quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Ordem econômica e a ordem moral

Ordem econômica e a ordem moral

Deolindo Amorim



Pelo fato de termos insistido muito na significação da reforma moral do elemento humano na condução de uma reforma social capaz de realizar uma distribuição de riqueza realmente justa e, portanto, humanitária, recebemos críticas, aliás muito amigas, assim que saiu a 1ª edição deste livro. Objetou-se então que estávamos "fora da realidade", pois as soluções econômicas independem de considerações morais. Ainda mais: "Antes de pensar na modificação do homem, que se pense nas modificações estruturais'', e assim por diante. 

Em capítulo anterior já definimos a nossa maneira de pensar, aliás com vistas à Doutrina Espírita. Repetimos, no entanto, que a reforma das estruturas socioeconômicas não exclui a necessidade da reforma individual. Nada impede que os dois objetivos se encaminhem pela via pacífica da simultaneidade.

Queremos, como sempre, desprezar o amontoado da sutilezas verbais e as fórmulas enigmáticas, tão do gosto de certa literatura econômica, e observar os fatos como a experiência do dia a dia no-las apresenta: a reforma de uma estrutura sem o melhoramento do homem, sem uma preocupação moral mais elevada não é suficiente por si só, justamente porque lhe falta a base de sustentação. E quantas e quantas estruturas colossais já foram transformadas e engrandecidas pelo dinheiro e pela técnica, mas desmoronaram com prejuízos incalculáveis! Muitas.

E por que não se aguentaram? Por falta de capacidade humana? Não. Por falta de recursos materiais? Não. Mas por falta de ordem na gestão do dinheiro alheio, falta de escrúpulo administrativo. Em suma, um patrimônio imenso, uma organização estrutural solidamente alicerçada no dinheiro e no melhor aparelhamento tecnológico, porém muito deficiente do ponto de vista moral. Os argumentos formais ou acadêmicos não destroem os fatos. Para demonstrar que não estamos "fora da realidade'' quando encarecemos o fator moral no plano sócio econômico, tanto quanto no plano político, vamos invocar dois depoimentos de homens públicos completamente estranhos às ideias que professamos. De Harold Laski, que fora uma das figuras proeminentes do Partido Trabalhista britânico, político anticonservador: "O único tipo de Estado a que devemos fidelidade é o Estado em cuja existência descobrimos uma base moral''. ("O Estado Moderno" , transcrição de 1.948). F. Nitti, pensador político, envolvido nos acontecimentos conexos à segunda guerra, admite que "existem vários fatores de ordem econômica que podem contribuir para criar-se um meio apto ao desenvolvimento de uma moral superior ", mas afirma, ao mesmo tempo, que ''nenhuma transformação de ordem econômica pode modificar o estado presente de insegurança e de instabilidade se não é acompanhada de transformações de ordem moral". É exatamente a postura que nos propõe o ensino espírita.

Ainda que possa parecer redundante, a ordem social não pode ter base exclusivamente material, pois também lhe é indispensável a ordem moral. Combate-se hoje, por exemplo, em terreno comum, a exploração do fraco pelo forte, do pobre pelo rico, do ignorante pelo letrado, e assim por diante. Aliás, a pregação do Cristo veio sempre ao encontro dos que tinham "sede de justiça". O espírito do Cristianismo, isto é, a pura doutrina trazida e espalhada pelo Mestre, é visceral mente contrária à exploração. No momento atual, pelo menos em determinadas circunstâncias, já vimos cristãos, marxistas, espíritas, positivistas e partidários de outras doutrinas tornarem posições concordantes neste ponto.

Ninguém, afinal, em sã consciência apoia a injustiça, a não ser por força de uma deformação incorrigível.

Independentemente de sua condição de crente evangélico, marxista, espírita, anarquista ou lá o que seja, qualquer pessoa sensata sabe distinguir muito bem um ato decorrente de uma necessidade individual ou coletiva, ainda que imposto com energia, e um ato de exploração, venha de onde vier.

A origem do antagonismo entre as coisas de Deus e as de César está no falso pressuposto de que as ações da terra confinam com a terra e por isso não têm relação alguma com as ações da vida espiritual. Tal concepção que já serviu muitas vezes para justificar transações ilícitas ou acomodar situações comprometedoras criou o abismo entre o que é da terra e o que é de Deus, como se o mundo material não tivesse comunicação com o mundo espiritual. Chegou-se, em consequência dessa interpretação, à seguinte realidade: para as coisas de ordem espiritual, o indivíduo tem a moral religiosa, a moral que se cultiva nos templos, nos atos de fé; para as coisas da terra, isto é, para os negócios, para as atividades materiais, o indivíduo adota moral diferente, outra moral, a do oportunismo ou da acomodação, exemplo, dentro da qual tudo é lícito, contanto que haja êxito.

