Oração ao Brasil
Ruy Barbosa
Ruy Barbosa |
Brasil! Quando os povos cultos e poderosos
exibem o verbo da força pela boca dos canhões, revivendo milenários estigmas da
destruição e da morte, nós, os teus tutelados felizes, podemos exaltar-te o heroísmo
silencioso. Adotaste-me por filho afortunado, quando te bati à porta acolhedora, fugindo ao
céu borrascoso e sombrio do Velho Mundo.
Deixava, no fumo do pretérito, os impérios
coroados de ouro, que alimentam a ignorância e a miséria com o baraço e o cutelo dos
carrascos da liberdade; a truculência erguida em governo das nações, asfixiando o impulso
generoso de comunidades progressistas, a tirania convertida em legalidade nos tronos
de rapina; a mentira e a astúcia mascaradas de sacerdócio; a opressão inquisitorial dos
perseguidores da fé livre, buscando perpetuar o negrume da Idade Média; a fábula impiedosa
pretendendo orientar as letras sagradas, e, por fantasma erradio, a revolta, dominando
cérebros e corações, para, mais tarde, arremeter de improviso aos gulosos comensais
do poder.
Atravessei os pórticos do templo da
fraternidade, que o teu clima de paz me oferecia.
Deslumbrado à luz de teu céu, ajoelhei-me
ante o Cruzeiro resplandecente que te inspira, recordando o Divino Herói Crucificado. Aqui,
o patíbulo não era o caminho dos sonhadores; o crime organizado não era a
curul administrativa; as trevas das consciências não eram a expressão religiosa;
o despotismo purpurado não era o refúgio à
intolerância; o cativeiro das paixões
inferiores não era a aristocracia da inteligência; o assassínio das opiniões não era a glória do
feudalismo jactancioso; a violência não era segurança; a carnificina não era o brilho no
mando; o sangue e o veneno, a prepotência e a traição não eram a galeria brilhante da
política do terror; a fogueira não era o prêmio à investigação e à ciência; a condenação à
morte não era o salário dos mais dignos.
O perfume da terra misturava-se à claridade
do firmamento, e orei, agradecendo à Providência Divina o acesso aos teus celeiros
de pão e de luz, de compreensão e de bondade. Em teus caminhos, rasgados pela
renúncia de apóstolos anônimos, estampavam-se os rastros de todos os corações
que se haviam fundido, no crisol do amor sublime, para os teus primeiros dias de
nacionalidade. Ouvi o cântico das três raças, que o trabalho, a simplicidade e o sofrimento
consagraram para sempre em teu nascedouro, e recebi a honra de compartir o esforço de
quantos te prelibaram a independência.
Por ti, em minha frágil estrutura de homem,
amarguei os tormentos do operário e as angústias do orientador. E, enquanto te
acompanhava os vagidos no berço da emancipação que conquistaste sem sangue, por
ti fui quinhoado com a graça do desfavor e do exílio, para voltar, depois, à cabeceira
do infante que te guiaria os destinos, durante meio século de probidade e sacrifício.
Lidador novamente sentenciado ao ostracismo, aguardei a morte, com a serenidade do servo
consciente, feliz pela exação no cumprir seu dever e crente na tua destinação de Terra
Prometida que o Rei Entronizado na Cruz estremece e amanha. Sob a inspiração viva de
teus dilatados horizontes de luz, jamais me alapei nas dobras da pusilanimidade quando
se me exigisse valor; jamais urdi a ficção, refugindo à realidade; jamais
contubernei com a felonia contra a inocência. E ardendo no propósito de servir-te, no resgate
de minúscula parcela do meu débito imenso, entranhei-me venturoso no labirinto da
reencarnação, ideando contigo a pátria da renovação humana. Reconstituído o templo de
carne, de cujo órgão se irradiariam as ondas do pensamento, devotei-me de novo ao
culto de teu progresso incessante. Eu, que desfrutara o privilégio de sentar-me nas
assembleias que te planejavam o grito libertador, assomei à tribuna de quantos te defendiam os
ideais republicanos, filiando-te na legião dos povos cultos e determinadores.
