terça-feira, 21 de maio de 2019

O segredo da grande esfinge

O segredo da grande esfinge

João Marcus - Pseudônimo de Hermínio C. Miranda



Praça de S. Pedro

Muita gente esperava reformas bem mais profundas do Concílio Ecumênico Vaticano II cuja realização custou catorze bilhões de cruzeiros, segundo balanço divulgado pelo Osservatore Della Domenica. E não apenas os leigos ou até mesmo indiferentes de toda questão religiosa, mas também muitos sacerdotes católicos, nos vários escalões da hierarquia eclesiástica, ficaram um tanto decepcionados. Não obstante, a tradição da Igreja não justificava tal esperança, nem a sua logística. Mesmo admitindo-se que a primeira pudesse ser desrespeitada ou pelo menos abandonada, a essência mesma do arcabouço doutrinário da Igreja é necessariamente rígida. Sem essa rigidez, que garante a estabilidade dos dogmas, não haveria doutrina católica, tal como a conhecemos. Claro que os teólogos mais esclarecidos já descobriram, de há muito, que os dogmas que pareciam rochedos inabaláveis se reduziram a seixos e calhaus que, longe de indicarem o caminho da salvação aos fiéis, se transformaram em verdadeiros tropeços. Aí, porém, está o dilema inescapável da Igreja: se não pode sobreviver sem os seus dogmas, como é que vai sobreviver com eles?

Um exame panorâmico na História da Igreja revela que, basicamente, há três fases distintas no desenvolvimento da instituição: um período em que só pregavam e praticavam os ensinamentos recebidos diretamente de Jesus, por via daqueles que conviveram com o Mestre; um período em que se “reformou” a Igreja, introduzindo a era dos teólogos criadores de dogmas, e, finalmente, o período atual em que os dogmas já se vão tomando incômodos diante do progresso.

A primeira fase durou pouco mais de três séculos. Era o Cristianismo ainda incontaminado pelas interpretações teológicas, embora com os retoques doutrinários de Paulo. A tradição histórica de Jesus ainda estava muito próxima e os textos deixados por escritores que conversaram diretamente com os apóstolos ainda não tinham sido mutilados e interpelados.

A segunda fase começa com o Concílio de Niceia, em 325, quando se decidiu, por votação, que Jesus era Deus, uma das pessoas da Santíssima Trindade, e se redigiu o documento básico da fé católica, o Credo. Dai em diante é tudo elaboração sobre doutrinas preexistentes e não mais criação original. Os teólogos apenas procuravam conciliar as doutrinas católicas com os novos conhecimentos que iam emergindo, numa sociedade eminentemente progressista como é a Humanidade. Até hoje, os dois vultos máximos da teologia católica continuam sendo Agostinho e Tomás de Aquino e a obra que deixaram se consagrou como praticamente definitiva, quanto à fixação das principais correntes teológicas.

No entanto, à medida que avança o homem na excogitação dos grandes problemas, vão aparecendo os buracos e os remendos na tessitura doutrinária do catolicismo. Não é segredo para ninguém que a Igreja fez o que pôde, tenazmente, para deter, ou, pelo menos, retardar a marcha do conhecimento. Também isso é da mais legítima tradição teológica. Lá está no Gênesis que, ao colocar as suas duas criaturas no paraíso, o Senhor lhes proibiu que provassem o fruto do conhecimento. Deveriam viver pela eternidade a fora na mais angelical das ignorâncias. Quando desobedeceram, foram expulsas e condenadas a uma existência de trabalhos e sofrimentos, deixaram a convivência do seu Criador e, segundo os teólogos católicos, o demônio adquiriu poder sobre elas, o que dantes, ao que se supõe, não acontecia. Essa linguagem simbólica só quer dizer uma coisa: que do ponto de vista teológico seria melhor que o homem vivesse na santa ignorância, deixando aos teólogos o duro trabalho de pensar por ele. Ao que tudo indica, entretanto, não é essa a vontade de Deus, porque dotou o homem de inteligência e curiosidade, tornando o progresso e a evolução inelutáveis.

