terça-feira, 7 de setembro de 2021

Os Cátaros, o amor e a reencarnação

 Os Cátaros, o amor e a reencarnação

Hermínio C. Miranda


A primeira consulta da nova cliente do Dr. Arthur Guirdham foi em março de 1962. Tratava-se de jovem senhora com pouco mais de 30 anos de idade, bonita, comunicativa e sorridente. Falava com vivacidade, sem contudo, demonstrar sinal de grande tensão. Seu caso não parecia também ser muito grave, a julgar pela carta do médico que a apresentava. O encaminhamento da paciente a um psiquiatra havia sido feito a pedido dela mesma. O problema se resumia num pesadelo recorrente, sempre acompanhado de terríveis gritos de pavor que ameaçavam acordar a rua inteira em que a família residia. O fato em si não parecia de grande interesse, mas é evidente que para a cliente tinha significado emocional de grande profundidade. No sonho, um homem entrava pela direita no cômodo em que era surpreendida deitada no chão. À sua aproximação, ela era tomada de indescritível terror, que a fazia despertar aos gritos. Havia vinte anos que o pesadelo se repetia, a princípio no espaço de alguns meses; ultimamente, porém, duas ou três vezes por semana.

A ficha médica enviada ao Dr. Guirdham mencionava alguns "ataques de inconsciência" que a paciente tivera na adolescência. Neurologista, consultado na época, pediu encefalograma e acabou diagnosticando na menina caso de epilepsia, opinião da qual o Dr. Guirdham não partilhava. Por outro lado, este não sabia ainda que os períodos de inconsciência começaram juntamente com os sonhos e certas "revelações", sobre as quais muito temos ainda a conversar ao longo deste artigo, em comentário ao livro do Dr. Guirdham. ["The Cathars & Reincarnation" ("Os Cátaros e a Reencarnação"), Arthur Guirdham, Edição Neville Spearman, Londres, 1976].

Aquela primeira entrevista com o novo médico produziu resultado inesperado na Sra. Smith, como a chama o autor. Ela ficou livre do pesadelo, que nunca mais se repetiu, mas disso o médico somente iria saber ano e meio depois.

Bem mais tarde, o Dr. Guirdham ficaria sabendo também que aquela consulta médica ensejara o reencontro de dois seres que haviam vivido linda história de amor na atormentada região do Languedoc, na França do século XIII. Começava naquele dia de março de 1962 a desdobrar-se lentamente o vasto painel histórico, no qual fora superposto o romance de dois e a tragédia de muitos.

Antes de passar adiante, porém, convém dizer que o Dr. Guirdham também tinha o seu pesadelo, que se repetia a intervalos irregulares desde os vinte e poucos anos. (Ao escrever o livro, segundo se depreende, estaria na faixa dos sessenta.) O pesadelo do médico era algo semelhante ao da paciente e não menos aterrorizante, porque ele também emitia gritos de pavor. No sonho, um homem alto aproximava-se-lhe por trás, à esquerda, enquanto dormia. Às vezes, o intruso se debruçava sobre ele, para observá-lo de perto, fazendo-o ficar rígido de pavor.

Há dois curiosos detalhes com relação ao caso do Dr. Guirdham: primeiro, descobriu que o indivíduo do seu episódio onírico era o mesmo do da Sra. Smith; segundo, que a partir da época em que se encontrou com ela (ou melhor, reencontrou-se) não teve mais o sonho. Ele não se lembra, ao escrever o livro, se foi pouco antes ou pouco depois, mesmo porque a essa altura, como vimos, ainda não sabia que o pesadelo dela também cessara misteriosamente.

*

O livro do Dr. Guirdham exige certo esforço de atenção do leitor e deixa este, às vezes (pelo menos foi o meu caso), algo frustrado, mas é evidente que sua maneira de apresentar a história tem o seu mérito próprio, por mais complexo e fragmentado que seja. Ele preferiu narrar os acontecimentos através das cartas e de outras referências pessoais da Sra. Smith, na ordem cronológica em que ela ia desenovelando suas lembranças.

