segunda-feira, 19 de abril de 2021

Carta escrita em 1854 pelo chefe Sealth ao presidente dos EUA

Carta do Chefe Índio Sealth

Chefe Sealth, dito Seattle / 1854




Carta escrita em 1854 pelo chefe Seattle ao presidente dos EUA, Franklin Pierce, quando este propôs comprar as terras de sua tribo, concedendo-lhe uma outra “reserva”.

O Grande Chefe de Washington nos fez parte do seu desejo de comprar a nossa terra. O Grande Chefe nos fez parte da sua amizade e dos seus melhores sentimentos. Ele é muito generoso, pois bem sabemos que ele não precisa da nossa amizade em troca.

No entanto, nós iremos considerar a sua oferta, pois sabemos que se não vendermos, o homem branco virá com os seus fuzis e tomará a nossa terra.

Mas como é que se pode comprar ou vender o céu, o calor da terra? Essa ideia nos parece estranha.

Se não possuímos o frescor do ar e o brilho da água, como é possível comprá-los?

Cada pedaço desta terra é sagrado para meu povo. Cada ramo brilhante de um pinheiro, cada punhado de areia das praias, a penumbra na floresta densa, cada clareira e inseto a zumbir são sagrados na memória e experiência de meu povo. A seiva que percorre o corpo das árvores carrega consigo as lembranças do homem vermelho.

Os mortos do homem branco esquecem sua terra de origem quando vão caminhar entre as estrelas. 

Nossos mortos jamais esquecem esta bela terra, pois ela é a mãe do homem vermelho. Somos parte da terra e ela faz parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs; o cervo, o cavalo, a grande águia são nossos irmãos. Os picos rochosos, os sulcos úmidos nas campinas, o calor do corpo do potro e o homem – todos pertencem à mesma família.

Portanto, quando o Grande Chefe em Washington manda dizer que deseja comprar a nossa terra, pede muito de nós. O Grande Chefe diz que nos reservará um lugar onde possamos viver satisfeitos. Ele será nosso pai e nós seremos seus filhos. Portanto, nós vamos considerar sua oferta de comprar nossa terra. Mas isso não será fácil. Esta terra é sagrada para nós.

Essa água brilhante que escorre nos riachos e rios não é apenas água, mas o sangue de nossos antepassados. Se lhes vendermos a terra, vocês devem lembrar-se de que ela é sagrada, e devem ensinar às suas crianças que ela é sagrada e que cada reflexo nas águas límpidas dos lagos fala de acontecimentos e lembranças da vida do meu povo. O murmúrio das águas é a voz do pai do meu pai.

Os rios são nossos irmãos, saciam nossa sede. Os rios carregam nossas canoas e alimentam nossas crianças. Se lhes vendermos nossa terra, vocês devem lembrar e ensinar a seus filhos que os rios são nossos irmãos, e seus também. E, portanto, vocês devem dar aos rios a bondade que dedicariam um irmão.

O homem vermelho sempre recuou diante do homem branco, como a bruma das montanhas foge diante do sol nascente. Mas as cinzas dos nossos pais são sagradas Os seus túmulos são uma terra santa. Assim, estas colinas, estas árvores, este recanto de terra são sagrados aos nossos olhos.

Sabemos que o homem branco não compreende nossos costumes. Uma porção da terra, para ele, tem o mesmo significado que qualquer outra, pois é um forasteiro que vem à noite e extrai da terra aquilo de que necessita. A terra não é sua irmã, mas sua inimiga, e quando ele a conquista, prossegue seu caminho. Deixa para trás os túmulos de seus antepassados e não se incomoda. Rapta da terra aquilo que seria de seus filhos e não se importa. A sepultura de seu pai e os direitos de seus filhos são esquecidos. Trata sua mãe, a terra, e seu irmão, o céu, como coisas que possam ser compradas, saqueadas, vendidas como carneiros ou enfeites coloridos. Seu apetite devorará a terra, deixando somente um deserto.

Eu não sei, nossos costumes são diferentes dos seus. A visão de suas cidades fere os olhos do homem vermelho. Talvez seja porque o homem vermelho é um selvagem e não compreenda. Não há um lugar quieto nas cidades do homem branco. Nenhum lugar onde se possa ouvir o desabrochar de folhas na primavera ou o bater das asas de um inseto. Mas talvez seja porque eu sou um selvagem e não compreenda. O ruído parece somente insultar os ouvidos.

E o que resta da vida se um homem não pode ouvir o choro solitário de uma ave ou o debate dos sapos ao redor de uma lagoa à noite? Eu sou um homem vermelho e não compreendo. O índio prefere o suave murmúrio do vento encrespando a face do lago, e o próprio vento, limpo por uma chuva diurna ou perfumado pelos pinheiros.

O ar é precioso para o homem vermelho, pois todas as coisas compartilham o mesmo sopro – o animal, a árvore, o homem, todos compartilham o mesmo sopro. Parece que o homem branco não sente o ar que respira. Como um homem agonizante há vários dias, é insensível ao mau cheiro. Mas se vendermos nossa terra ao homem branco, ele deve lembrar que o ar é precioso para nós, que o ar compartilha seu espírito com toda a vida que mantém. O vento que deu a nosso avô seu primeiro inspirar também recebe seu último suspiro. Se lhes vendermos nossa terra, vocês devem mantê-la intacta e sagrada, como um lugar onde até mesmo o homem branco possa ir saborear o vento açucarado pelas flores dos prados.