Às vezes a Igreja põe as ideias novas em quarentena apenas por prudência, a ver como se desenvolvem, para então pronunciar-se. Aliás, age da mesma forma quanto aos seus próprios membros. Não basta que se vá dizer ao Papa que alguém viveu e morreu em santidade, para ser imediatamente canonizado. O processo é lento e custoso. De outras vezes, porém, a Igreja se lança com todo o seu prestígio e poder contra uma ideia ou uma descoberta porque vai contrariar frontalmente um ou mais de seus dogmas. Sempre o dogma...

O exemplo mais dramático dessa atitude foi a teoria do heliocentrismo de Copérnico. Para os teólogos, de Bíblia na mão, a Terra, e não o Sol, era o centro de todo o mecanismo celeste. Mas a obra de Copérnico passou algo despercebida e circulou mais tarde entre os entendidos e, por isso, não provocou grande celeuma. Quando Galileu retomou a questão, mais tarde, aí sim, a Igreja entrou em ação e, além de obrigar Galileu ao retratamento, proibiu qualquer referência escrita ao sistema de Copérnico. Acontece que os astrônomos do mundo inteiro, mesmo com seus instrumentos ainda primitivos, começaram a confirmar a teoria de Copérmico e Galileu. Não apenas astrônomos leigos, ateus e heréticos, mas até mesmo sacerdotes católicos estudiosos, como sempre os houve, especialmente entre os eruditos Jesuítas. A coisa durou séculos. Até 1822, a Igreja só admitia que se referisse ao heliocentrismo como hipótese. A doutíssima e poderosa Inquisição só então decidiu tolerar (notem bem: tolerar) obras que cuidassem “do movimento e da imobilidade do Sol, de acordo com a opinião comumente admitida pelos astrônomos modernos“. 

Está no livro “Os Jesuítas, seus Segredos e seu Poder”, do escritor alemão René Füllop Müler.

Não se precisa dizer mais nada para se compreender o quanto custou esse retratamento, o quanto doeu à Igreja recuar de uma posição que havia assumido com tamanha intransigência. Também se compreende que daí em diante tenha sido cada vez mais cautelosa em colocar o peso da sua autoridade em apoio ou contra esta ou aquela ideia.

Não vai nestas observações censura alguma ao modo de agir dos responsáveis, pela política da Igreja e pela sua estrutura teológica. É a sua verdade e tem de ser defendida a qualquer custo. Também os protestantes investiram contra a teoria de Copérnico, com tanto ou mais zelo teológico quanto o dos católicos. Há, a respeito, o pronunciamento veementíssimo de Melanchthon, o primeiro teólogo da Reforma.

Aliás, por falar em Reforma, convém lembrar que Lutero e seus seguidores, ao perceberem a significação do conflito inevitável entre ciência e dogmatismo, tentaram, num esforço desesperado, “libertar” a Religião do jugo da Razão. A Fé tinha que ser absolutamente cega e só pela Fé poderia alguém salvar-se. Não importa a falta de lógica da doutrina da expiação eterna ou da existência do demônio que, sendo uma criatura de Deus, anjo decaído, tenha sido investido de poderes bastantes para perturbar a obra do seu Criador e até tentar a Jesus, uma das pessoas da Divindade. Nada disso importa. A Fé mandou aceitar — a Razão que se arranje...  Ponto de vista diametralmente oposto adotaria Kardec, configurando claramente que a fé só é legítima quando passada pelo crivo da razão.

Sob muitos aspectos, o ponto de vista do Luteranismo foi apenas uma enfatização do que, mais discretamente, sempre defendeu o próprio Catolicismo. Os teólogos católicos que se arriscaram a invocar a razão, para examinar certas doutrinas, passaram por maus pedaços, quando não foram sumariamente excomungados ou destroçados.