Para o indivíduo que interpreta a história sob o ponto de vista materialista, que vê na evolução social exclusivamente o fator econômico, as ações deste mundo não têm repercussão da vida espiritual. Para o espiritualista, porém, que vê no processo histórico a conjugação de forças harmônicas oriundas do espírito e da matéria, afirmando-se ao mesmo tempo o fato biológico e o princípio espiritual, as atividades humanas, embora circunscritas à terra, são responsáveis perante DEUS.

Prevalecem, porém, as leis peculiares tanto à matéria como ao espírito.

O fato econômico, portanto, embora seja parte integrante da ordem material, não está inteiramente fora da ordem moral, desde que se tenha concepção imortalista da História. Não a "concepção idealista" da escola hegeliana, mas a interpretação da História à luz da crença na imortalidade do espírito. Ratzel admitiu o determinismo geográfico na urdidura da História. Sua concepção da "geografia social" é bem avançada. Por associação de ideias, quando se trata do homem - elemento capital da História -, logo se pensa na terra , porque não se compreende o valor humano sem o meio físico, como não se admite a existência de peixe sem água.

Marx viu no fator econômico uma força determinante da História, concepção que não se concilia com o Espiritismo. Gobineau partiu da desigualdade das raças humanas para explicar a História.

A "concepção etnológica" desse nobre racista exaltou o preconceito racial, convertendo-se em filosofia política de consequências maléficas para o mundo. Gobineau era conde, cultivava naturalmente o orgulho de sua origem aristocrática, circunstância que não deixou de ter influência no pensamento de sua doutrina, já pela educação, já pela própria inclinação de seu espírito. (0 Conde de Gobineau esteve no Brasil como representante diplomático da França junto ao governo imperial a exemplo de outros estrangeiros - naturalistas, escritores, artistas -, correspondeu-se, depois, com o Imperador Pedro II , que era grande admirador dos homens de estudo, embora tivesse ideias inteiramente opostas. às do antigo diplomata francês.) A teoria de Gobineau, com a sua perigosa intepretação da História, concorreu para a formação da mística raça pura de povo superior causadoras de tantas tragédias. Em nome dessas ideias, tão desastrosas como inconscientes, o hitlerismo transformou o preconceito racial em "razão de Estado", criando a chamada política do sangue puro, apoiada em base superficial e duvidosa, além de contrária à fraternidade humana pregada pelo Cristo.

Freud interpretou a História de outro modo, dando muita ênfase aos "complexos individuais", sem considerar a importância dos conflitos morais, das lutas ideológicas, por exemplo.

Como se vê, a interpretação da História pode trazer muitos erros, muitos choques, muita desordem material e espiritual, em função de sua base filosófica. A concepção teológica atribui a forças sobrenaturais todo o mecanismo da evolução geral. É verdade que da escola agostiniana até Bossuet, período equivalente a sucessivas e inevitáveis transformações na história do pensamento humano, há um curso de ideias nem sempre uniforme, visto que certas teorias não se conservam inteiramente fechadas a retificações posteriores. Mas entre a concepção teológica (subordinação da História a desígnios sobrenaturais) e a concepção materialista (subordinação da História ao fator econômico) deve prevalecer não propriamente uma conciliação forçada e sim o princípio da reciprocidade, regulador da harmonia entre o mundo espiritual e o mundo material. O organismo humano começa a mostrar a evidência desse princípio como o paralelismo psicofisiológico. A vontade divina preside a toda a criação, mas a sabedoria dessa vontade suprema e onisciente está justamente na distribuição das leis, nunca no arbítrio ou no acaso. A interferência da ação divina nos atos humano não se confunde com a presença de Deus nas mínimas coisas de nossa economia interna. A vontade divina rege o Universo, estabelece leis, mas não se vai admitir que Deus fique sujeito às mutações da matéria. Deus criou a natureza, mas nem por isso se crê que Deus esteja dentro de uma rocha ou plasmado nas formações geológicas . Tal suposição levaria à descrença e à zombaria. A Doutrina Espírita esclarece a questão do seguinte modo: 
"Não se podem aliar as propriedades da matéria à ideia de Deus, sem que ele fique rebaixado ante a nossa compreensão , e não haverá sutileza de sofismas que cheguem a resolver o problema de sua natureza humana. A inteligência de Deus se revela em suas obras como a de um pintor no seu quadro; mas obra de Deus não são o próprio Deus, como o quadro não é o pintor que concebeu e executou". (O LIVRO DOS ESPÍRITOS, Cap. 1)
Deus não interfere na ordem econômica para dizer ao homem quando deve plantar milho, arroz ou cenoura, nem para indicar os instrumentos que devem ser empregados na lavoura - o arado ou a charrua -porque este círculo de ação é do mundo material, tem suas leis, sua organização dentro do campo em que o homem pode deliberar conscientemente, de acordo com o seu livre arbítrio. Diz O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO:
"Para trabalhos que são obra dos séculos, teve o homem que extrair os materiais até das entranhas da terra; procurou na ciência os meios de os executar com maior segurança e rapidez. Mas, para os levar a efeito, precisa de recursos: a necessidade fê-lo criar a riqueza, como o fez descobrir a ciência. "
Por aí se vê que o Espiritismo, conquanto sustente o princípio imortalista, buscando na reencarnação ou doutrina das vidas sucessivas a explicação filosófica das desigualdades humanas, não tem concepção absolutamente providencialista da História.

