quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Considerações sobre a República

Considerações sobre a República

Deodoro da Fonseca


Deodoro da Fonseca

Os acontecimentos precipitavam-se. As crises políticas e econômicas sucediam-se, especialmente as derivadas da queda dos preços do café, do açúcar e do algodão.

O descontentamento geral convocava à decisão última.

A insatisfação, ganhando as ruas, poderia gerar uma lamentável guerra civil. A Questão Religiosa e a Questão Militar já haviam aberto espaços para pequenos conflitos que se agravavam. Os espoliados pelo poder totalitário gritavam em nome da justiça e da liberdade.

O nosso manifesto e o do general Visconde de Pelotas, somados à negativa dos soldados que se recusavam a caçar os escravos que fugiam, à eclosão da propaganda positivista no exército, que gerava inquietação, tornaram-se, ao lado das outras causas, o estopim para a queda do Império.

O eco e os efeitos da libertação dos escravos — cujos descendentes, passados cem anos, ainda padecem de alguma discriminação ou limite de desenvolvimento — chegavam aos ouvidos do poder, que se mantinha com indiferença.

Convidado à grande decisão no dia 15 de novembro, não nos restou outra alternativa, senão a proclamação da República, que o povo acompanhou quase sem emoção, como se esta não passasse de um Golpe de Estado.

O dia amanhecera prenunciando calor.

Inaugurava-se um período novo para o Brasil, e a República surgia sem derramamento de sangue, que uma revolução provocaria na Pátria do Cruzeiro. Naturalmente, as vozes que se levantaram em apoio ecoaram pelas províncias, gerando pequenos bolsões de resistência que logo foram liberados.

Num acontecimento de tal magnitude, a família real mandada para o exílio, pôde ser considerado um suave pagamento em favor da era de liberdades políticas e de consciências.

O País de então, porém, muito jovem e com distâncias quase invencíveis, não podia absorver os ideais de liberdade, como havíamos anelado, e o nosso governo foi muito tumultuado.

No bojo de todo movimento libertador destaca-se sempre o martírio de alguns, para a glória e a paz da coletividade.

Um século de República, no entanto, alargando-se no tempo, apresenta uma escassa colheita de bênçãos para a Nação.

O privilégio das classes dominantes e poderosas, que a República tentou abolir, permaneceu lamentavelmente, extorquindo as reservas do Tesouro Nacional e dizimando as massas que se tomaram escravas da necessidade.

A geopolítica da fome ainda abraça a geografia da miséria socioeconômica e das enfermidades que dizimam milhões de vidas, por causa da inépcia de alguns governantes, que homenageiam a República e permanecem no egoísmo das suas monarquias pessoais.

O poder, passando de mãos, ainda não logrou colocar os direitos humanos na direção do sol da verdade, a fim de que crescesse uma Nação forte e poderosa nos seus valores éticos e nas suas resistências morais, para desempenhar a missão histórica que lhe está destinada. O egoísmo ancestral, à semelhança de um câncer interno, prossegue minando-lhe todas as forças, ameaçando-a de sofrer uma metástase devastadora, que terminaria na exaustão das suas possibilidades e no retorno a uma dolorosa ditadura ou à submissão a países prepotentes quão impiedosos...

A história de cada povo é a saga do sacrifício de seus filhos.

Enquanto permanecerem as resistências ao clima do dever e da ordem, sobreviverão os espoliadores, os ingratos, os maus, que armazenam recursos em bancos estrangeiros, que fomentam a hiperinflação, enquanto a dor caminha pelas vielas do sofrimento, levando de roldão as multidões necessitadas.

Convidado para tornar-se celeiro do mundo, o Brasil fez-se, há pouco, infelizmente, um grande exportador de armas que dizimam vidas, sem nenhum retorno para a elaboração de outras vidas, como se os lucros do crime justificassem o fomentar da guerra.

Com os tesouros inexauríveis e os recursos inesgotáveis do seu subsolo, com a excelente qualidade das suas terras e o seu povo generoso, o Brasil poderia ter alcançado o privilégio de País rico, capaz de exportar para o mundo valores que propiciem o engrandecimento de outras pátrias. Todavia, a ganância pelo poder, a loucura arbitrária do autoritarismo e a pugna argentária, em negociatas inacreditáveis, submetem o povo à condição de galé, escravizado pelas dívidas externa e interna que depauperam a Nação e conduzem o homem à situação de abandono e de precito.

Surge, porém, o momento em que as lágrimas dos aflitos, a dor dos deserdados e o grito dos infelizes se levantam para pedir justiça a Deus, criando uma nova ordem na qual os valores humanos serão respeitados e a política, dirigida para os justos ideais da comunidade, resguardará a glória e a honra de viver e de trabalhar para a prosperidade geral.

A Nação que pretende ser forte trabalha mediante o sacrifício de seus filhos, retribuindo-lhes com a abundância de grãos e tornando as comunidades felizes.

Roma, durante muito tempo, propiciou espetáculos gratuitos para as massas, dando-lhes circo e pães.

A nacionalidade brasileira, ora sofrendo, tem circo sem pães, cobrando ao povo o extorsivo preço do divertimento, através das lágrimas da viuvez e da orfandade dos seus filhos esquecidos.

Fala-se da prosperidade tecnológica e do conforto em que alguns se banqueteiam, porém o preço são os vitimados pela esquistossomose, pelo mal de Hansen, pela mortalidade infantil, pela tuberculose, pelas enfermidades epidêmicas que permanecem como chagas vivas do atraso cultural, político e social da grande Pátria.

No transcurso deste Centenário, que nos unamos todos os brasileiros para reagir, mediante a consciência do dever e do trabalho, contra o crime do espoliamento, contra as injunções externas que exaurem as forças da Nação, contra as conciliações internas ignóbeis, dando cada um o seu contributo de honra e de valor, por menor que seja, mas, sempre de alta significação, pelo representar a cota do indivíduo em favor da nacionalidade inteira.

O Brasil triunfará dos seus adversários internos e externos, sobrevivendo à grande calamidade a que foi arrojado, porque a sua é a destinação histórica de pátria da paz, do progresso e da ordem, onde a justiça levantará o braço como um lábaro, no qual estará inscrito o ideal da solidariedade universal, preconizando a era do amor que está designada para a humanidade do milênio futuro.




Texto de Deodoro da Fonseca (Considerações sobre a República - capítulo 15  do livro Antologia Espiritual (1992), psicografado por Divaldo Pereira Franco.






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