O progresso, no entanto, é inexorável e quem não vai com ele fica esmagado. Por isso, de tempos em tempos, em face da verdadeira massa de incongruências e controvérsias que se acumulam em tomo de certos princípios doutrinários, a Igreja reúne um Concílio. Mas que ninguém se iluda. Por mais que se insista na tese do espírito de renovação e progressista da Igreja, a verdade dura e pura é que a convocação de um concílio revela um estado de crise relativamente aguda, tão certo quanto a febre indica estado de infecção. Vejam a História, que há abundante literatura profana sobre cada um dos concílios. As vezes para erradicar uma heresia, de outras, para recuperar a unidade interna ou reforçar ou restabelecer a autoridade do Papa, mas sempre em épocas difíceis para a Igreja.

O primeiro Concílio realizou-se no ano 49, ao que parece por sugestão do apóstolo Paulo, a fim de dirimir a primeira crise de grandes proporções do Cristianismo nascente e que consistia em resolver a importantíssima questão Judaísmo versus helenização. Seria o Cristianismo apenas uma seita judaica? era necessário ser judeu e circuncidado para ser cristão? ou o Cristianismo seria uma religião universal a ser pregada também aos gentios?

“O problema — diz Daniel Rops na sua insuspeita “História da Igreja de Cristo”, Vol. I, pág. 95 — [era] demasiado grave para poder ser encarado de esguelha e ao acaso das circunstâncias.” A desinteligência entre Paulo, que era universalista, e os demais apóstolos, que se batiam por um Cristianismo judaico, foi seriíssima.

Outros concílios de menor significação foram realizados com relativa frequência, especialmente na igreja oriental. Vamos dar uma rapidíssima olhada, apenas nos mais importantes.

Em Niceia, no ano 325, organizou-se o primeiro Concílio chamado ecumênico, ou seja, universal. Esse foi o padrão e modelo para os demais. Nesse tempo — diz Rops — “pesava sobre a Igreja uma grave ameaça de divisão, bem pior ainda do que aquela que ele (Constantino) julgava ter evitado na África”. Era a heresia do arianismo, que negava a divindade de Jesus. Quando, em pleno Concílio, Arius declarou que, como homem, Jesus poderia errar e até pecar, levantou-se um grito uníssono de horror.

Foi tão forte essa heresia que em 381 ainda se lutava contra ela e outro Concílio foi convocado para Constantinopla, “onde ela era ainda poderosa e os seus últimos protagonistas... tiveram de dar lugar aos católicos...”

É o que diz Rops e acrescenta que o “concílio, depois de muitas discussões, punha fim a todas as discussões dogmáticas suscitadas depois de Niceia pela proliferação do erro...”

Em Pisa, em 1409, reuniram-se 24 cardeais para discutir o problema do cisma e da heresia. Esse concílio depôs dois Papas e elegeu outro, mas, como os dois não quiseram deixar o poder, ficou a Igreja com três pontífices em vez de dois: um em Roma, outro em Pisa e um terceiro em Avignon, na França.

Em 1414, diante do Grande Cisma, em que a Igreja se repartia por três papas, reuniu-se o Concílio de Constança, com o objetivo de “por termo ao escândalo da grande dilaceração”, decretar medidas que suprimissem os abusos de simonia (comércio de coisas sagradas e de posições eclesiásticas) e do nicolaísmo (existência de mulheres comuns a muitos homens) e aniquilar as heresias. As heresias do momento eram as de Wyclif, que, embora morto, tivera suas ideias revitalizadas por João Huss. Esse foi o concílio que mandou queimar Huss.