No desenrolar desse processo, durante o qual as informações vão chegando aos pedaços, fora da sequência natural e, às vezes, muito enigmáticas, o autor mergulhou na pesquisa histórica sobre o período que serve de "background" ao romance de amor. Sob as mais estranhas e inesperadas circunstâncias e "coincidências", o Dr. Guirdham começa a encontrar gente, livros e artigos que tratam do assunto, detendo-se principalmente em dois especialistas, e das maiores autoridades mundialmente reconhecidas, no tema específico das lutas religiosas que ensanguentaram o Languedoc por causa da heresia dos cátaros. Um desses "experts" é o Prof. René Nelly; outro, o Prof. Jean Duvernoy, autores, ambos, de obras de elevado conceito, meticulosamente pesquisadas e escritas ao longo, dos anos.

É preciso fazer aqui uma abertura para nos situarmos no contexto da época. Antes, porém, uma ponderação dentro da digressão: a primeira leitura que fiz do livro do Dr. Guirdham, há cerca de um ano, causou-me inexplicável impacto. O volume pertencia, no entanto, a uma biblioteca e não me foi possível, à época, escrever sobre a bela história nele narrada, mesmo porque eu também me propunha realizar as minhas próprias pesquisas, dado o fascínio que o tema suscitou em mim. Sentia-me de alguma forma envolvido no drama daqueles românticos e valentes heréticos da França medieval. E - coisa curiosa! - comecei a descobrir referências em livros antigos e recentes, que pareciam, intencionalmente vir ter às minhas mãos, como, por exemplo, "The Occult", de Collin Wilson (Edição Mayflower, Londres, 1976), e "Lês Grandes Heures Cathares", de Dominique Paladilhe (Edição Penin, Paris, 1969). Só com o tempo, descobri que numa existência no século XII tive realmente envolvimento pessoal com a efervescente e febricitante heresia que se estenderia até meados do século XIII, quando ocorre a história narrada pelo Dr. Guirdham. Naquele tempo estava eu do lado da velha e poderosa Igreja Católica, naturalmente, mas estejam os leitores descansados que não fui nenhum inquisidor de maus bofes.

A palavra cátaro é de origem grega, como se percebe facilmente, e quer dizer puro. O Dr. Guirdham, em nota de rodapé na página 11, informa que, para efeitos gerais e com vistas ao leitor não especialista, cátaros e albigenses podem ser considerados praticamente como sinônimos. E sob este segundo nome que ela se tornou mais conhecida, mas o termo contém conotações meramente geográficas, de vez que foi em torno da cidade de Albi que a seita mais se desenvolveu.

Segundo Will Durant ("The Age of Faith", Ed. Simon & Schuster, N. Y., 1950), a heresia foi como que "importada" da Bulgária, via Itália, implantando-se primeiramente em Montpellier, Narbonne e Marselha para fixar-se depois no Languedoc e na Provence, especialmente em Toulouse, Albi, Pamiers, Carcassone, Bézieres e adjacências.

Até recentemente eram escassos os conhecimentos acerca da verdadeira estrutura do pensamento cátaro, e a razão é fácil de ser explicada. É que praticamente tudo o que se sabia da famosa heresia era informação de segunda mão veiculada basicamente pelos cronistas católicos, principalmente os inquisidores, que a encaravam com os antolhos do fanatismo. Graças, porém, a pesquisas mais recentes - e aqui entram os eminentes autores franceses, há pouco citados - sabe-se hoje um pouco mais e melhor acerca das crenças, práticas e motivações dos cátaros. Ao tempo em que a Sra. Smith anotou suas mais importantes visões, impressões e sonhos, ela era uma menina de 13 anos e frequentava na Inglaterra uma escola primária. Como diz o Dr. Guirdham, o conhecimento sobre os cátaros na Inglaterra era infinitesimal. Que uma criança de 13 anos pudesse conhecer tanto do assunto seria efetivamente verdadeiro assombro, pois longe estava de saber que as informações por ela transmitidas tinham algo a ver com os cátaros, e ao procurar o Dr. Guirdham ainda ignorava totalmente essa conexão. Chega a ser, pois, fantástico que, através das suas visões e recordações, tenha frequentemente contestado os eruditos especialistas franceses, a tal ponto que o Prof. Nelly se decidiu por acordar com o Dr. Guirdham que, em caso de dúvida ou controvérsia sobre algum ponto obscuro, o mais certo seria adotar a opinião da Sra. Smith. E ela sempre achou que a teologia catara, por mais que os historiadores a tenham indevidamente complicado, era simples, como simples eram suas práticas.

