O sermão do monte
Humberto de Campos
Difundidas as
primeiras claridades da Boa Nova, todos os enfermos e derrotados da sorte,
habitantes de Corazim, Magdala, Betsaida, Dalmanuta e outras aldeias importantes
do lago enchiam as ruas de Cafarnaum em turbas ansiosas.
Os discípulos
eram os mais visados pela multidão, por motivo do permanente contato em que
viviam com o seu Mestre. De vez em quando, Filipe era assaltado, em caminho,
por uma onda de doentes; Pedro tinha a casa rodeada de criaturas desalentadas e
tristes. Todos queriam o auxílio de Jesus, o benefício imediato de sua poderosa
virtude.
Aos primeiros
dias do apostolado, um pequeno grupo de infelizes procurou Levi na sua confortável
residência. Desejavam explicações sobre o Evangelho do Reino, de modo a
trabalharem com mais acerto na observância dos ensinamentos do Cristo. O
coletor da cidade manifestou certa estranheza.
- Afinal disse ele
aos infortunados que o procuravam —, o novo reino congregará todos os corações
sinceros e de boa-vontade, que desejem irmanar-se como filhos de Deus. Mas, que
podeis fazer na situação em que vos encontrais?
E dirigindo-se a
três deles, seus conhecidos pessoais, falou convicto:
- Que poderás realizar,
Lisandro, aleijado como és?! E tu, Áquila, não foste abandonado pela própria
família, sob o peso de sérias acusações? E tu, Pafos? Acaso edificaria alguma
coisa com as tuas atuais aflições?
Os interpelados
entreolharam-se cabisbaixos, humilhados. Somente então chegavam a reconhecer as
suas penosas deficiências. A palavra rude de Levi os despertara. Tomara-os uma
dor sem limites. Jesus dissera, nas suas pregações carinhosas, que seu amor
viera buscar todos os que se encontrassem em tristeza e em angústias do
coração. Quando o Mestre chegara, haviam experimentado a restauração de todas
as energias. Jubilosos, guardavam as suas promessas, relativamente ao Pai justo
e bom, que amava os filhos mais infelizes, renovando nos corações as esperanças
mais puras. Achavam-se exaustos; mas, a lição de Jesus lhes trouxera novo consolo
às almas desamparadas de qualquer conforto material. Queriam ser de Deus,
vibrar com a exaltação das promessas do Cristo, porém, a palavra de Levi novamente
os arrojara à condição desditosa.
O grupo de pobres
e infortunados retirou-se em desalento; no entanto, o Mestre pregaria no monte,
àquela tarde, e, quem sabe, ministraria os ensinamentos de que
necessitavam?!...
***
Decorridos alguns
instantes, Jesus, em companhia de André, deu entrada em casa de Levi, onde se
puseram os três em animada palestra. O coletor, a certa altura da conversação,
a sorrir ingenuamente, relatou a ocorrência, terminando alegremente a sua
exposição, com estas palavras:
- Que conseguiria
o Evangelho do Reino, com esses aleijados e mendigos? Mas, lembrando-se de
súbito que os demais companheiros eram criaturas pobres e humildes,
acrescentou: É justo esperemos alguma coisa dos pescadores de Cafarnaum; são
homens fortes e desassombrados e o bom trabalho lhes cabe.
Não vejo, porém,
como aceitar a contribuição desses desafortunados e vencidos que nos procuram.
Jesus fixou o
olhar no discípulo com profundo desvelo e falou com bondade, batendo-lhe
levemente no ombro:
- No entanto,
Levi, precisamos amar e aceitar a preciosa colaboração dos vencidos do
mundo!... Se o Evangelho é a Boa Nova, como não há de ser a mensagem divina
para eles, tristes e deserdados na imensa família humana? Os vencedores da
Terra não necessitam de boas notícias. Nas derrotas da sorte, as criaturas ouvem
mais alto a voz de Deus. Buscando os oprimidos, os aflitos e os caluniados,
sentimo-los tão unidos ao céu, nas suas esperanças, que reconhecemos, na
coragem tranquila que revelam, um sublime reflexo da presença de Nosso Pai em
seus espíritos. Já observaste algum vencedor do mundo com mais alta preocupação
do que a de defender o fruto de sua vitória material?
Levi sentia-se
comovido e, aproveitando a pequena pausa que se fizera, exclamou, algo
desapontado:
- Senhor, minhas
observações partiram tão-só do meu intenso desejo de apressar a supremacia do
Evangelho entre os que governam no mundo!...
- Quem governa o
mundo é Deus afirmou o Mestre, convictamente - e o amor não age com
inquietação. Agora, imaginemos, Levi, que os triunfadores da Terra viessem até
nós, ensarilhando suas armas exteriores. Figuremos alguns generais romanos
chegando a Cafarnaum, com os seus troféus numerosos e sangrentos, afirmando-se
desejosos de aceitar o Evangelho do Reino de Deus e oferecendo-se para cooperar
em nosso esforço. Certamente trariam consigo legiões de guardas e soldados,
funcionários e escribas, carros de triunfos, espadas e prisioneiros...
Começariam protestando contra as nossas pregações pelas estradas desataviadas
da natureza. Por não estarem, no íntimo, desarmados das vaidades das vitórias,
edificariam suntuosos templos de pedra, em cuja construção lutariam duramente
por hegemonias inferiores; uns desejariam palácios soberbos, outros
empreenderiam a construção de jardins maravilhosos. Recordando a ação das
espadas mortíferas, talvez pretendessem disputar a ferro e fogo o
estabelecimento do Reino de Deus, exterminando-se reciprocamente, por não
cederem uns aos outros, em seus pontos de vista, desde que cada vencedor se
julga, no mundo, com maior soma de direitos e de importância. A pretexto de lutarem
em nome do céu, espalhariam possivelmente incêndios e devastações em toda a
Terra. E seria justo, Levi, trabalhássemos por cumprir a vontade do Nosso Pai,
aniquilando seus filhos, nossos irmãos?