Se a doutrina espírita reconhece, como aí se lê, que a NECESSIDADE fez o homem criar a riqueza, isto é, promover o desenvolvimento econômico, aperfeiçoar os meios de que carece para aumentar a produção e aproveitar os recursos da terra, evidentemente o homem não deve nem pode abrir mão de seu livre arbítrio para esperar que a natureza trabalhe por si mesmo ou que a inteligência divina se imiscua nas atividades privadas, na orientação das minúcias e particularidades do plano material. Tal interpretação da História, excluindo a responsabilidade humana dos atos concernentes à ordem material , conduziria inevitavelmente ao transcendentalismo puro.

Existem leis em toda a Natureza. Cabe ao homem, impelido pelas necessidades, descobrir essas leis por esforço próprio, o que lhe permitirá encontrar em Deus a casa de toda a construção universal. Há muita diferença, portanto, entre reconhecer em Deus o criador das leis fundamentais do Universo e esperar que Deus venha dirigir uma por uma as atividades concernentes às relações do homem com a Natureza. Se assim fosse, não haveria mérito na obra do homem , ou a obra, em suma, não seria do homem.

A ordem econômica obedece às leis que lhe são inerentes. O lavrador sabe, por experiência, qual a estação do ano em que pode plantar tomate; se, porém, tentar fazer plantações fora da estação própria, certamente sofrerá as consequências, terá prejuízo, perderá o tempo. Castigo de Deus? Não, desobediência a uma lei da natureza: cada cultura tem sua época. O homem é livre, mas a sua liberdade não pode ultrapassar a organização da natureza. Ninguém tentaria plantar laranjas em terras impróprias. Seria necessário que o plano divino viesse dizer ao homem qual a terra que serve para a cultura do milho ou de frutas ácidas? Não, pois os recursos da ciência, a observação e a prática, assim como o estudo das leis relativas aos fenômenos da terra, permitem ao homem conhecer as diferentes propriedades, a composição dos terrenos, a influência do clima, etc. Seria inútil, por exemplo, tentar introduzir a cultura de tâmara ou de damasco em qualquer ponto do Brasil sem saber se o terreno aceita a nova cultura ou se a tamareira conserva a mesma capacidade produtiva quando retirada do seu verdadeiro habitat.

A inteligência do homem há de render-se à sabedoria de leis contra as quais não há recurso que prevaleça. Ninguém poderia forçar uma região pedregosa a produzir, por exemplo, cereais, cujas sementes não podem germinar em qualquer terreno. Diz se vulgarmente que "a Natureza tem seus caprichos", seus mistérios. Não há capricho nem mistério: a natureza tem as suas leis. Quando o homem começa a entrar no conhecimento da natureza, cuja revelação exige estudo e trabalho, vai observando e compreendendo melhor a harmonia dessas leis.

Deus não vem dirigir diretamente à ordem econômica, cujos fenômenos devem ser interpretados à luz da ciência, por meio dos instrumentos de que o homem dispõe. A Agronomia estuda leis que interessam ao conhecimento da terra na parte em que as condições do solo têm mais relação com a ciência econômica: a produção. Indiscutivelmente, o bom aproveitamento da terra, para produzir bem, depende da existência de elementos indispensáveis, como argila, húmus, calcário, por exemplo.

