quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Aprenda a escrever na areia

Aprenda a escrever na areia

Malba Tahan



Dois amigos, Mussa e Nagibe, viajavam pelas extensas estradas que circulam as e sombrias montanhas da Pérsia. Ambos se faziam acompanhar de seus ajudantes, servos e caravaneiros.

Chegaram, certa manhã, às margens de um grande rio, barrento e impetuoso, em cujo seio a morte espreitava os mais afoitos e temerários. Era preciso transpor a corrente ameaçadora.

Ao saltar, porém, de uma pedra, o jovem Mussa foi infeliz. Falseando-lhe o pé, precipitou-se no torvelinho espumejante das águas em revolta.

Teria perecido, arrastado para o abismo, se não fosse Nagibe. Este, sem um instante de hesitação, atirou-se à correnteza e, lutando furiosamente, conseguiu trazer a salvo o companheiro de jornada.

Que fez Mussa?

Chamou, no mesmo instante, os seus mais hábeis servos e ordenou-lhes gravassem a face mais lisa de uma grande pedra, que perto se erguia, esta legenda admirável:

"Viandante! Neste lugar, durante uma jornada, Nagibe salvou, heroicamente, seu amigo Mussa."

Isto feito, prosseguiram, com suas caravanas, pelos intérminos caminhos de Alá.

Alguns meses depois, de regresso às terras, novamente se viram forçados a atravessar o mesmo rio, naquele mesmo lugar perigoso e trágico.

E, como se sentissem fatigados, resolveram repousar algumas horas, à sombra acolhedora do lajedo que ostentava bem alto a honrosa inscrição.

Sentado, pois, na areia clara, puseram-se a conversar.

Eis que, por um motivo fútil, surge, de repente, grave desavença entre os dois companheiros.

Discordaram. Discutiram. Nagibe, exaltado, num ímpeto de cólera, esbofeteou, brutalmente, o amigo.

Que fez Mussa? Que farias tu, em seu lugar?

Mussa não revidou a ofensa. Ergueu-se e, tomando tranquilo, o seu bastão, escreveu na areia clara, ao pé do negro rochedo:

"Viandante! Neste lugar, durante uma jornada, Nagibe, por motivo fútil, injuriou, gravemente, o seu amigo Mussa."

– Senhor! – falou um de seus servos – Da primeira vez, para exaltar a abnegação de Nagibe, mandastes gravar, para sempre, na pedra, o feito heroico. E agora, que ele acaba de ofender-vos, tão gravemente, vós vos limitais a escrever, na areia incerta, o ato de covardia! A primeira legenda, ó xeique, ficará para sempre. Todos os que transitarem por este sítio dela terão notícia. Esta outra, porém, riscada no tapete de areia, antes do cair da tarde, terá desaparecido, como um traço de espumas entre ondas buliçosas do mar.

Respondeu Mussa:

– É que o benefício que recebi de Nagibe permanecerá, para sempre, em meu coração. Mas a injúria... essa negra injúria... escrevo-a na areia, como um voto para que, se depressa daqui se apagar e desaparecer, mais depressa, ainda, desaparecerá e se apague de minha lembrança!

– Assim é, meu amigo! Aprenda a gravar, na pedra, os favores que receberes, os benefícios que te fizerem, as palavras de carinho, simpatia e estímulo que ouvires.

Aprende, porém, a escrever, na areia, as injúrias, as ingratidões, as perfídias e as ironias que te ferirem pela estrada agreste da vida.

Aprende a gravar, assim na pedra; aprende a escrever, assim na areia... e serás feliz!


Malba Tahan / Mil histórias sem fim



Sobre Malba Tahan  


Artigo escrito por Humberto de Campos, 1931 “E eu, vendo partir este beduíno atrevido e cheio de fé, e sabendo que já não estarei vivo quando ele voltar, mas certo de que fará vitoriosamente a travessia – eu, pondo as mãos tremulas sobre a sua cabeça turbilhonante de sonho, limito-me, como xeque quase cego, que já não vê o fogo diante da própria tenda, a dar-lhe a voz de partida (...)”.