Em Basileia, em 1431, continuou o grande debate iniciado em Sena, sete anos antes. A época era conturbada, dentro e fora da Igreja. Na Boêmia fumegava a guerra dos hussitas; Filipe, o Bom, disputava com Frederico da Áustria; Joana d'Arc estava às vésperas da fogueira e a França anarquizada, política e socialmente. O próprio Rops declara que a reunião foi ... uma espécie de conciliábulo em que um quarteirão de abades, uns cinquenta clérigos e uma porção de universitários se fartaram de gritar em voz alta que estavam ali para representar a Igreja Universal”.

O Papa Eugênio IV cassou a autoridade do Concílio e convocou outro para Bolonha. Em resposta, os eclesiásticos reunidos disseram que não sairiam senão pela força. Em 1433, Eugênio recuou, reconhecendo a autoridade do Concílio e convocando os demais sacerdotes para comparecerem. “A Cristandade — diz Daniel Rops — tinha medo de ver renascer o cisma.”

Em 1545, sob a tremenda pressão da Reforma Protestante, a Igreja, novamente em crise, viu que precisava também reformar-se e reuniu o Concílio de Trento. Nova heresia, novas crises. “Dialeticamente — reconhece Rops — foi da Igreja de Wittenberg e da Confissão de Augsburg (ou seja do Protestantismo) que saiu, em grande parte, a Igreja do Concílio de Trento.”

Assim também o Concílio Vaticano II foi determinado pela grande crise cujo espirito ficou tão bem sintetizado na sua própria documentação, num papel que se intitulou “A Igreja e o Mundo Moderno”. Esse foi o leitmotiv do Concílio. Os teólogos mais esclarecidos estão perplexos diante do mundo moderno que as suas doutrinas não mais explicam; seus fiéis fazem perguntas a que eles não podem responder de maneira satisfatória e apresentam objeções para as quais não são mais aceitas as velhas explicações do mistério ou da fé cega. Além do mais, as forças que se constituíram à margem, ou em oposição à Igreja de Roma são hoje imensas e poderosas também. Não podem mais ser ignoradas. É o caso do Protestantismo, que, a despeito de algumas divergências mais ou menos ponderáveis, tem mais pontos de contato do que de oposição diante do Catolicismo. Tem em comum, praticamente, a mesma Bíblia, os mesmos Evangelhos, reconhecem o mesmo Mestre, e muitas das doutrinas mais queridas e enraizadas são as mesmas ou quase iguais de um lado e de outro. Por que, então, se maltratarem quando se podem unir contra os temíveis inimigos de ambas, como o materialismo agnóstico ou o comunismo ateu? Quanto aos judeus, como insistir na política de ódio racista pelo fato de que há quase dois mil anos alguns judeus assassinaram o Cristo? Não faz muito sentido.

Daí por que as reformas do Concílio Vaticano II foram exatamente aquelas que eram de se esperar da tradição eclesiástica. Nem mais, nem menos. Sem nenhuma intenção trocadilhista, os documentos que o Concílio produziu são declarações conciliadoras. Acenam para protestantes, anglicanos, ortodoxos e judeus com uma nova mentalidade de espírito desarmado em relação a esses irmãos separados. Notem bem a palavra separados. Quem se separa, afasta-se de alguém, de algum lugar ou de alguma ideia. O que fica, é, presumivelmente, o melhor. Aliás, não se faz segredo disso. Em todos os papéis se insiste em que a Igreja admite a liberdade religiosa para todos, mas continua a declarar enfaticamente que a única verdade é a sua. Também isso é lógico, dentro do ponto de vista filosófico. Quem vai continuar a respeitar uma verdade em que não acredite com toda a força do seu espírito? O dia em que a Igreja declarar que “os outros” também podem estar certos, então terá assinado a sua sentença de morte.

Bem pensado, o argumento pode ser revertido: o Judaísmo poderia usá-lo com idêntica motivação, classificando as igrejas cristãs de “irmãs separadas” e propor-lhes o retomo à lei de Moisés...

