Justificação pela fé e obras da lei
Almir Palácio
A doutrina da justificação pela fé elaborada pelo apóstolo Paulo de Tarso, há já dois mil anos passados, continua sendo incompreendida e erroneamente, interpretada pela grande maioria dos cristãos, apesar do Cristianismo, nesse longo período de sua existência, ter se transformado no maior movimento religioso que a história de todos os tempos conheceu.
Conforme explicada pelo apóstolo em sua Epístola aos Romanos, onde ele a expõe longamente, ela foi formulada para definir os fundamentos da nova fé, sobre os quais se sustentaria toda a estrutura doutrinária da religião nascente, como ele o entendia, e se destinaria também para diferençar as atividades cristãs da rígidas práticas e formalismos da religião judaica.
As incompatibilidades entre as duas religiões breve entremostraram serem muitas, e Paulo não via como conciliá-las a fim de que, entre ambas, viesse a existir uma convivência harmoniosa e pacífica. O apóstolo compreendeu logo que o Cristianismo deveria desvincular-se do judaísmo. Para tanto seria necessário dotá-lo de conteúdo doutrinário próprio, sem qualquer vínculo com a velha religião, dentro da qual teve a sua origem.
À época de Paulo, o judaísmo havia alcançando o ápice em seu organismo formalista. Toda a prática na religião judaica havia se transformado nos mais sofisticados exteriorismos. Cerimônias, atos, rituais, sacrifícios, comemorações, simbolismos obedeciam a uma rigorismo exacerbado, onde o aspecto religioso espiritualizante cedera lugar aos interesses imediatistas da vontade política do povo hebreu. Nacionalistas, dominados pelo poderio das legiões romanas, os hebreus, submetidos à condição de escravagismo, ansiavam muito mais pela sua liberdade política, pela qual lutavam desesperadamente. A atividade religiosa entre eles tornara-se prática meramente de aparências. Daí as críticas mordazes de que eram objetos, quando Jesus os qualificava de hipócritas, túmulos caiados por fora e dentro cheios de podridão, lobos vorazes que invadiam as casas das viúvas. Contundo, embora de aparências, com relação aos seus rigorismos eles não transigiam. Para eles, a obediência plena à lei tornava-os justificados diante de Jeová. A essas práticas sérias, porém sem conteúdo espiritualizante, Paulo de Tarso as qualificou como obras da lei. Para os judeus era importante mantê-las a ferro e fogo, mas para o apóstolo dos gentios, após converter-se à mensagem cristã, as obras da lei tornaram-se de importância menor. E como contrapartida, ofereceu aos seus irmãos convertidos a sua justificação pela fé... Vistos que ninguém será desculpado diante Dele por obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado. (Ro 3,20).
Para Paulo a justificação pela fé consistia em viver os ensinamentos e preceitos deixados por Jesus Cristo, transparentes e profundos, como ele os formulara e exemplificara, sem quaisquer rituais, oferendas ou sacrifícios, sem pompas ou ostentação, sem liturgias ou formalismos. Os cristãos não se apoiariam em nenhum exteriorismo para firmarem sua crença, e, sim, na fé, somente na fé pura e soberana, conforme colocado em (Ro 3, 27-28): Onde pois a jactância? Foi de todo excluída. Por que lei? Das obras? Não, pelo contrário, pela lei da fé. Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei.
Portanto, obras da lei, dentro do judaísmo, consistia tão somente em viver os exteriorismos de uma religião apenas de aparências, assim o entendia o apóstolo dos gentios. Para estarem justificados (aprovados) diante de Jeová, bastavam seguir seus formalismos, que eram muitos. Sacrifícios de aves ou animais, orações diárias em horas determinadas, banhos de purificação, jejuns, abstinências de sexo ou alimentar, obrigatoriedade de comparecimento às sinagogas ou ao Templo, ou à festas especiais, comemorações, dízimos, além de uma infinidade de proibições, tudo dentro de um rigorismo que tornava suas práticas religiosas demasiado sufocantes, e que os seguidores de Cristo, conforme ensinara Paulo, estariam desonerados de todas estas práticas. O apóstolo simplesmente os exortava a viverem em Cristo como ele próprio o fazia, isto é, viver como o Cristo vivera, santamente e na exemplificação. Dessa forma eles, os cristãos, estariam justificados pela fé.