Por ti, partilhei o governo, usei a autoridade,
preservei a ordem, louvei o patriotismo, encareci a democracia e confundi-me com o
povo, vivendo-lhe as expectativas e aspirações. À invocação de teu nome, e acima
de todas as cogitações peculiares ao homem de Estado e ao filho honrado da plebe laboriosa,
que eu fui, advoguei, em tua companhia, a causa da liberdade,
compreendendo o apostolado de amor universal com que subiste à tona da civilização. Nunca me
honrei com aplausos e louros, que os não mereci, mas vigiei, quanto pude, na
preparação de tua vitória, exercendo o ministério do direito a que te afeiçoaste, desde o sonho
impreciso dos missionários expatriados que te marcaram as primeiras linhas de evolução,
voltados para o esplendor da Igreja primitiva.
Incorporando-te à essência de meu sangue e de
meu ideal, confiei-me – célula microscópica – à tua grandeza imperecível e
tomei assento nas lides da palavra e da pena, nos tribunais e nas praças, nos jornais
e nos comícios, quase sempre sozinho, na guerra sem quartel daqueles que não conhecem
o conselho dos generais, nem o apoio das baionetas. Por ti, suportei, orgulhoso, o
peso de asfixiantes responsabilidades que me feriram os ombros e me iluminaram o coração,
na evidência e na obscuridade, aprendendo e sofrendo contigo, na escola da
igualdade, da tolerância, e da justiça.
E agora, que a ciência mortífera grava
transitória supremacia nos regimes, estimulando a política da força pelo triunfo numérico; que
a perversidade da inteligência lança o descrédito nos fundamentos morais do mundo;
que a crise do caráter emite vagas negras de perturbação e desordem; que a toga desce
da majestade dos seus princípios, para dourar os instintos da barbárie nos tremendos
conflitos internacionais que se agigantam no século; que a moral religiosa concorre ao
pleito de dominação indébita, imergindo na trevas da discórdia as consciências que lhe
cabe dirigir; que a doutrina de sílex substitui os tratados nas guerras sem declaração; que
os dogmas de todos os matizes se insinuam nas conquistas ideológicas da Humanidade,
preconizando a mordaça e o obscurantismo – agora ponho meus olhos em teu vasto futuro...
Possa continuar ecoando em teus santuários e
parlamentos, cidades e vilarejos, vales e montanhas, florestas e caminhos, a palavra
imortal do Mestre da Galileia! Conserva a tua vocação de fraternidade, para que os
mananciais da bênção divina jorrem luz e paz sobre a tua fronte dignificada pelo esforço
cristão na concórdia e na atividade fecunda.
Guarda o teu augusto patrimônio de liberdade
a distância de todos os gigantes do terror, dos deuses da carniça e dos gênios da
brutalidade, que tentam ressuscitar os fósseis da tirania.
Elege o trabalho por bússola do
progresso e da ordem, porque de tuas arcas dadivosas manará novo alimento para o mundo
irredimido. Templo de solidariedade humana, teu ministério de pacificação e
redenção apenas começa... Novo hino será desferido por tua voz no coro das nações. Nem
Atenas adornada de filósofos, nem Esparta pejada de guerreiros. Nem estátuas
impassíveis, nem espadas contundentes.
Nem Roma, nem Cartago. Nem senhores, nem
escravos. Desdobrem-se, isto sim, em teu solo amoroso ramos viridentes da Árvore do
Evangelho, a cuja sombra inviolável se mitigue a sede multimilenar do homem fatigado
e deprimido! Desfralda o estrelado pavilhão que te assinala os destinos e não te
quebrantes à frente dos espetáculos cruentos, em que os povos desprevenidos da
atualidade erguem cenotáfios e ossuários à própria grandeza. Descerra hospitaleiras
portas aos ideais da bondade construtiva, do perdão edificante, do ilimitado bem, porque
somos em ti a família venturosa do Cristianismo restaurado, e, por amor, se
necessário, mil vezes nos confundimos no pó abençoado e anônimo dos teus caminhos
floridos de esperança, empunhando o código da justiça para o exercício varonil do
direito, emergindo das sombras da morte – celeiro sublime da vida renascente.
Grande Brasil! Berço de triunfos esplêndidos,
aberto à glorificação do Cristo, seja Ele a tua inspiração redentora, o teu apoio
infalível, a trava-mestra de tua segurança; e, enaltecendo o messianismo do teu povo
fraterno, em cujo seio generoso se extinguem todos os ódios de raça e se expungem todas as
fronteiras do separatismo destruidor, que o Mestre encontre no âmago de teu coração o
sagrado poiso das Boas-Novas de Salvação, descendo, enfim, da cruz de nossa
impenitência multissecular para conviver com a Humanidade terrestre, para sempre.
Ruy Barbosa por Chico Xavier do livro:
Falando à Terra
Declaração de Origem
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