sábado, 12 de março de 2016

Pedro, o Apóstolo

Pedro, o Apóstolo

Humberto de Campos


Pedro em estátua na foto com a "chave do céu".
"Ignoro a razão por que revestiram a minha figura, na Terra, de semelhantes honrarias." (Pedro)

Enquanto a Capital dos mineiros, dirigida pelos seus elementos eclesiásticos, se prepara, esperando as grandes manifestações de fé do segundo Congresso Eucarístico Nacional, chegam os turistas elegantes e os peregrinos invisíveis. Também eu quis conhecer de perto as atividades religiosas dos conterrâneos de Augusto de Lima. 

Na Praça Raul Soares, espaçosa e ornamentada, vi o monumento dos congressistas, elevando-se em forma de altar, onde os altos religiosos serão celebrados. No topo, a custódia, rodeada de arcanjos petrificados, guardando o símbolo suave e branco da eucaristia, e, cá em baixo, nas linhas irregulares da terra, as acomodações largas e fartas, de onde o povo assistirá, comovido, às manifestações de Minas católica.

Foi nesse ambiente que a figura de um homem trajado à israelita, lembrando alguns tipos que em Jerusalém se dirigem, frequentemente, para o lugar sagrado das lamentações, aguçou a minha curiosidade incorrigível de jornalista.

- Um judeu?! – exclamei, aguardando as novidades de uma entrevista.

- Sim, fui judeu, há algumas centenas de anos – respondeu laconicamente o interpelado.

Sua réplica exaltou a minha bisbilhotice e procurei atrair a atenção da singular personagem.

- Vosso nome? – continuei.

- Simão Pedro.

- O Apóstolo?

E a veneranda figura respondeu afirmativamente, colando ao peito os cabelos respeitáveis da barba encanecida.

Surpreso e sedento da sua palavra, contemplei aquela figura hebraica, cheia de simplicidade e simpatia. Ao meu cérebro afluíam centenas de perguntas, sem que pudesse coordená-las devidamente.

- Mestre – disse-lhe, por fim -, Vossa palavra tem para o mundo um valor inestimável. A cristandade nunca vos julgou acessível na face da Terra, acreditando que vos conserváveis no Céu, de cujas portas resplandecentes guardáveis a chave maravilhosa. Não teríeis algumas mensagens do Senhor para transmitir à Humanidade, neste momento angustioso que as criaturas estão vivendo?

E o Apóstolo venerável, dentro da sua expressão resignada e humilde, começou a falar:

- Ignoro a razão por que revestiram a minha figura, na Terra, de semelhantes honrarias.
Como homem, não fui mais que um obscuro pescador da Galileia e, como discípulo do Divino Mestre, não tive a fé necessária nos momentos oportunos. O Senhor não poderia, portanto, conferir-me privilégios, quando amava todos os seus apóstolos com igual amor.

- É conhecida, na história das origens do Cristianismo, a vossa desinteligência com Paulo de Tarso. Tudo isso é verdadeiro?

- De alguma forma, tudo isso é verdade – declarou bondosamente o Apóstolo. – Mas, Paulo tinha razão. Sua palavra enérgica evitou que se criasse uma aristocracia injustificável, que, sem ele, teria que desenvolver-se fatalmente entre os amigos de Jesus, que se haviam retirado de Jerusalém para as regiões da Bataneia.

- Nada desejais dizer ao mundo sobre a autenticidade dos Evangelhos?

- Expressão autêntica da biografia e dos atos do Divino Mestre, não seria possível acrescentar qualquer coisa a esse livro sagrado. Muita iniquidade se tem verificado no mundo em nome do estatuto divino, quando todas as hipocrisias e injustiças estão nele sumariamente condenadas.

- E no capítulo dos milagres?

- Não é propriamente milagre o que caracterizou as ações práticas do Senhor. Todos os seus atos foram resultantes do seu imenso poder espiritual. Todas as obras a que se referem os Evangelistas são profundamente verdadeiras.

E, como quem retrocede no tempo, o Apóstolo monologou:

- Em Carfanaum, perto de Genesaré, e em Betsaida, muitas vezes acompanhei o Senhor nas suas abençoadas peregrinações. Na Samaria, ao lado de Cesareia de Felipe, vi suas mãos carinhosas dar vistas aos cegos e consolação aos desesperados. Aquele sol claro e ardente da Galileia ainda hoje ilumina toda a minha alma e, tantos séculos depois de minhas lutas no mundo, ao lado de alguns companheiros procuro reivindicar para os homens a vida perfeita do Cristianismo, com o advento do Reino de Deus, que Jesus desejou fundar, com o seu exemplo, em cada coração...

- Os filósofos terrenos são quase unânimes em afirmar que o Cristo não conhecia a evolução da ciência grega, naquela época, e que as suas parábolas fazem supor a sua ignorância acerca da organização política do Império Romano: seus apóstolos falam de reis e príncipes que não poderiam ter existido.

- A ação do Cristo – retrucou o Apóstolo – vai mais além que todas as atividades e investigações das filosofias humanas. Cada século que passa imprime um brilho novo à sua figura e um novo fulgor ao seu ensinamento. Ele não foi alheio aos trabalhos do pensamento dos seus contemporâneos. Naquele tempo, as teorias de Lucrécio, expandidas alguns anos antes da obra do Senhor, e as lições de Filon em Alexandria, eram muito inferiores às verdades celestes que Ele vinha trazer à Humanidade atormentada e sofredora...

E, quando a figura venerada de Simão parecia prestes a prosseguir na sua jornada, inquiri, abruptamente:

- Qual o vosso objetivo, atualmente, no Brasil?

- Venho visitar a obra do Evangelho aqui instituída por Ismael, filho de Abraão e de Agar, e dirigida dos espaços por abnegados apóstolos da fraternidade cristã.

- E estais igualmente associado às festas do segundo Congresso Eucarístico Nacional? – perguntei.

Mas, o bondoso Apóstolo expressou uma atitude de profunda incompreensão, ao ouvir as minhas derradeiras palavras.
Foi quando, então, lhe mostrei o rico monumento festivo, as igrejas enfeitadas de ouro, os movimentos de recepção aos prelados, exclamando ele, afinal:

- Não, meu filho!... Esperam-me longe destas ostentações mentirosas os humildes e os desconsolados. O Reino de Deus ainda é a promessa para todos os pobres e para todos os aflitos da Terra. A Igreja romana, cujo chefe se diz possuidor de um trono que me pertence, está condenada no próprio Evangelho, com todas as suas grandezas bem tristes e bem miseráveis. A cadeira de São Pedro é para mim uma ironia muito amarga... Nestes templos faustosos não há lugares para Jesus, nem para os seus continuadores...
25 de agosto de 1936.

Humberto de Campos por Chico Xavier do livro:
Crônicas de Além Túmulo

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