O grão de areia e a montanha
João Marcus
(Pseudônimo de Hermínio C. Miranda)
Muita gente pensa que, por estar trabalhando na “seara do Senhor”, esteja livre de percalços e aflições e até mesmo possa resolver facilmente certos problemas de ordem puramente humana ou material. Nada disso. Primeiro, que o nosso trabalho, em favor de uma doutrina de recuperação moral como é o Espiritismo, é mais do que uma obrigação: constitui verdadeiro privilégio. Se estamos honestamente interessados em realizá-lo, se damos o melhor de nós mesmos por ele, se procuramos, enfim, melhorar o nosso irmão e a nós próprios, é porque já recebemos de mais Alto essa orientação sadia. É porque já nos encontramos no caminho certo e, portanto, o interesse é nosso em progredir. Em segundo lugar, é preciso não esquecer que, exatamente por estarmos alistados nas tropas do bem, nos colocamos ostensivamente em oposição às forças negativas que desejam e lutam pelo retardamento do progresso espiritual. Tornamo-nos, assim, alvos de ataques mais violentos daqueles que ainda não descobriram que só caminhamos para frente depois que a luz da verdade, do amor e da caridade vai alumiando as nossas veredas.
Sem a compreensão desse mecanismo, as coisas se tornam muito obscuras ao nosso entendimento. Como é que vamos entender o fato de que, justamente quando queremos praticar o bem e evolver espiritualmente, começamos a sofrer tantos reveses, a enfrentar tantas dificuldades e a encontrar em nós mesmos tantas fraquezas?
Ainda há pouco, procurou-me uma digna senhora, mãe e esposa, em estado de aflição e desespero, diante da desorientação do seu esposo, companheiro de tantos anos. Pedi-lhe que tivesse calma, que procurasse, primeiro de tudo, tranquilizar o seu espírito, porque em estado de crise emocional não podemos pensar direito e, muito menos, resolver situações difíceis. Que pedisse a ajuda de Deus, qualquer que fosse a sua crença. Ela me respondeu que pedia sempre e ardentemente, mas que Deus não a atendia: as coisas iam sempre de mal a pior... Tentei explicar que nem sempre aquilo que pedimos é o que mais convém ao nosso espírito. Além do mais, sendo Deus justo, como é, não vai permitir que sofram aqueles que nada devem. Seria ela capaz de punir um filho por uma falta que não cometeu?
É muito difícil, porém, fazer entender essa doutrina moral a quem ainda não tem o mínimo conhecimento das leis do espírito, especialmente a quem não admite a lei da reencarnação. Sabe-se lá dos compromissos cármicos que trazemos de passadas vidas? Se fossem atendidas as nossas preces da maneira que desejamos, ficaríamos livres do sofrimento moral e até físico que tanto nos afligem, mas estaríamos em pleno regime de irresponsabilidade, de estagnação espiritual. Isso não interessa ao nosso espírito e nem mesmo é possível, dentro de um universo em contínuo progresso e movimento. Infelizmente, para muitos de nós, o aguilhão da dor é a única maneira de nos fazer andar para frente e reparar os erros do passado. Não que isso seja necessário, porque as leis do espírito contêm dispositivos que nos permitem caminhar sem sofrimentos e sem revolta, mas, que se há de fazer se às vezes preferimos os atalhos cheios de pedras e espinhos, em vez de estrada plana e luminosa?
Assim, sofremos quase todos. Uns porque ainda não aprenderam as primeiras lições da verdade e investem cegamente na direção da dor; outros porque, embora já tenham começado a aprender as suas lições, se expõem às vibrações negativas dos que ainda têm a tola pretensão de obstruir a marcha do espírito humano.
Muito cuidado, pois, aqueles que se acham em trabalho de renovação moral. Nunca é demais repetir a bimilenar advertência do Mestre: Orai e Vigiai. Essa observação é particularmente válida para aqueles cujo trabalho na divulgação do ideal espírita é recebido com palavras de aplauso e apreciação dos demais irmãos e companheiros trabalhadores. Diante do aplauso que o nosso trabalho recebe, a velha vaidade, que ainda não morreu em nós, pode, mais uma vez, levantar a cabeça recoberta pelo ouro falso com que compramos, no passado, as lágrimas de hoje. Diante das palmas e dos cumprimentos que recebemos, aqui e ali, podemos achar que Deus precisa de nós para a sua obra criadora, que Jesus depende de nós para fazer progredir a Humanidade. Nada mais falso e ilusório. Se estamos trabalhando para o bem, pertencemos à grande equipe de amor que há de prevalecer um dia sobre toda a Terra, mas nosso trabalho, por mais importante que pareça aos olhos da nossa vaidade, é apenas um grãozinho invisível de areia nas montanhas altaneiras da obra divina. E que diferença faz um grão de areia a mais ou a menos nessa cordilheira de Himalaias? No entanto, mesmo aqui é preciso um cuidado infinito e muito equilíbrio para não recairmos no outro extremo e, por julgar a nossa contribuição demasiado inexpressiva, abandonar de uma vez o trabalho da seara. Muito curioso isto, porque o grão de areia nada é diante da montanha, mas sem ele não existiria a montanha.
Precisamos, pois de uma exata consciência da nossa tarefa, sem esquecer jamais que ela é mais importante para nós do que para as forças superiores que ordenaram e que sustêm o Universo. Assim encarada, a nossa tarefa é, ao mesmo tempo, muito relevante, muito importante e bastante modesta. O mesmo vento que sopra da montanha milhões de grãos de pós, nela deposita outros milhões, enquanto abrimos e fechamos os nossos olhos.
Orando e vigiando, teremos sempre presente no espírito a grandeza da nossa insignificância e a insignificância da nossa grandeza. Somos grandes pela centelha divina que brilha no fundo de nós; somos nada diante d´Aquele que colocou em nós a eterna fagulha.
Hermínio C. Miranda
(Sob pseudônimo de João Marcus), do livro:
Candeias na noite escura
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Texto publicado na Revista Reformador em Dezembro de 1966, posteriormente incluído no livro: - "Candeias na noite escura", uma compilação com os melhores artigos de Hermínio na revista Reformador assinadas sob o pseudônimo de João Marcus.
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