longo de quase século e meio.

E nós, os que acabamos de atravessar os portais do século XXI, o que estamos fazendo? E o que farão os que vierem depois de nós? E o que faremos nós próprios, quando para aqui retornarmos em novas existências?

Será que não aprendemos com o lastimável episódio histórico que fez da Doutrina de Jesus o cristianismo institucionalizado que hoje conhecemos?

Jesus já nos falara das leis naturais a que se refere Kardec. “Vim para confirmar a lei; não para revogá-la” – disse.

Nem por isso deixou de dar novo sentido e alargar a visão que tínhamos delas. Preveniu-nos, ademais, que tinha mais coisas a dizer e ensinar, o que ficaria para um tempo em que estivéssemos preparados para dar mais um passo à frente.

Mesmo sujeitos aos temporais das paixões humanas, preservou-se nos escritos evangélicos Sua Doutrina porque eram transparentes os ensinamentos contidos no Sermão do Monte, nas parábolas, nas metáforas colhidas nos fatos simples da vida: a sementeira, a qualidade do solo, a colheita, os frutos, as flores, as pragas, a chuva, o sol, a pesca, as estações do ano.

Há que se entender, portanto, que preservar a Doutrina dos Espíritos é uma coisa – imobilizá-la é outra. Ela precisa exercer sua função de irrigar áreas cada vez mais amplas do conhecimento, a fim de nos proporcionar uma leitura da vida em toda a sua plenitude, segundo seus postulados básicos.

Hermínio C. Miranda
O Livro dos Espíritos - Allan Kardec,
prefaciado por Hermínio C. Miranda
Mundo Maior Editora, 2012.

Link para o artigo citado no início do texto:

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