Dessa forma, o espírito desarmado é o primeiro passo, cauteloso mas decidido, no sentido de se conseguir, pelo menos, lutar pela união de todos os credos, sob a tutela da Igreja Católica Apostólica Romana, evidentemente. Os irmãos separados que venham até a Igreja e se reúnam sob a mesma bandeira, sob os mesmos dogmas, sob o mesmo Papa. Protestantes, judeus, ortodoxos e anglicanos que se acolham ao seio carinhoso da Santa Madre Igreja, que esse é o sonho bimilenar de todas as cabeças que têm sustentado a tiara papal. A ideia é belíssima, respeitável, compreensível e, até certo ponto, exequível, pelo menos quanto aos protestantes, penso eu, e aos ortodoxos. Removidos alguns obstáculos — com o tempo, naturalmente —, não seria de admirar-se que, no mínimo, algumas denominações protestantes aderissem ao esquema católico, senão como um movimento unificado totalmente, ao menos como forças paralelas e complementares que se estimam e se apoiam. A Igreja também fará algumas concessões mais ou menos inócuas, mas de considerável alcance nesse sentido, para obter aquele prêmio. Já vimos que se permite hoje, no Catolicismo, a comunhão em duas espécies, pão e vinho, em ocasiões especiais. Ora, a comunhão sob duas espécies foi o grande cavalo de batalha da Reforma Protestante. O celibato sacerdotal católico também mostra sinais de pré-agonia, ainda que venha a durar decênios...

De modo que o tema central do Concílio foi a posição diante do Progresso e, em consequência, a necessidade de uma atitude mais conciliatória com relação aos irmãos separados. (Não sei se nós, espíritas, também fomos considerados como irmãos separados...) Observa-se claramente isso das decisões tomadas. Aliás, o acompanhamento dos acalorados debates pelos jornais foi uma aventura emocionante para o leitor comum, mesmo quando sabemos que somente extravasou para a imprensa um mínimo possível. Muita coisa ficou no segredo das discussões intramuros, fechadíssimas, ou no murmurio das antessalas e dos corredores do Vaticano.

Houve, porém, o suficiente para se sentir o verdadeiro corpo-a-corpo que se travou entre a ala conservadora, minoritária, mas tremendamente ativa e bem representada, e a ala mais liberal, progressista e reformista. Tivesse prevalecido a opinião da minoria conservadora, não teria saído praticamente nem um dos decretos que vimos. A dominar de modo mais declarado a corrente liberal, a reforma seria realmente de grande envergadura, muito mais profunda e revolucionária do que se imagina.

Vejam, para isso, os fragmentos de opiniões que transpiraram para nós leigos. Enquanto o Cardeal Spellman, de Nova Iorque, declarava que a liberdade religiosa “é a verdade sobre a qual se fundam todos os direitos humanos e sociais”, o Cardeal Benjamin de Arriba y Castro, de Tarragona, Espanha, levantava-se imediatamente para proclamar que “somente a Igreja Católica tem o direito de pregar o Evangelho”.

Os debates em tomo da liberdade religiosa foram sempre nesse tom áspero, embora diplomático e civilizado, e consumiram um tempo enorme. Monsenhor Luigi Carli, Bispo de Segni, na Itália, achou que a redação dada à declaração sobre a liberdade religiosa fora feita por sacerdotes interessados em “deformar e distorcer as Sagradas Escrituras, para pô-las de acordo com uma ideia moderna.”

Enquanto isso, Monsenhor Emílio Tagle Covarrubias, de Valparaíso, é mais enfático, dizendo que o documento, embora mereça apoio em certos aspectos, “demonstra uma benevolência indevida para com as falsas religiões.”

Mas que são falsas religiões? E por que são falsas?

E a finalidade não era mesmo a de estender a mão a todos?