Em resumo (atenho-me à obra já citada de Dominique Paladilhe, bem como aos livros de Wilson e Durant), os cátaros, que foram, aliás, reencarnacionistas convictos, tinham o mais santo horror à matéria. Como Deus, infinitamente perfeito e bom, não poderia ter criado a matéria corruptível e má, esta só poderia ter sido obra de uma espécie de Antideus, ou seja, um Deus mau que seria Satã ou Satanael. Algumas seitas não chegavam a esse dualismo absoluto, emprestando a Satã apenas a condição de semideus. Este, porém, não tinha poderes para criar seres humanos a fim de povoar a Terra; o recurso foi, portanto, provocar a queda dos anjos criados pelo Deus bom. Para aprisioná-los nos corpos físicos seduziram-nos com os prazeres grosseiros da carne. Com a finalidade de salvar os seus anjos decaídos, o Deus bom resolveu então enviar à Terra um dos que lhe permaneceram fiéis. A este competia mostrar aos irmãos pecadores o caminho da salvação. Escolhido para essa missão, Jesus aceitou o encargo, não sendo, pois, o próprio Deus, segundo até hoje ensina a teologia católica. (Somente isto já é uma tremenda heresia.) Como anjo que era, no entanto, não poderia ter contato algum com a matéria impura e ignominiosa e, por isso, seu corpo foi apenas aparente, elaborado de alguma substância não material, mesmo porque ele não poderia, na realidade, nascer de uma mulher.

A despeito desse afastamento em relação aos dogmas católicos, os cátaros consideravam-se verdadeiros cristãos; era-lhes prece predileta o "Pai Nosso" e se conduziam pelos padrões da moral do Sermão da Montanha. Observavam abstinência de carne, que substituíam pelo peixe; vestiam-se com simplicidade e viviam em regime de grande fraternidade. Dividiam-se em duas categorias: os "Parfaits" (Perfeitos) ou "Parfaites" (Perfeitas) que constituíam uma espécie de sacerdócio e os "Croyants" (Crentes).

Estes deviam a maior veneração aos "Parfaits", cumprindo-lhes mesmo ajoelharem-se diante deles. Uma vez assumida a condição de "Perfeito", ou "Perfeita", a pessoa tinha que renunciar aos laços de família, se fosse o caso, sendo mandatória a abstinência sexual.

O ritual de iniciação era denominado "consolamentum" e incluía a imposição de mãos. Por causa dos rigores impostos aos Perfeitos, que também se chamavam "Bonshommes", eram muitos os crentes que adiavam a hora do "consolamentum", como certos cristãos primitivos adiavam o batismo para, tanto quanto possível, morrerem purificados pelo sacramento que, supostamente, lavava a alma de todos os pecados. Na realidade, somente os "Parfaits" eram considerados parte integrante da Igreja Catara, da mesma forma que só o batizado faz parte da Católica. Os "croyants" formavam como que uma espécie de catecúmenos, ou seja, aspirantes. Havia uma insistência considerável no retorno às práticas e crenças primitivas dos cristãos, o que, segundo Paladilhe, explica o enorme êxodo da heresia, especialmente no Languedoc.

Na verdade, a seita começou a alcançar projeção e a ganhar força, ainda que, a princípio, não lhe houvessem emprestado grande importância. A certa altura, a Igreja deu de sentir-se ameaçada e designou S. Bernardo, o monge de Clairvaux, para tentar reconduzir os cátaros ao Catolicismo. O prestigioso santo visitou o Languedoc, pregou admiravelmente, realizou vários "milagres", mas não conseguiu senão limitado êxito, aqui e ali: os cátaros permaneceram firmes nas suas crenças, nas suas práticas e na divulgação das suas ideias, até que o Papa Inocêncio III achou que não fazia sentido despachar Cruzadas para combater os muçulmanos, quando havia ali mesmo na Europa perigosos inimigos da Igreja. E foi assim que, após novos esforços de conversão realizados por S. Domingos no século seguinte ao de Bernardo, a Igreja montou dois dispositivos imbatíveis para esmagar os cátaros: a Inquisição e uma Cruzada. A luta foi longa e sangrenta, porque a heresia estava solidamente implantada no coração do povo; o clero católico, acomodado; e os nobres, quando não abertamente partidários, protegiam a seita ou a toleravam. Enquanto isso, os trovadores - e isto seria um artigo à parte -, muitos deles "croyants" ou simpatizantes, nas suas andanças de castelo em castelo, de cidade em cidade contribuíam com as suas baladas para divulgar cada vez mais a seita que ameaçava empolgar toda a França. Ou, quem sabe, até a Europa inteira!...