Portanto, vamos meditar sobre sua oferta de comprar nossa terra. Se decidirmos aceitar, imporei uma condição: o homem branco deve tratar os animais desta terra como seus irmãos.

Sou um selvagem e não compreendo qualquer outra forma de agir. Vi um milhar de búfalos apodrecendo na planície, abandonados pelo homem branco que os alvejou de um trem ao passar. Eu sou um selvagem e não compreendo como é que o fumegante cavalo de ferro pode ser mais importante que o búfalo, que sacrificamos somente para permanecer vivos.

O que é o homem sem os animais? Se todos os animais se fossem, o homem morreria de uma grande solidão de espírito. Pois o que ocorre com os animais, breve acontece com o homem. Há uma ligação em tudo.

Vocês devem ensinar às suas crianças que o solo a seus pés é a cinza de nossos avós.

Para que respeitem a terra, digam a seus filhos que ela foi enriquecida com as vidas de nosso povo. Ensinem às suas crianças o que ensinamos às nossas, que a terra é nossa mãe. Tudo o que acontecer à terra, acontecerá aos filhos da terra. Se os homens cospem no solo, estão cuspindo em si mesmos.

Isto sabemos: a terra não pertence ao homem. O homem pertence à terra. 

Isto sabemos: todas as coisas estão ligadas como o sangue que une uma família. Há uma ligação em tudo.

O que ocorrer com a terra recairá sobre os filhos da terra. O homem não tramou o tecido da vida; ele é simplesmente um de seus fios. Tudo o que fizer ao tecido, fará a si mesmo.

Mas nós iremos considerar a sua oferta de ir para a reserva que destinam ao meu povo.

Viveremos afastados e em paz. Que importa onde passaremos o resto dos nossos dias?

Nossas crianças viram os seus pais humilhados na derrota. Nossos guerreiros conheceram a vergonha. Depois da derrota, passam os dias em ócio e sujam seus corpos com comidas doces e bebidas fortes.

Que importa onde passaremos o resto dos nossos dias? Já não são muitos. Mais algumas horas, alguns invernos, e já não restará nenhum dos filhos das grandes tribos que viveram outrora nesta terra, ou que vagam pelos bosques, em pequenos grupos; nenhum deles estará presente para chorar sobre os túmulos de um povo outrora tão poderoso, tão cheio de esperança como o vosso. Mas porque chorar sobre o fim do meu povo? As tribos são feitas de homens, não mais. Os homens vêm e vão, como as ondas do mar.

Mesmo o homem branco, cujo Deus caminha e fala com ele de amigo para amigo, não pode estar isento do destino comum. É possível que sejamos irmãos, apesar de tudo. Veremos.

De uma coisa estamos certos – e o homem branco poderá vir a descobrir um dia: nosso Deus é o mesmo Deus. Vocês podem pensar que possuem como desejam possuir nossa terra. Mas não é possível. Ele é o Deus do homem, e Sua compaixão é igual para o homem vermelho e para o homem branco. A terra lhe é preciosa, e feri-la é desprezar seu criador. Os brancos também passarão; talvez mais cedo que todas as outras tribos.

Contaminem suas camas, e uma noite serão sufocados pelos próprios dejetos.

Mas quando de sua desaparição, vocês brilharão intensamente, iluminados pela força do Deus que os trouxe a esta terra e por alguma razão especial lhes deu o domínio sobre a terra e sobre o homem vermelho. Este destino é um mistério para nós, pois não compreendemos que todos os búfalos sejam exterminados, os cavalos bravios sejam todos domados, os recantos secretos da floresta densa impregnados do cheiro de muitos homens, e a visão das colinas maduras para a colheita obstruída por fios que falam.

Onde está o arvoredo? Desapareceu. Onde está a águia? Desapareceu. O que significa dizer adeus ao pônei ágil e à caça? É o final da vida e o início da sobrevivência.

Guardem na memória a recordação deste país, tal como está no momento em que o tomam. E com toda a sua força, todo o seu pensamento, todo o seu coração, preservem-no para os seus filhos, e amem-no como Deus nos ama a todos.

Assim, iremos considerar a sua oferta de comprar a nossa terra. E se aceitarmos, será para estar seguros de receber a reserva que nos prometeram. Lá, talvez, poderemos terminar as breves jornadas que nos restam a viver segundo os nossos desejos. E quando o último homem vermelho tiver desaparecido desta terra, e que a nossa lembrança não for mais do que do que a sombra de uma nuvem flutuando na planície, estas margens e estas florestas abrigarão ainda os espíritos do meu povo. Pois eles amam esta terra como o recém-nascido ama o batimento do coração da sua mãe. Assim, se nos lhes vendermos a nossa terra, amem-na como nós a amamos. Tomem conta dela como nos o fizemos.

Nós sabemos de uma coisa: nosso Deus é o mesmo Deus. Ele ama esta terra. O próprio homem branco não pode escapar ao destino comum. Talvez sejamos irmãos. Veremos.

Chefe Índio Sealth
Seattle - EUA

Texto transcrito no compêndio de Joseph Ki-Zerbo, Compagnons du Soleil, Anthologie des grands textes de l’humanité (Companheiros do Sol, Antologia dos grandes textos da humanidade), Ed. La Découverte/UNESCO, Paris, 1992; e de Mehlem Adas, Geografia da América, Ed. Moderna 1987.

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