Humberto de Campos, 1931 Texto apresentado no livro “Mil histórias sem fim” de Malba Tahan

Ao Sr. Malba Tahan – cujo nome é atualmente um dos mais vulgarizados e discutidos das nossas letras e cujos contos, espelhados por todo Brasil e admirados em todos, são transcritos literalmente em toda a imprensa de língua portuguesa e traduzida em outras deste continente e da Europa – cabe a glória de haver sido, entre nós, e, creio mesmo, na América do Sul, o primeiro escritor de gênero árabe. A sua obra, iniciada em 1925, com a publicação dos Contos, conquistou, de pronto, a mais vasta popularidade. Céu de Alá, Amor de Beduíno e Lendas do Deserto completaram sua personalidade de prosador oriental, definindo-a e incorporando-a, com relevo notável, ao que se podia chamar a “Legião estrangeira” dos narradores árabes espalhados hoje pelo mundo. 

A formação oriental do espírito geograficamente brasileiro do Sr. Malba Tahan podia ser objetivo, evidentemente, de uma pesquisa de Freud. Trata-se, civilmente, de um homem que nasceu no Brasil, de um engenheiro com o seu título científico brilhantemente conquistado em nossa Escola Politécnica, membro de antiga e ilustre família brasileira. Entretanto, o Sr. Malba Tahan em uma figura de árabe, surgiu para as letras tendo no pensamento os desertos, as tamareiras, as tendas estremecendo ao vento, sacudidas pelas tempestades de areia. E quando abandona as terras bárbaras e familiares do seu sonho, é para consagrar-se na vida prática ao estudo e ao ensino das matemáticas, que constituem, como sabem, uma ciência árabe, ou, pelo menos, que o árabe tomou como sua. Quantos séculos terão dormido no sangue deste legítimo descendente de portugueses os hormônios da sua longínqua procedência semita? Por que só agora, ao fim de tantas gerações brasileiras do mesmo ramo lusitano, surgiu, para a atividade da inteligência, este mouro que os árabes deixaram na península Ibérica e que, de repente, acorda como a princesa adormecida no bosque, ou como aquele monge que escutava o pássaro encantado, com as mesmas tendências de espírito, como se tivesse chegado ontem de Basra ou de Bagdá? 

A esse árabe do Brasil estava destinada, todavia, a realização de um dos maiores empreendimentos das literaturas orientais porventura tentados fora do Oriente. É propósito seu, todas nossas letras brasileiras e, ao mesmo tempo, as letras árabes, com uma coletânea no gênero das “Mil Histórias”, e que terá a denominação de “Mil Histórias sem fim”. Serão contos de inspiração oriental, ligados entre si, mas constituindo, como naquelas grandes coleções do Oriente, narrações isoladas pelo assunto. Serão, diria um árabe, como um soberbo colar de mil pérolas, mas usadas cada uma separadamente. Serão, finalmente, uma grande joia formada por um milheiro de joias miúdas. 


Esse pensamento contém o programa para todo uma vida, inicia-se agora o autor, com a polimorfia do seu talento, e o gosto, e a altura, e a febre de espírito, o entusiasmo festivo, e a imaginação viva, com os atributos em suma, que se requerem para empresa tão pesada e tão longa. Levá-la-É ele a tempo? Não esmorecerá no caminho? Descerá este peregrino do seu camelo antes de divisar no horizonte os santos minaretes de Meca? 


Ninguém pergunta è caravana qual será o seu roteiro no areal. O deserto, como o oceano, tem rumo, mas não tem estrelas. E eu, vendo partir este beduíno atrevido e cheio de fé, e sabendo que já não estarei vivo quando ele voltar, mas certo de que fará vitoriosamente a travessia – eu, pondo as mãos tremulas sobre a sua cabeça turbilhonante de sonho, limito-me, como xeque quase cego, que já não vê o fogo diante da própria tenda, a dar-lhe a voz de partida, lançando-lhe a benção patriarcal em nome da nossa tribo: 


- Alá te conduza, filho do deserto! E que as fontes dos oásis deem água límpida para a tua sede e, à tua chegada, abram no alto, para o teu repouso, um verde teto de folha e estendam, no chão, para o teu sono, um fresco tapete de sombras.


Humberto de Campos

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