É no período de ameaças, perseguições e atrocidades que se desenrola o belo romance de amor que a Sra. Smith foi resgatando à sua memória, para oferecer ao Dr. Arthur Guiidham. É hora, pois, de voltar a eles.

*

Tentarei reconstituir a história que eles viveram no século XIII, costurando os inúmeros retalhos que o Dr. Guirdham extraiu da correspondência da Sra. Smith. Quando disse alhures que o livro me deixou algo frustrado é porque teria preferido que ela o houvesse escrito e não ele. Enquanto o estilo do médico é frio, algo impessoal, mesmo algum tanto monótono e, portanto, cansativo, o da paciente põe nos depoimentos o colorido da sua personalidade e o calor das emoções, pois, a despeito do discreto tratamento que dá aos episódios, e até mesmo de certo pudor em deixar transparecer a carga de emotividade, a força do amor desborda das barreiras de algumas convenções, da mesma forma que atravessou a barreira do tempo para renascer purificado setecentos anos depois.

No Languedoc medieval, cujos costumes e imagens povoaram as visões e os sonhos da Sra. Smith desde a infância, ela fora uma jovem de origem humilde e o Dr. Guirdham um "croyant" de sangue nobre, por nome Roger. Todas as suas emoções e lembranças giram em torno desse homem, bem mais velho do que ela (tal como na vida atual), e das pessoas que compunham o pequeno grupo envolvido nas graves questões religiosas da época. Por muito tempo ela pensou que aquelas figuras e aqueles acontecimentos resultavam simplesmente de sua imaginação, pois nada mais natural que uma jovem sonhasse com o seu príncipe encantado. Às vezes, tornava-se até difícil separar a realidade da evocação, e principalmente distinguir a sequência a que nos habituamos em relação ao tempo.

"Em certas ocasiões - escreve ela ao Dr. Guirdham -, fico tão confusa que não tenho certeza, honestamente, se uma pessoa acabou de me dizer algo ou se alguém mo dirá um dia, ou se já mo disse no passado."

Maior receio não tinha senão o de que estivesse fora de seu juízo. Em uma das numerosas cartas, declara que parece ter apenas duas opções: ou é epiléptica, ou lunática.

Só com o tempo Dr. Guirdham, que também aceita a doutrina da reencarnação e a sanidade das pessoas dotadas de faculdades psíquicas, fá-la convencer-se, como terceira opção, de que é uma criatura perfeitamente normal, e apenas se recorda de seu passado remoto. Ao convencer-se disso, ela lhe manifesta seu enorme alívio. Não obstante, durante esse processo - as pesquisas e a troca de correspondência - às vezes ainda se desespera:

"Se, quando o senhor estiver na França, encontrar Fabrissa, Roger Pierre de Mazerolles ou qualquer um dessa turma de malucos, diga-lhes para irem todos para o inferno."

Não adianta, porém, as tentativas de recuo; os sonhos e as visões de vigília persistem.

Ela vai ao sótão buscar os cadernos escolares, onde anotou nomes, emoções, fragmentos de lembranças desconexas, como quem desenha isoladamente as peças de um vasto quebra-cabeça, sem saber ainda que arranjo vai surgir daquilo, se é que algo coerente possa emergir dali. Chegou mesmo a escrever o que chama de novela - provavelmente uma peça de inspiração mediúnica ou, certamente, anímica -, na qual derramou toda a força das suas emoções. Colocou nessa obra tanto de si mesma que, infelizmente, acabou por sacrificar os preciosos originais ao fogo. Era certamente a história de seu amor e das paixões e tumultos que mancharam de sangue e lavaram de lágrimas aquela época ao mesmo tempo tenebrosa e romântica.