De certa forma, o Concílio foi também um monumental e ressonante muro de lamentações, diante do qual sacerdotes do mundo inteiro fizeram ouvir verdadeiras confissões públicas das mais veementes. Um desinibido eclesiástico inglês, Monsenhor John Heenan, Cardeal-Arcebispo de Westminster, afirmou que “seria uma falsidade tentar desmentir o bem conhecido fato das perseguições sofridas pelos protestantes em certos países, por parte dos católicos”, e pediu uma nítida “declaração que erige em doutrina da Igreja o princípio da liberdade religiosa.

Mais adiante, acrescenta que onde o Catolicismo é minoritário, insiste em liberdade religiosa; onde é majoritário e apoiado pelo poder temporal, somente “falamos nos chamados direitos da verdade.” E depois: “Na verdade, não passa de uma farsa a doutrina católica que prega uma lei, quando somos ricos e fortes, e outra muito diferente quando somos pobres e fracos.

No entanto, essa tem sido a tônica na política mundial da Igreja. Nos países em que o Catolicismo dominava de cima para baixo, exercendo influência, às vezes tirânica, sobre príncipes, reis e governantes em geral, pregava-se o princípio “cuius regio, eius religio”, ou seja, o povo era obrigado a seguir a religião do seu rei. Quando, porém, os sacerdotes dominavam segmentos importantes das massas, mas não tinham acesso aos heréticos ou ateus no poder, ensinavam que o povo tem o direito de questionar a validade da religião de seus dirigentes.

A despeito de toda a argumentação da ala reformista, os conservadores, liderados pelo poderoso e dinâmico Cardeal Ottaviani — que quase foi Papa e ainda poderá sê-lo —, proclamavam que a declaração sobre a liberdade religiosa era “absolutamente inaceitável”, enquanto que Monsenhor Custódio Alvim, Arcebispo de Lourenço Marques, na África, tachava esse papel de “verdadeiro insulto à Igreja Católica.

E o debate prosseguia, os conservadores punham em ação todo o seu calculado dispositivo obstrucionista. Um dia levantou-se o Cardeal Josef Beran, que acabara de ser libertado após 16 anos de prisão em poder dos comunistas, para dizer que a Igreja estava sendo vítima de vinganças atrás da Cortina de Ferro, “em consequência dos defeitos e pecados cometidos no passado".

Nos velhos tempos, o nobre Cardeal estaria correndo um risco gravíssimo, somente em admitir que a Igreja erra e comete pecados. Mas ele insistiu em exortar a assembleia a compensar tais erros, promulgando, por unanimidade, o direito inerente a toda liberdade de crença. “Em meu país — disse ele — a Igreja está sofrendo agora pelos erros e pecados cometidos em tempos passados em seu nome e contra a liberdade religiosa.” Lembrou, então, a lamentável condenação de João Huss, o brilhante reformista e educador da Boêmia, mandado queimar vivo em praça pública pelos cardeais reunidos no Concílio de Constança.

Por fim, a declaração sobre a liberdade religiosa entrou em agonia. A ala conservadora, poderosa e renitente, não cedia um milímetro, estando mesmo a ponto de conseguir, pela terceira vez em três anos, adiar a votação da matéria. Foi quando um grupo de eclesiásticos liberais procurou imediatamente o Papa — já era Paulo VI — e convenceu Sua Santidade a comparecer pessoalmente à Sessão e jogar todo o peso de sua autoridade em suporte da declaração; caso contrário, ela voltaria a sepultar-se na papelada, até que se tomasse totalmente esquecida e abandonada. Pelo teor da notícia, mesmo no seu laconismo estudado e discreto, não é difícil imaginar qual o argumento que convenceu o pontífice a uma intervenção pessoal. Diz o jornal: “O Papa interveio hoje (21-9-1965) no Concílio Ecumênico e evitou uma crise ao ordenar uma votação do discutido texto sobre a liberdade religiosa." (Os grifos são meus.)

Que se deduz disso? Que, se o Papa não se decidisse a ordenar a votação, a ala reformista criaria um verdadeiro “impasse", do qual o prestígio da Igreja sairia profundamente danificado, talvez irreparavelmente, pois num Concílio convocado para fortalecer a Igreja não se poderia admitir que se mostrassem as rachaduras dos seus milenares alicerces.