Ora, se determinada porção de terra tem muito calcário e pouca argila, com teor de húmus insuficiente, deve o homem procurar, nas próprias leis da terra, a explicação do ressecamento do subsolo ou de qualquer outra alteração, a fim de encontrar a causa de fenômenos que lhe são desconhecidos. 

Ninguém iria pedir a Deus o milagre de transformar em terra fértil e abundante uma terra defeituosa por falta de substâncias de valor decisivo na produção, porque tal pretensão seria anticientífica. Deus não derroga as leis da natureza , mas permite ao homem descobrir essas leis, à proporção que se lhe apresentam problemas circunscritos ao mundo que vive. A inteligência divina manifesta-se por meio das leis e não pela prepotência de uma soberania violenta, que se compraz em subverter a ordem que ela mesma estabelece.

Busquemos orientação na doutrina: 
"Deus não faz milagres, porque, sendo, como são, perfeitas as suas leis, não lhe é necessário derrogá-las. Se há fatos que não compreendemos, é que ainda nos faltam os conhecimentos necessários." (Allan Kardec, A GÊNESE, cap. XII).
O homem conhece as leis do mundo físico, reguladoras das relações indispensáveis à vida no plano terreno, mas se torna igualmente indispensável o conhecimento das leis do mundo moral.

Justamente na harmonia entre as duas ordens de leis - a do mundo físico e a do mundo moral - é que está a afirmação de uma inteligência suprema. Na ciência política e na economia, estudamos leis e princípios, assim como, no contato com as ciências exatas, operamos com instrumentos de pesquisa quando queremos verificar a exatidão de uma teoria.

Mas logo somos obrigados a nos defrontar com problemas filosóficos, de natureza especulativa, quando desejamos saber qual o fim dos trabalhos, das pesquisas que realizamos. Agora, nesta nova ordem de ideias, vamos tratar, não mais com o mundo físico, mas com o mundo moral. A questão, uma vez formada no espírito, escapa ao círculo de correspondência com os sentidos humanos, porque pertence ao foro da consciência.

A tese espírita demonstra, como consequência das relações entre o mundo físico e o mundo espiritual , que toda a riqueza da terra deve ter fim útil, aplicação honesta, porque o espírito, que é imortal, que sobrevive à matéria, responde pelos desvirtuamentos dos bens materiais, pela desobediência às leis da moral divina. A doutrina condensa esta parte no quadro da Leis Morais.

Sem aceitar o panteísmo que confunde Deus com o mundo, a causa com o efeito, a inteligência com o objeto, o Espiritismo interpreta a História sem, também, admitir a exclusão das formas materiais, o que seria o mesmo que ver em tudo uma espécie de fatalismo ou absolutismo da vontade divina. Sem apelar, finalmente, para o idealismo puro, recusando, porém a interpretação materialista da História, o Espiritismo nos leva à convicção de que a ordem econômica não pode dispensar a ordem moral. A ciência econômica jamais proporcionará o bem estar aos homens, enquanto o mundo dos negócios não se inspirar na Justiça, no comedimento, na honestidade pessoal. Convém, mais uma vez, pedir luzes à Doutrina Espírita: 
"Os males, porém, mais numerosos, são os que o homem cria pelos seus vícios, os que provêm de seu orgulho, do seu egoísmo, da sua ambição, da sua cupidez, de seus excessos em tudo. Aí a causa das guerras e das calamidades que estas arrastam, das dissensões, das injustiças, da opressão do fraco pelo forte, da maior parte, afinal, das enfermidades." (Allan Kardec - A GÊNESE, cap. III).
É bom repetir que a solução do problema social não depende exclusivamente da reorganização ou do aparelhamento dos meios econômicos. A reforma econômica reclama a reforma moral. A riqueza pode tornar um país muito próspero, mas não faz um povo feliz sem que desapareçam os vícios, a injustiça, os abusos estimulados pela própria riqueza. O denominador comum de todas as reformas está, portanto, na reforma moral do homem.

Vamos, pois resumir a tese:
a) pelas leis que regem a ciência econômica, o homem obtém a riqueza;
b) pelo conhecimento das leis morais, o homem sabe o uso que deve fazer da riqueza.

Deolindo Amorim do livro:
O Espiritismo e os problemas humano

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