Vejamos como a Sra. Smith descreve seu primeiro encontro com Roger, segundo as notas redigidas aí por volta dos 13 anos de idade:

"Eu poderia escrever um livro sobre Roger sem esforço algum - diz ela. Sonhei tudo aquilo em diferentes oportunidades e é muito fácil passar para o papel. Mas, se o fizer, nunca será publicado. Eu não o suportaria. É bom saber que outras meninas também sonham com seus amados. Eu preferiria não ter, porém, esta incômoda sensação de que o meu caso é diferente. Não quero viver de fantasia, ainda que aquele mundo seja tão real para mim. Talvez, se eu escrevesse um livro, me libertasse dessas impressões. Jamais me casarei. Tom (o namoradinho da época) não gostará disso. Devo ter natural aversão ao casamento. No meu sonho não sou casada, nem mesmo com Roger."

Observem, a seguir, o maravilhoso impacto do primeiro amor, que é, provavelmente, aquele único e imortal amor que se repete vida após vida, muito embora separadas, às vezes, por séculos e até milênios:

"Apaixonei-me por ele naquela mesma noite em que chegou a nossa casa, durante a tempestade de neve. Esforçava-me por não ficar a contemplá-lo; mas, sentia incoercível consciência da sua proximidade. Não tinha forças para me afastar dele, mesmo que o desejasse. A casa era muito pequena. Chamei-a de casa, mas era pouco mais do que uma cabana. Um só cômodo - eis tudo. E ele parecia ocupar ali cada polegada de espaço. Estou certa de que não havia outro pavimento. Os únicos móveis eram um banco rude e uma mesa. Era quase tão escuro ali dentro como lá fora, porque a pequena janela não tinha vidros e a abertura era vedada por um rústico pedaço de tábua, para não deixar entrar os elementos."

Ao escrever isto, a autora não sabia que o vidro na Idade Média era objeto de luxo; só os palácios dos ricos, e as igrejas, os exibiam.

"Eu me sentia cheia de alegria - prossegue a narrativa quase infantil -, porque o tempo estava péssimo e era necessário que ele ficasse para pousar. Aquela noite eu o beijei enquanto dormia. Dormíamos no chão, com as roupas de uso diário, em torno do fogo e, na meia-luz, eu via a sua mão com um anel no polegar. Cheguei-me para perto dele muito devagarzinho, pois não queria que ninguém acordasse. Quando estava suficientemente perto, beijei-lhe a mão e me senti feliz. Nunca havia beijado um homem antes."

Ela descreveria não apenas aquele anel com um símbolo cátaro gravado, mas também suas roupas, seus hábitos, suas ideias. É claro que Roger também amou a jovem camponesa, à qual chamava carinhosamente de Puerília, uma palavra com a raiz latina "puer", que quer dizer criança. A diferença de idade era grande e, para o sisudo Roger, a moça deveria ser realmente adorável criança que o amava com enorme respeito e admiração.

"Roger costumava ir a umas reuniões em Montbrun, e eu também. Somente ia para vê-lo. Eu sabia que meu pai ficaria zangado se soubesse dessas reuniões e de algo sobre Roger. Tínhamos de ser cautelosos. Havia muitos lugares onde podíamos estar a sós. Havia bosques na região. Roger costumava falar bastante quando reunido com os seus pares, mas andávamos, às vezes, milhas de mãos dadas e raramente trocávamos palavra."

Há dois lugares por nome Montbrun (um deles escreve-se Monbrun), perto de Toulouse; outro, a cerca de 32 quilômetros de Foix; e um quarto, pouco ao norte de Corbières, no Aude. A Sra. Smith insiste, porém, em que o seu Montbrun ficava nas vizinhanças de Montgaillard, não muito longe de Foix, e que teria desaparecido ou mudado de nome no correr dos séculos.

É preciso esclarecer, ainda, que, a despeito de sua liderança e da sua pregação, Roger não era um "Parfait", não tendo chegado, portanto, a receber o "consolamentum".

Do contrário, seria estranho que mantivesse aquele tipo de relacionamento com Puerília. Vejamos, porém, como foi que prosseguiu a história.