O apóstolo o
ouvia assombrado, em face da profundeza de sua argumentação. O Mestre
continuou:
- Até que a
esponja do Tempo absorva as imperfeições terrestres, através de séculos de
experiência necessária, os triunfadores do mundo são pobres seres que caminham
por entre tenebrosos abismos. E imprescindível, pois, atentemos na alma branda
e humilde dos vencidos. Para os seus corações Deus carreia bênçãos de infinita
bondade. Esses quebraram os elos mais fortes que os acorrentavam às ilusões e
marcham para o Infinito do amor e da sabedoria. O leito de dor, a exclusão de
todas as facilidades da vida, a incompreensão dos mais amados, as chagas e as
cicatrizes do espírito são luzes que Deus acende na noite sombria das
criaturas. Levi, é necessário amemos intensamente os desafortunados do mundo.
Suas almas são a terra fecundada pelo adubo das lágrimas e das esperanças mais
ardentes, onde as sementes do Evangelho desabrocharão para a luz da vida. Eles
saíram das convenções nefastas e dos enganos do caminho terrestre e bendizem do
Nosso Pai, como sentenciados que experimentassem, no primeiro dia de liberdade,
o clarão reconfortante do sol amigo e radioso que os seus corações haviam
perdido! E também sobre os vencidos da sorte, sobre os que suspiram por um
ideal mais santo e mais puro do que as vitórias fáceis da Terra, que o
Evangelho assentará suas bases divinas!...
André e Levi
escutavam de olhos úmidos os conceitos do Senhor, cheios de sublimada emoção.
Nesse ínterim, chegaram Tiago, João e Pedro e todo o grupo se dirigiu, alegre,
para um dos montes próximos.
***
O crepúsculo
descia num deslumbramento de ouro e brisas cariciosas. Ao longo de toda a
encosta, acotovelava-se a turba imensa. Muitas centenas de criaturas se aglomeravam
ali, a fim de ouvirem a palavra do Senhor, dentro da paisagem que se aureolava
dos brilhos singulares de todo o horizonte pincelado de luz. Eram velhinhos
trêmulos, lavradores simples e generosos, mulheres do povo agarradas aos
filhinhos. Entre os mais fortes e sadios, viam-se cegos e crianças doentes, homens
maltrapilhos, exibindo as verminas que lhes corroíam as mãos e os pés.
Todos se
comprimiam ofegantes. Ante os seus olhares felizes, a figura do Mestre surgiu
na eminência enfeitada de verdura, onde perpassavam brandamente os ventos
amigos da tarde. Deixando perceber que se dirigia aos vencidos e sofredores do
mundo inteiro e como que esclarecendo o espírito de Levi, que representava a
aristocracia intelectual entre os seus discípulos, na sua qualidade de cobrador
dos tributos populares, Jesus, pela primeira vez, pregou as bem-aventuranças
celestiais. Sua voz caía como bálsamo eterno, sobre os corações desditosos.
Bem-aventurados
os pobres e os aflitos!
Bem-aventurados
os sedentos de justiça e misericórdia!...
Bem-aventurados
os pacíficos e os simples de coração!...
Por muito tempo
falou do Reino de Deus, onde o amor edificaria maravilhas perenes e sublimadas.
Suas promessas pareciam dirigidas ao incomensurável futuro humano. Do alto do
monte, soprava um vento leve, em deliciosas vagas de perfume. As brisas da
Galileia se haviam impregnado da virtude poderosa e indestrutível daquelas
palavras e, obedecendo a uma determinação superior, iam espalhar-se entre todos
os aflitos da Terra.
Quando Jesus
terminou a sua alocução, algumas estrelas já brilhavam no firmamento, como
radiosas bênçãos divinas. Muitas mães sofredoras e oprimidas, com suave fulgor
nos olhos, lhe trouxeram os filhinhos para que ele os abençoasse. Anciães de
frontes nevadas pelos invernos da vida lhe beijavam as mãos. Cegos e leprosos
rodeavam-no com semblante sorridente e diziam: Bendito seja o filho de Deus!
Jesus acolhia-os satisfeito, enviando a todos o sorriso de sua afeição.
Levi sentiu que,
naquele crepúsculo inolvidável, uma emoção diferente lhe dominava a alma. Havia
compreendido os que abandonam as ilusões do mundo para se elevarem a Deus.
Observando as filas dos humildes populares que se retiravam, tomados de imenso
conforto, o discípulo percebeu que os pobres amigos que o visitaram à tarde
desciam o monte, abraçados, com uma expressão de grande ventura, como se os
animasse um júbilo sem limite. O coletor de Cafarnaum aproximou-se e os saudou
transbordante de alegria, compreendendo que o ensino do Mestre, em toda a sua
luz, abrangia o porvir infinito do mundo. Grande esperança e indefinível paz
lhe haviam penetrado o âmago do ser. No dia imediato, o ex-publicano abriu suas
portas a todos os convivas daquele crepúsculo memorável. Jesus participou da
festa, partiu o pão e se alegrou com eles. E quando Levi abraçou o aleijado
Lisandro, com a sinceridade de sua alma fiel, o Mestre o contemplou enternecido
e disse: “Levi, meu coração se rejubila hoje contigo, porque são também
bem-aventurados todos os que ouvem e compreendem a palavra de Deus!”...
Humberto de Campos por Chico Xavier do livro:
Boa Nova
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