Na mesma exposição Paulo insiste na afirmativa da superioridade do Cristianismo sobre o judaísmo: Mas agora, "sem lei", se manifestou a justiça de Deus testemunhada pela lei e pelos profetas; justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para todos os que creem (Ro. 3, 21-22). E reafirma sua condição de judeu convertido e de cristão convicto: Pois não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do gentio... (Ro. 1, 16-17), e da universidade do Cristianismo: É porventura Deus somente dos judeus? Não o é também dos gentios? Sim, também dos gentios, visto que Deus é um só,... (Ro. 3, 29-30).
No início do século XVI, ao lançar as bases da Reforma Protestante, Martinho Lutero inspirou-se nas cartas de Paulo para estabelecer sua doutrina. Como fizera o antigo apóstolo, também Lutero adotou a "justificação pela fé" como base de seu discurso, e fez da Bíblia o cânone central do Protestantismo. Ainda como Paulo, Lutero procurou desonerar seus seguidores da obediência às pomposas liturgias, aos rituais e às práticas vazias de conteúdo do catolicismo, e também como contrapartida, ofereceu aos seus adeptos a doutrina da justificação pela fé, como ele a entendeu: fé na palavra de Deus. Como a palavra de Deus, segundo ele, agostiniano, era o bastante para os crentes estarem justificados por Deus (estarem salvos). Portanto, crer no conteúdo da Bíblia era tudo o que se precisava para se obter a salvação. As práticas da caridade, vividas e exemplificadas intensamente pelo apóstolo dos gentios foram abolidas no Protestantismo nascente. Lutero errara na interpretação da doutrina pauliniana.
Na época de Lutero, a Europa estava emergindo da Idade das Trevas (Idade Média), longo período histórico onde o Catolicismo, para manter sua hegemonia absolutista, impusera sobre as mentes das populações um psiquismo coletivo de pavor. Ao invés de se estimularem os fiéis na busca de valores espirituais, estimulavam-nos na delação e na caça às bruxas, infiéis e hereges. A Santa e Purificadora Fogueira, durante séculos, fez exalar o cheiro forte dos corpos dessas infelizes criaturas transformados em cinzas. Ao invés de Jesus, o demônio era a figura central nas discussões teológicas e do crente comum.
Foi nesse clima de terror religioso, que estava chegando ao fim, mas que ainda produzia seus revérberos, que a voz de Martinho Lutero se levantou contra a opressão do clero poderoso. Sua voz ecoou forte, o Protestantismo consolidou-se como seita cristã. O ato de Lutero, além de provocar um grande cisma no seio da igreja católica, desencadeou também o surgimento de dezenas de outras seitas cristãs, que não pararam de se multiplicar, até aos dias de hoje. Desde então o Catolicismo perdeu para sempre seu exclusivismo sobre o Cristianismo.
As explicações de Frei Martinho sobre a Bíblia, como ele as interpretou, continuaram e continuam prevalecendo em quase todo o mundo cristão, inclusive para considerável parte do Catolicismo, e sua justificação para fé, conforme ele a entendeu, persiste ainda hoje, sendo entendida ao pé da letra pela grande maioria das seitas bíblicas que têm na Bíblia a mística da salvação.
Para os espíritas, privilegiados que foram com as mensagens dos espíritos como interpretações mais avançadas sobre os textos bíblicos, as cartas do apóstolo Paulo ganharam novas luzes, que facilitaram, e vêm facilitando sua maior compreensão. Com relação à polêmica doutrina da justificação pela fé, proposta pelo valoroso apóstolo dos gentios nos primeiros dias do Cristianismo, e erroneamente interpretada por Lutero, os espíritas responderão com outra expressão, mais lúcida, mais transparente e mais contundente, também do mesmo apóstolo: a fé sem obras é coisa morta.
Almir Palácio
Correio Fraterno do ABC Nº 359 Dez. 2000
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