"O dia em que meu pai me bateu e me expulsou de casa foi o mais feliz de minha vida. Fui para Roger apenas com a roupa do corpo. Estava até sem sapatos. Acho que eu os tinha, pois não me lembro de caminhar descalça ao lado dele. Devo tê-los deixado para trás. A casa dele ficava no alto de um morro, e o caminho que levava até lá era áspero e pedregoso. Ele morava numa casa grande - uma habitação fortificada que não chegava a ser propriamente um castelo. Passamos por um portão aberto em alto muro e atingimos um pátio, que atravessamos para alcançar a porta principal. Entrei relutantemente por causa da minha roupa. Gostaria de ter algo mais bonito para vestir. Depois da porta principal havia alguns degraus que levavam a grande salão. Era enorme e tinha vários bancos, cadeiras e mesas. Havia algumas pessoas na casa. Foram todas elas muito boas para mim e eu me sentei perto do fogo, na extremidade do salão. Estavam cozinhando alguma coisa. Não sei o que era. À noite, fiquei sentada a contemplá-lo, enquanto ele entretinha-se em jogar. Fazia lembrar um jogo de damas, com fichas muito trabalhadas e um dado."

Foram "sublimemente felizes", no dizer dela. E quando ele partia para as suas frequentes andanças, parece que levava consigo um pouco de sua própria vida. "Eu era uma alma perdida sem Roger..."

É nesse ponto que começam a aparecer as demais personagens da história. Havia, por exemplo, Alais ou Helis, irmã de Roger. Outros três irmãos, pertencentes à família dos Fanjeaux, eram netos do conhecido trovador Guillaume de Dufort. Helis casou-se com Arnaud de Mazerolles. Seu filho, Pierre, um tipo irresponsável e interesseiro, era a figura espectral que atormentava o Dr. Guirdham e a Sra. Smith nos pesadelos. Nessa dramática série de eventos, ele participara de pequeno grupo que assassinou dois inquisidores, do que muito se orgulhava. Foi quem anunciou a Puerília que Roger havia sido preso. Chegara quando ela dormia no chão, como de hábito, e não só lhe trouxe a notícia terrível como tentou ainda beijá-la. Aquele assassinato contribuiu para intensificar as perseguições.

Uma grande figura dessa época era Fabrissa de Mazerolles, identificada como cunhada de Helis e de Roger e tia do famigerado Pierre. Era uma "Parfaite" proeminente, de algumas posses, e na sua ampla casa havia reuniões constantes, onde os cátaros perseguidos sempre encontraram acolhedor refúgio. Por isso, quando as recordações da Sra. Smith começaram a emergir, uma frase estava bem clara naquele emaranhado de lembranças fragmentárias e misteriosas:

"Se algo me acontecer vai a Fabrissa." 

Nem o Dr. Guirdham nem a Sra. Smith sabiam se Fabrissa era nome de pessoa ou de lugar. Mais tarde, porém, com a colaboração dos eruditos e as pesquisas nos depoimentos da tenebrosa Inquisição, aqueles nomes, que pareciam meras fantasias, ganharam os contornos da realidade. Eram gente mesmo que amou e sofreu por uma causa perdida, por um ideal que nem o terror da fogueira conseguiu extinguir naquelas sofridas criaturas.

*

Depois da prisão de Roger, que sofreu longas e penosas torturas para morrer abandonado numa prisão, a vida de Puerília foi curta e inapelavelmente infeliz.

"Não conseguia esquecer-me de Roger e desejava morrer para reunir-me a ele. Será que todas aquelas viúvas (ela vivia, então, numa espécie de convento cátaro) também choravam secretamente como eu?"

Por toda parte havia perseguições, torturas e matanças. A todo momento chegavam notícias tristes: amigos presos, companheiros mortos, gente massacrada ou queimada viva.

"A vida era algo barato - escreve a Senhora Smith, recordando-se - e podia ser extinta em poucos segundos. Em breve, todo mundo estaria morto e a Terra ficaria juncada de carne podre, malcheirosa."

Chegou finalmente, o dia da libertação de Puerília. Ela reviveu toda a cena em um dos seus sonhos. Havia outras pessoas. Ninguém parecia ter medo do que os esperava.

"Caminhávamos descalços pelas ruas na direção de uma praça, onde achas de lenha estavam prontas para ser acendidas. Havia vários monges em redor, cantando hinos e rezando. Não me senti grata a eles. Achei que tinham mesmo que orar por mim. Eu deveria ter sido pessoa muito má. (O texto foi escrito quando a Sra. Smith tinha apenas 13 anos e, como se vê, ignorava a extensão e profundidade da tragédia que vivera 700 anos antes.) Não penso em coisas más quando estou acordada, mas sonho coisas terríveis. Detesto aqueles monges ali reunidos para assistirem à minha morte. Uma colega, na escola, me disse certa vez que sonhou com a crucificação do Cristo. Eu preferia ser crucificada do que queimada."