Só assim se votou a matéria e o “resultado da votação — dizem os jornais da época (22-9-1965) — foi um duro golpe para a minoria conservadora do Concílio que esperava obter uns 500 votos”. Talvez, por respeito à autoridade papal, os quinhentos votos se reduziram para 224, contra 1.997 da ala liberal!

A atuação do Papa, no caso, foi decisiva, pois a Comissão Coordenadora do Concílio já resolvera, mais uma vez, em três anos, adiar a votação da matéria pelo Plenário. Nessa Comissão, de 28 membros, 19 votaram pelo adiamento. Por aí se vê o poder triturador dos mecanismos políticos internos das grandes organizações, especialmente na Igreja Católica, que possui disso uma experiência e uma tradição quase bimilenar.

Mas os debates prosseguiram sobre outros pontos menos essenciais, como também as confissões publicas das crenças e opiniões de cada um dos sacerdotes mais francos e leais. 

Monsenhor André Chame, bispo belga de 
Namur, declarou que considerava indispensável uma declaração da Igreja sobre a “era espacial, até mesmo sobre a possibilidade da existência de criaturas inteligentes noutros planetas”; e acrescentou: “Na era espacial, a tradicional convicção acerca do paraíso, situado no céu, já não pode ser aceita pelo homem moderno.”


Segundo a notícia, Monsenhor Chame acha mesmo superados os conceitos de céu e inferno. Mas com isso vai-se a doutrina da salvação e a da redenção! As vezes, a gente tem a impressão de que alguns desses eminentes sacerdotes agiram como verdadeiros enfants térribles, dizendo inconveniências diante de visitas, tal a franqueza e a candura de certas declarações de tremendas consequências.

Por outro lado, a ala conservadora, aferrada aos seus preconceitos, não perdia tempo e nesse mesmo dia D. Giuseppe Marafini, da Itália, insistia em que a Igreja devia lembrar aos homens “que o demônio está presente na vida moderna”. Demônio, nesta altura do conhecimento humano?

Foi assim, em linhas muito gerais, o Concílio Ecumênico Vaticano II, iniciado sob a inspiração e a coragem moral de João XXIII. A figura desse Papa fascinou todo o mundo, cristão e não-cristão, pelo que tinha de conteúdo humano. Eleito quase que como um Papa interino, numa espécie de mandato tampão, como se usa dizer hoje, João surpreendeu a todos com o seu dinamismo. Das suas mãos — houvesse ele tido mais tempo — talvez a Igreja saísse mais renovada. Suas forças, porém, como as de todo Papa, são limitadas pelas contingências da própria estrutura da Igreja. Tem que prevalecer, em última análise, a política da Igreja, coerente consigo mesma, e não as ideias pessoais de cada bispo, cardeal ou Papa.

De qualquer forma, como disse um comentarista do “Time”, João XXIII abriu as janelas do Vaticano e por elas entrou um sopro renovador. Ninguém mais poderá fechá-las, porque há em tudo isso um processo irreversível, embora lento.

Não obstante, não é preciso ser profeta para prever que grandes dificuldades ainda estão pela frente, na história fritura da Igreja, e serão trazidas, em quantidade e força cada vez maiores, pela avalanche arrasadora do progresso e da evolução do conhecimento humano. O progresso é a grande esfinge, cujo segredo a Igreja terá de decifrar para sobreviver.

Por tudo isso e para não ficar, mais cedo ou mais tarde, diante desses dilemas, é que o Espiritismo se planejou e se instituiu de maneira inteiramente diversa de todas as religiões e doutrinas anteriores. O Espiritismo não teve o seu profeta, o seu messias, e erram aqueles que assim querem fazer entender. Nenhum nome está ligado a ele, no sentido em que está Maomé à religião do Islã, Buda ao Budismo, Moisés ao sistema religioso dos judeus, ou o Cristo ao Cristianismo. Por mais destacada que fosse a atuação de Allan Kardec, ele próprio não avocou a si a tiara espiritual do movimento; ao contrário, procurou apagar-se como pessoa humana, para que a obra sobrelevasse à sua condição de codificador. Os próprios Espíritos, com a singela franqueza que sempre lhes caracteriza os elevados pronunciamentos, o advertiram de que, se ele não pudesse ou não quisesse assumir o encargo, outros seriam convocados. Por outro lado, o movimento revestiu-se, logo de início, de um caráter universal, pregado simultaneamente em todo o mundo, por muitos Espíritos, através de inúmeros médiuns, em todos os ambientes sociais, a todos os povos, em todas as línguas, mas coerente com as ideias básicas sempre que os pronunciamentos foram ditados por Espíritos equilibrados e de elevada moral e conhecimentos.

Sempre ficou bem claro que o Espiritismo não teria dogmas, nem igrejas, nem sacerdotes, nem ritos, nem dirigente universal, entre os encarnados, nem qualquer coisa que fizesse lembrar a estrutura das religiões do passado. Não precisamos de Concílios, nem estamos preocupados com o avanço da Ciência. Ao contrário, aguardamos com verdadeira ansiedade esse avanço. O progresso vai confirmar todo o imenso acervo de conhecimento contido na Doutrina Espírita. Virão, a seu tempo, a comprovação científica da pluralidade dos mundos habitados, a da sobrevivência do Espírito, a da reencarnação e a da comunicabilidade entre Espíritos e homens. Vão descobrir que o inconsciente do eminente Prof. Sigmund Freud é o repositório das lembranças de todas as passadas existências, até o ponto em que a memória se perde nas trevas da irracionalidade. Descobrirão também que as doenças orgânicas, quase todas, se curam através do Espírito e que não se pode inverter o processo e tentar curar mazelas do Espírito através de intervenções no corpo físico.

Nos domínios da moral, será comprovada a estrita responsabilidade pessoal de cada um pelos seus atos, mas também a oportunidade de recuperação e reparo. Que tolerância é a palavra de ordem universal, porque nem todos os Espíritos têm o mesmo nível de compreensão e apreensão. Que a caridade é a lei suprema, porque beneficia tanto o que a pratica quanto aquele que a recebe.

Descobrirão, enfim, que todas as grandes ideias humanas, aquilo a que já se chamou “os grandes sonhos da Humanidade”, estão contidas, em maravilhosas sínteses do pensamento, dentro dos conceitos fundamentais da Doutrina Espírita. E só estudá-los, pesquisá-los e desenvolvê-los , que o próprio mecanismo da evolução se encarregará de ir mostrando o caminho a seguir.

E ao contemplarmos toda essa extraordinária massa de trabalho e de estudo a ser atacada, sentimo-nos tomados por invencível melancolia quando vemos, de outra handa, os homens empenhados acirradamente em questiúnculas, como a do casamento misto, ou em declarações acerca da liberdade religiosa que estão saindo penosamente, sofridamente, vencendo oposições tenazes e com um atraso de pelo menos dois mil anos! Tanta estrela no céu e o homem procurando grãozinhos de pó na sola dos sapatos...


João Marcus
Pseudônimo de Hermínio C. Miranda

Revista Reformador de Abr. 1966, posteriormente incluído no livro: Candeias na noite escura - FEB.

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Nota explicativa: - Hermínio C. Miranda também assinava seus artigos como João Marcus e H.C.M. Este expediente foi sugerido pelo editor da Revista Reformador para que pudessem ser publicados mais artigos dele em uma mesma revista.

O livro: - Candeias na noite escura, é uma compilação com os melhores artigos de Hermínio na revista Reformador assinadas sob o pseudônimo de  João Marcus.


Hermínio C. Miranda

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