E, a seguir, a descrição do fim, que quase chega a doer no leitor:

"A dor era de enlouquecer. A gente deveria orar a Deus quando está morrendo, se é que se pode orar em plena agonia. No meu sonho, eu não orava a Deus. Pensava em Roger e no quanto eu o amava. A dor daquelas chamas não era nem a metade da que experimentei quando ele morreu. Senti-me subitamente alegre por estar morrendo. Eu não sabia que quando a gente morre queimada a gente sangra. Eu sangrava que era um horror. O sangue pingava e chiava nas chamas. Gostaria de ter bastante sangue para apagá-las. O pior, porém, foram os meus olhos. Detesto a ideia de ficar cega. Já basta o que penso quando estou acordada, mas nos sonhos não posso me livrar dos meus pensamentos. Eles persistem. Neste sonho eu estava ficando cega. Tentei fechar os olhos, mas não pude. Eles devem ter sido queimados e agora aquelas chamas iriam arrancar-nos com os seus maléficos dedos. Eu não queria ficar cega..."

De repente, inopinadamente:

"As chamas não eram tão cruéis, afinal de contas. Comecei a senti-las frias. Geladas. Ocorreu-me, então, que eu não estava sendo queimada, e sim morrendo congelada. Estava ficando anestesiada pelo frio e, de repente, comecei a rir. Havia enganado toda aquela gente que pensava poder me queimar. Sou uma feiticeira. Por artes mágicas, tinha transformado fogo em gelo!"

E assim termina a história de Puerília, aí por volta do ano de 1240, no Languedoc. Termina a sua história? Não. É apenas um capítulo que a fogueira inquisitorial escreveu. Partira, afinal, ao encontro do seu Roger amado, para reencontrá-lo na Inglaterra, 700 anos mais tarde.

*

Às vezes, parece que a Sra. Smith enfrenta certos conflitos interiores ao relatar a história ao Dr. Guirdham:

"Poderia contar-lhe muita coisa mais sobre Roger - escreve ela certa vez. Não que eu esteja deliberadamente a ocultá-las do senhor. É que me sinto tão estupidamente constrangida, que não consigo dizê-las."

É evidente que ela não pode esquecer-se de que o velho psiquiatra, que a curou de maneira quase mágica de um pesadelo de 20 anos, é o seu Roger do século XIII.

Numa visita que ela fez à França, esteve em Bayonne e de lá escreveu a ele:

"No alto da elevação há velha catedral com interior escuro, feio e opressivo. Foi aqui neste lugar sombrio que senti estar justamente onde estive antes e, sinto dizer-lhe isto, tive uma esmagadora sensação da sua presença."

Vejam, agora, a beleza deste depoimento da Senhora Smith, também do tempo em que era uma menina de 13 anos, na Inglaterra:

"Seria maravilhoso se fosse possível encontrar um homem que eu amasse como o amei.

Sei que, várias vezes, pensei estar amando e acho que estou amando agora. Possivelmente Tom e eu seríamos felizes se nos casássemos. Nas profundezas do meu coração, porém, ainda amo aquele homem dos meus sonhos. Sinto que pertenço a ele e a ninguém mais. Gosto que Tom me beije. Às vezes, penso em como seria estupendo casar-me, mas isso não seria nem uma fração do que seria se o casamento fosse com Roger, que nunca foi meu marido, e é, contudo, o mais precioso amante que tive ou que jamais terei."

Tão belo quanto a pureza desses amores é descobrir que o fio invisível da nossa vida se entrelaça com muitos outros e ao longo dos milênios vão tecendo um tapete mágico de sonhos e de dores, de mortes e renascimentos, de alegrias e de esperanças. É muito belo saber que um dia veremos todo o tapete diante de nossos olhos siderados e só então haveremos de perceber que aqueles fios, tecidos pelas mãos hábeis das leis, divinas, vão ficando cada vez mais diáfanos, até que, convertidos na substância mesma da luz, mergulham na luz maior e mais pura que nasce do âmago mesmo do próprio Deus...

Hermínio C. Miranda 
do livro:
Nas fronteiras do além 
(Seleção de textos do autor, 
publicados na Revista Reformador - FEB)

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